por Bruno Capelas
“Quatro caras, cinco discos e cinquenta músicas, feitas ao longo de cinco anos”. É dessa maneira simples que Olavo Rocha, vocalista da banda Lestics, resume a carreira do grupo paulistano até os dias de hoje. Passando por mais uma etapa de uma trajetória que começou em 2007, no quartinho da casa do guitarrista e tecladista Umberto Serpieri, o grupo mostra ao mundo o seu recém-lançado quinto álbum, “História Universal do Esquecimento”.
Além de Olavo e Umberto, que integram a banda desde seu começo, quando os dois ainda faziam parte do Gianoukas Papoulas, o Lestics conta om Marcelo Patu (baixo) e Marcos ‘Xuxa’ (bateria). Parceiro do grupo em algumas canções de “História Universal do Esquecimento”, o guitarrista Lirinha deixou a banda há alguns meses. Os cinco discos: “9 Sonhos” e “LesTics”, os dois de 2007; “Hoje” (2009), “Aos Abutres” (2010) e “História Universal do Esquecimento” (2012), todos liberados de forma gratuita no site oficial da banda: http://www.lestics.com.br/
“História Universal do Esquecimento” foi antecipado pelo clipe de “O Baile”, gravado com a participação do bicampeão mundial de boxe Éder Jofre – e produzido pela Cronópios TV, responsável também por um documentário da banda lançado em 2011. “No clipe de ‘O baile’, existe um contraponto entre o Éder, do alto dos seus 76 anos, se preparando para uma luta, e a gente se preparando para fazer um show. Fiquei muito feliz com o resultado”, conta o vocalista do Lestics.
A entrevista que você lê a seguir foi concebida em duas partes: durante maio e julho de 2012, e-mails foram trocados entre repórter e os integrantes da banda, que responderam a diversas perguntas, e, no começo do mês de agosto, o vocalista Olavo Rocha comentou alguns pontos importantes sobre o trabalho da banda em um café de uma travessa da Rua Augusta, em São Paulo.
No papo, Olavo escancara o processo de composição dentro da banda, fala sobre a trajetória do Lestics até aqui, traçando evoluções e projetos para o futuro, além de comentar a cover que fizeram para “Poor Places”, do Wilco, em um tributo ao décimo aniversário de “Yankee Hotel Foxtrot” (ouça e baixe aqui); revela seus discos e diretores favoritos e comenta sobre a política cultural brasileira e o cenário atual da indústria fonográfica.
“O país precisa investir em cultura, fomentando caminhos para que a arte seja produzida e chegue às pessoas. Não adianta pegar o dinheiro público, resolver seu problema e a sua mensagem não chegar para ninguém”, avalia o vocalista dos Lestics. “Consigo me ver passando o chapéu para gravar um disco, mas não consigo pensar em me inscrever em um edital”, completa Olavo, que avisa que a banda ainda tem muita lenha para queimar, uma vez que “como diriam Shakespeare e os gregos, tudo vale a pena se a alma não é pequena”.
Com vocês, Lestics:
Vocês estão lançando um disco novo agora, o “História Universal do Esquecimento”. É o terceiro trabalho do Lestics com formação de banda completa. Como vocês se sentem quanto a isso?
Olavo: Acho que a evolução mais legal que a banda alcançou no “História Universal do Esquecimento” é em termos de composição. As músicas estão mais ricas, mais fortes. Meu filho diz que é o disco mais maduro do Lestics. Acho que é por aí mesmo.
Umberto: Até o nosso quarto disco, “Aos Abutres”, sempre compus a grande maioria das músicas no violão. Quando decidimos rumar para o quinto disco eu simplesmente larguei o violão e fui compor no piano, e assim segui tanto para as minhas músicas quanto para as parcerias com o Patu e com o Lirinha, nosso ex-guitarrista. Isso definitivamente levou a banda para outros territórios, fazendo com que todos tivessem novas possibilidades em termos de arranjo. Hoje me sinto mais tranquilo com o som da banda ao vivo. Ainda estamos longe do que gostaríamos, mas estamos trabalhando forte para chegarmos lá.
Patu: Foram dois discos em apenas um ano, depois se passaram quatro anos com mais três discos, ou seja, na média, cinco discos em cinco anos. Esse [novo álbum] retrata o melhor momento da banda em termos de composição e arranjos. Sem dúvida, para mim, “Historia Universal do Esquecimento” é o disco mais bem produzido do Lestics.
Além da formação, que foi de um duo para um quinteto, e hoje é um quarteto, o que mudou do Lestics de “9 sonhos” pro Lestics do “História Universal do Esquecimento?
Olavo: O “9 sonhos” era um projeto. A gente nem tinha certeza de que havia uma banda ali. Com o “lestics” (o segundo álbum) o projeto cresceu, mas só virou uma banda de verdade com a chegada dos outros músicos. A formação que está estabelecida hoje – Umberto, Patu, Xuxa e Olavo – tem uma tremenda afinidade. Nós amamos tocar, compor e gravar juntos. E vamos tratando de fazer a música que nos interessa no momento. É por isso que o som vai mudando bastante também.
Xuxa: Sempre mudou, desde o começo, e essa é a graça.
Umberto: Tirando a questão da formação, muita coisa mudou. Nossos objetivos estão mais claros. Nosso comprometimento com a banda aumentou muito, bem como nossas horas de ensaio, nossa vontade de crescer musicalmente e principalmente nossa consciência de onde queremos chegar artisticamente.
O que motivou a saída do Lirinha? Como estão as coisas com ele e a banda?
Olavo: O que rolou foi um desencontro com o caminho musical que o Lestics estava seguindo. Não é o tipo de coisa que acontece de uma hora para a outra, é um processo. Mas é doloroso, porque a gente se gosta muito… E o Lirinha é um cara especialmente bacana e sensível, que trouxe contribuições muito importantes para a banda.
Xuxa: Divergências musicais…
Umberto: O Lira foi um grande parceiro no Lestics. Juntos, fizemos lindas canções e passamos um tempo maravilhoso de convivência. Ele é acima de tudo um grande amigo. Quando ele saiu da banda eu já esperava, mas pessoalmente lutei muito pela permanência dele. Infelizmente, ele tomou a decisão de sair. Fico triste pela banda, mas fico contente por ele ter conseguido tomar uma posição firme e decidir o que ele julgou melhor para ele. Desejo tudo de melhor para ele, que sempre estará na lista dos meus melhores amigos
Vocês fizeram um show na última semana, já sem o Lirinha. É diferente não tê-lo no palco?
Olavo: Estamos tocando com um guitarrista convidado, mas fazemos metade do show como um quarteto. A ideia é que, quando for preciso, esse guitarrista venha ao palco e faça as guitarras da maneira como elas foram arranjadas. Essa lacuna é uma coisa que nós tentamos não deixar em aberto. A ideia, por enquanto, é namorar alguns guitarristas e depois pensar melhor essa formatação. Por agora, estamos focados em lançar o disco novo e trabalhar nesse lançamento. Na sequência, com calma, vamos tentar resolver de uma vez por todas essa questão. Mas, na verdade, faz falta sim. Para entregar as músicas da maneira como nós queremos, é preciso mais uma guitarra, embora eventualmente toquemos como um quarteto, ou só voz e violão, e as músicas até podem acontecer ali. São canções, não são músicas muito dependentes de arranjos. Mas, repito: nos shows, queremos fazê-las com mais corpo, com mais arranjos, e para isso é importante ter aquela segunda guitarra lá.
Vocês pretendem fazer clipes das músicas do “História Universal do Esquecimento”?
Olavo: Sim. Antes de o disco sair oficialmente, vamos lançar o primeiro clipe, da música “O Baile”. Fiquei feliz com o resultado. Quem fez foi o Pipol, da Cronópios TV, que foi o cara que também produziu o documentário sobre a banda, em 2010. A coisa legal desse clipe é a participação do boxeador Éder Jofre. No vídeo, tem um contraponto entre ele, do alto dos seus 76 anos, se preparando para uma luta, e a gente se preparando para fazer um show. Foi muito legal gravar com ele, é um cara que foi bicampeão mundial de boxe, e eu sempre gostei do esporte. A letra dessa música é muito metafórica, e foi legal ter encontrado uma leitura diferente para esse roteiro.
Olavo e Umberto, vocês eram parte do Gianoukas Papoulas quando saiu o “9 sonhos” e o “lestics” (ambos de 2007). Como foi o processo do fim do Gianoukas? E por que vocês resolveram montar o Lestics?
Olavo: O Gianoukas Papoulas era uma banda incrível, tenho um puta orgulho de ter feito parte dela. Duramos uns bons anos e produzimos bastante, apesar de não termos lançado muitos álbuns. Gravar era bem mais complicado na época, dava mais trabalho, demorava mais. O projeto do Lestics surgiu porque eu e o Umberto queríamos fazer uma gravação simples e rápida. Decidimos compor um disco e gravar em casa, um negócio sem qualquer compromisso. Tínhamos uma mesinha de som, um computador zoado e um microfone. Compusemos e gravamos o “9 sonhos” em um mês. E foi uma delícia. Foi tão fácil que, depois de uns meses, logo falamos: “vamos fazer outro”. Saiu o “lestics”, que deve ter levado uns dois meses entre composição e gravação. Nessa altura, o Gianoukas Papoulas estava em outro pique, bem mais sossegado. Nós nos demos conta de que o ciclo do Gianoukas estava fechado, e ela acabou naturalmente, na boa.
Umberto: Foi a minha primeira banda que conseguiu registrar seu trabalho com qualidade. Quando entrei, a banda já tinha certo tempo de atividade. Foi tudo muito bom! Tenho muito orgulho dos Gianoukas e no fundo uma ponta de esperança de uma retomada, mesmo que seja só para nós mesmos, uns ensaios, sei lá. Somos grandes amigos independente da banda. Quando o Olavo mandou as letras do “9 sonhos”, com a ideia de realizar um processo mais caseiro, pois eu tinha armado um esqueminha de gravar lá na minha casa, a turma dos Gianoukas não estava no pique de encarar esse processo. Daí, abracei a causa e tocamos o barco eu e o Olavo. Gravamos e soltamos o disco online, e logo já veio o segundo. Durante esse processo, o nosso baterista, o Cameron, resolveu sair da banda. Ainda tentamos outros bateras, mas não rolou, daí resolvemos gravar as composições que tínhamos com um batera convidado. Fizemos as guias, gravamos a batera. Mas o processo todo deu uma travada e a banda também… Ainda tentamos retomar as gravações algumas vezes, mas não rolou.
Muita coisa mudou de cinco anos para cá no que diz respeito ao acesso à tecnologia necessária para uma boa gravação. Uma banda como o Gianoukas teria gravado de maneira mais fácil se estivesse nessa situação hoje?
Olavo: Acho que sim. Quando nós começamos a banda, em 1995, 1996, gravamos em quatro canais, depois gravamos ao vivo. Foram várias tentativas de fazer gravações simples ao longo da história da banda, mas com dificuldade de tirar um resultado razoável. Depois, gravamos o EP (2003), em estúdio, com um esquema legal, mas que leva grana e tempo. Quando fizemos o “Panorâmica” (2005), também fizemos em um bom estúdio, mas a gente tinha um selo que estava bancando, foi um lance bem bacana. Quando começamos a pensar no sucessor do “Panorâmica”, saiu o baterista, e o esquema do selo não existia mais, precisava de grana e tempo para gravar, era uma coisa bem complicada. E nós não tínhamos um esquema de home studio para gravar legal. Não queríamos dar um passo atrás na produção, porque já tínhamos passado por muita coisa. O Lestics começou muito na humildade, enquanto o Gianoukas não podia mais gravar sem infraestrutura. E, na verdade, tudo foi muito demorado, com um timing mais complicado, e aí acabamos terminando. É uma banda que acho admirável, e que conseguiu ter a proeza de ser menos conhecida que o Lestics. Tocando o “foda-se” na modéstia, acho que o Gianoukas tinha um potencial muito bom. Mas acho que faz um pouco de sentido as coisas terem terminado. Nada é feito para durar. É legal que ela encerrou o ciclo dela em um ponto bom, e isso é importante. Eventualmente, o Lestics também vai se encerrar, e espero que isso demore a acontecer, mas que quando vier a acontecer, que também seja na hora certa. Que não seja algo que passe da hora ou que aconteça mais cedo do que deveria.
E quando foi que o Lestics resolveu que tinha de deixar de ser uma dupla para ter formação de banda?
Olavo: Foi logo depois do “LesTics”. Nós tínhamos músicas legais, e queríamos muito tocar essas músicas ao vivo. E nós não queríamos fazer o formato de dupla para elas, porque as músicas tinham arranjos legais, com baixo, guitarra, violão, programação de bateria. Resolvemos então chamar gente para tocar conosco. Primeiro chegou o Patu, depois passamos por algumas mudanças de formação, mas a partir do momento que resolvemos nos assumir como banda e fazer shows dessa maneira, não tinha mais volta.
O que o “História Universal do Esquecimento” traz de novo?
Olavo: Acho que nós somos uma banda que não se acomoda. Entre todos os nossos discos, consigo ver uma tentativa de evolução sempre, do ponto de vista de produção, de composição, de acabamento, mesmo que exista em todos os discos algo de caseiro e de tosco. Existe uma tentativa de não se repetir, não faz sentido para nós fazer música que a gente já fez, mesmo que isso tenha sido bem sucedido. Queremos fazer outras coisas. No próximo disco, vamos tentar fazer as coisas ainda mais do caralho. O segundo ponto é tentar cada vez mais melhorar um pouco a divulgação, descolando lugares mais legais para tocar, ter uma apresentação bacana. Tentar sempre tocar em lugares com estrutura legal, com técnico de som, e tentar melhorar o nosso show, entregando melhor as músicas ao vivo. Estou tentando melhorar o que eu faço. Quero ainda fazer a letra que eu acho do caralho. Não estou perseguindo uma coisa impossível. Eu quero mesmo fazer essa letra, essa grande canção. É isso que nos move.
O que é o Lestics para vocês?
Olavo: Quatro caras, cinco discos, cinquenta músicas.
Xuxa: Uns caras que sempre me imaginei tocando junto… Às vezes quero matá-los, mas passa!
Umberto: Vontade de fazer música como a gente gosta e como a gente sabe.
Patu: É a minha banda. Com certeza, a minha vida teria muito menos graça sem o Lestics.
E como surgiu o nome da banda?
Olavo: Tirei esse nome de um livro médico antigo, que trata de tiques nervosos. Na época, a ideia de um impulso involuntário e incontrolável me pareceu ilustrativa da minha relação com música. O que fiz foi juntar as duas palavras, “lestics”, para que o nome não tivesse com um significado tão fechado.
Umberto: Olavo sugeriu o nome, gostei, nem perguntei o que queria dizer. Gostei do som, achei que tinha boa vibe, daí ficou.
Vocês já pensaram em regravar as canções dos dois primeiros discos com a formação atual?
Xuxa: Penso em regravar algumas das músicas que não gravei e que eu adoro ouvir.
Umberto: Gosto do som lo-fi do “9 sonhos” e do “lestics”. Se eu pudesse regravar algo, refaria o disco “Hoje”. Adoro as canções, porém não ouço muito esse disco.
Patu: Como diria Lennon, “a vida é aquilo que acontece enquanto você está fazendo outros planos”.
É uma pergunta ingrata, mas como vocês definiriam o som do Lestics? Dá para chamar de folk? Ou rock? Ou pop?
Olavo: Tem um tanto de rock, de folk, de country, de blues, de coisas brasileiras. Mas, aqui para mim, o que nós fazemos mesmo é pop. É um pop imperfeito, mas não deixa de ser pop.
Xuxa: Pop no melhor sentido da palavra.
Umberto: O som do Lestics sempre foi muito definido pelo meu jeito de tocar violão, aliado à maneira com que o Olavo escreve e canta. A sonoridade da banda sempre girou em torno do violão, com todos sempre buscando criar um clima gostoso pro Olavo cantar. Não seguimos fórmulas ou gêneros musicais. Faço música sem pensar nisso. Sempre ouvi de tudo, portanto tudo para mim é referência e fonte de inspiração. Fujo dos rótulos, mas no final das contas acho que temos um som meio “soft-rock”. Para mim, “pop” não é gênero, é uma qualidade. O Lestics tem muita coisa pop e muita coisa que não tem essa pegada, mas certamente não é algo que buscamos, acontece naturalmente.
Patu: O que importa é a canção… Tudo gira em torno dela e a alimentamos de tudo que ela precisa. É um processo natural. Estamos sempre em busca da melhor canção que ainda não fizemos.
Acompanhando a banda ao longo dos anos, percebo que vocês são um grupo que faz poucos shows. Por que isso acontece?
Olavo: A grande questão é que a gente não consegue se dedicar integralmente à banda. Logo, o nosso tempo pro Lestics é meio cronometrado. Além disso, para fazermos muitos shows, eles teriam de ser espalhados pelo Brasil, porque não adianta ficar só fazendo show em São Paulo. Uma hora as pessoas vão se encher da gente. Não queremos saturar de shows por aqui, então sempre fazemos coisas quando estamos lançando trabalhos, e fazemos apresentações esparsas entre discos. Além disso, nós não conseguimos fazer shows enquanto estamos em processo de gravação, porque dedicamos todo o nosso tempo para a gravação nesse período. Enquanto estamos compondo, dá para fazer shows, mas assim que começamos a fazer os arranjos, não dá mais. Nos próximos meses, vamos voltar aos palcos, e estamos testando já as músicas novas ao vivo.
Tem uma média de shows por ano?
Olavo: Fazemos uns quinze, vinte shows por ano. O que é pouco. Mesmo considerando que a banda tem períodos de inatividade, é pouco.
Faz falta?
Olavo: Claro que faz. É importante para uma banda se apresentar. Quando conseguimos engatar uma sequência de shows, é evidente que os últimos são mais legais que os primeiros. E é muito legal fazer show. Adoramos estar no palco, mostrar as músicas. Eu e o Umberto gravamos os nossos dois primeiros discos em um quartinho, com uma infra muito ruim, e o som ficou OK dentro daquela limitação. Nos shows, conseguimos fazer as músicas daquela época com uma pegada de banda completa. Tocar essas músicas para as pessoas com mais força é bem interessante.
E a ideia de gravar um disco ao vivo, está de pé?
Olavo: Nós costumamos brincar: “ah, o sexto disco do Lestics vai ser um disco ao vivo”. Mas não sei não, porque a gente fica se coçando para compor, e se me largarem sozinho já saio escrevendo letras. Talvez a gente faça, mas precisa de uma infraestrutura legal. Não é uma ideia descartada, talvez role no ano que vem, mas não faço a mínima ideia de quando isso vai acontecer.
Como é o processo de composição dentro da banda? Existe uma receita?
Umberto: O Olavo escreve livre. Não temos influência na escolha dos temas e assuntos abordados por ele nas letras. Tenho pessoalmente uma ligação muito forte com as letras dele, muitas vezes leio e choro, ele fala por mim. Procuro sim, e sempre, criar um elo entre a letra e a música. Esse é o meu trabalho no Lestics – traduzir em harmonia as letras do Olavo e criar junto com ele as nossas canções.
Olavo: Na maior parte das vezes, o que acontece é o seguinte: nós resolvemos que vamos fazer um disco novo, e aí começamos a escrever. Eu funciono meio que sob encomenda. Começo a escrever as letras, e vou acumulando, três, quatro, cinco letras. Paralelamente, o Umberto e o Patu começavam a fazer as músicas. Eventualmente, nós nos reunimos na casa de alguém ou no estúdio, ou grava a música numa base de violão e de piano, manda para mim, e aí começo a pensar letra que caberia naquela música. Procuro nunca escrever uma letra em cima de uma música, até para evitar uma métrica já determinada, porque sou eu que costumo fechar as melodias vocais e prefiro fazer isso com mais liberdade. Fazer uma métrica muito fechada seria algo tosco para mim. Prefiro fazer a melodia com alguma dificuldade, para que a música me imponha algum desafio. Esse desafio me ajuda a criar melodias menos óbvias. Às vezes, acontece de eu chegar com uma melodia já feita – no “História”, isso rolou em apenas uma música. Não consigo chegar a algum lugar e fazer uma letra na hora. Não tenho facilidade para escrever letras do nada. Puxo um fio, uma ideia mais ou menos tosca, e vou trabalhando até chegar a alguma coisa boa. Não é que eu não faça letras ruins: faço muitas, mas não deixo as ruins chegarem até os outros. Jogo muita letra fora, mesmo que tenha me dado um baita trabalho. Se a letra vem a ver a luz do dia, é porque acho que ela vale a pena. Mas mesmo as letras mais simples não são facilmente construídas.
E como os temas para as letras chegam à tua cabeça?
Olavo: Cara, com relação a temas, não é muito é uma escolha. São coisas que estão em mim, que vieram de fábrica. São questões que me movem. Não escolho um tema. Poderia fazer isso, acho legítimo, mas não é meu modo de trabalhar. Tem temas que eu adoraria abordar, mas isso não flui na minha maneira de escrever.
Que temas são esses?
Olavo: Na verdade, não é nem que eu gostaria de escrever, mas que admiro muito. Acho legal quem consegue falar da realidade do país, com uma visão menos pessoal, mais ampla, falar da sociedade, mas sem ser panfletário ou dogmático. Se eu fizer, vai ficar bisonho. Se algo não está em você, isso transparece quando você escreve sobre isso.
O que você disse me lembra de algo que se diz muito sobre o Manuel Bandeira, que se considerava um poeta menor, mas que escrevia coisas muito universais. Sinto algo parecido nas letras de vocês.
Olavo: Acho que acontece isso. Algumas pessoas se identificam com as letras, curtem, acham que as coisas que a gente diz ali faz sentido para elas. Acho que o fato de eu morar em São Paulo, não sendo daqui, mas do interior, essa tentativa de se encaixar nesse lugar acaba aparecendo na letra. Mas é uma cidade que muita gente não é daqui e vive o que eu vivo. Por outro lado, não é uma preocupação minha que as pessoas se identifiquem com as letras. Se acontecer, acho do caralho. É emocionante para mim quando alguém fala que curte as minhas letras, mas isso não passa na minha cabeça quando vou escrever.
Tem alguma música, de todo o repertório de vocês, que seja a sua “filha única”, a sua maior realização como letrista?
Olavo: Já disse: não deixo as letras ruins ver a luz do dia, e acho que temos letras legais na banda. Mas sem ser falsamente modesto, acho que ainda estou para escrever a grande letra da minha vida. É uma constatação: nenhuma das minhas letras é A letra.
Tem alguma que chegou perto de ser essa letra?
Olavo: Acho que a letra de “Travessia” é uma que quase chegou lá. (silêncio). “Tropeço” é uma letra que gosto também. Depois que virou música, não consigo mais separar a letra da música. Não vejo minhas letras como letras para serem lidas, elas não são literárias. Elas não têm essa potência. São ideias que se realizam dentro da canção. Em “Tropeço”, adoro a maneira como a letra se resolve. “Náusea” tem a mesma coisa: dentro da música, aquela letra se fortalece. É uma questão de conjunto. De maneira geral, gosto bastante do nosso trabalho (risos), não sou um frustrado.
As letras do Lestics têm imagens muito fortes e passagens bastante visuais. Como você vê isso?
Olavo: Quando escrevo uma canção, o que me dá o gatilho para escrever pode ser uma imagem, ou uma imagem cinematográfica – mesmo que a letra possa ir para outro lado quando começo a trabalhar nela. Acho do caramba letras narrativas. Em música caipira tem muito disso, com letras que contam sagas enormes. Quando consigo fazer uma letra dessas, fico bem feliz. E algumas letras são imagens mesmo, e às vezes tem muita coisa a ver com cinema. Gosto muito de cinema. “Bah, mas isso é óbvio”.
É. Se você não gosta de cinema, você tem algum problema (risos)…
Olavo: É bem por aí. É para isso que o negócio existe!
Mas que cinema você ama?
Olavo: Gosto muito de cinema italiano, dos anos 60, 70, do Scola, do Fellini, do Pasolini, do De Sica. É uma fase áurea. Gosto muito dos russos, Sokurov, Tarkovsky, gosto muito do Bergman. O meu gosto é muito óbvio, ninguém vai descobrir nada diferente. Acho o Cassavetes e o Paul Thomas Anderson caras bem massa. Mas posso passar horas citando caras aqui e ninguém vai descobrir nada fora do cânone.
Outra pergunta de referências, então. Chegam para você e falam: Olavo, você está indo para uma ilha deserta, e só pode levar cinco discos. Que discos seriam esses?
Olavo: É óbvio que isso não vai dar certo (risos), mas partindo do princípio que isso não vai dar certo, vamos lá: “It Takes a Nation of Millions to Hold Us Back”, do Public Enemy… Nossa, que bosta, essa pergunta é muito ruim, cara. “Sign O’ The Times”, do Prince (silêncio); “Exile on Main Street”, dos Stones; (outro silêncio) “Abbey Road”, dos Beatles; e… Puta que pariu, (mais um silêncio), sei lá, cara… Vou chutar, “What’s Going On”, do Marvin Gaye.
Sem brasileiros na lista?
Olavo: Sem brasileiros… Engraçado isso. Acho que vou ter que complementar essa resposta (risos).
Aí não vale!
Olavo: Gosto muito de música brasileira, na verdade, ouço muito samba, mas também ninguém vai descobrir me perguntando sobre música. Gosto do João Bosco, do Nelson Cavaquinho, do Cartola… Dessa moçada que faz som hoje, tem nomes muito legais que são pouco conhecidos. O Beto Só é um cara que acho foda. Ele é desconhecido da mesma maneira que o Lestics é desconhecido. Acho que a minha geração tem muita coisa boa e desconhecida. “Ah, mas é injusto que ninguém conheça”? Sei lá, justiça não entra nessa conta. Tem muita coisa legal sendo feita por aí, eu poderia passar horas citando nomes. Adoro o Rômulo Fróes, que é um pouco mais conhecido… Conhecido… Se eu sair na rua e perguntar “quem é Rômulo Fróes?”, as pessoas não vão saber dizer.
Lá fora, na Augusta, talvez saibam…
Olavo: Mas acho bem difícil que isso aconteça duas ruas depois da Augusta. E isso é uma judiação. Mas, voltando, gosto muito de música brasileira. Escreve isso aí, porque seria injusto com a música brasileira e comigo, porque eu faço música brasileira.
Você se sente à vontade cantando em português?
Olavo: Totalmente! Já escrevi em inglês quando era mais menino, mas isso, na real, no meu caso, era uma questão mesmo de precisar pegar mais segurança para escrever em português. O que nós fazemos hoje, e para mim isso fica bem claro no “História Universal do Esquecimento”, não é exatamente rock, pop. Não consigo descrever um gênero. Dizer só que é rock não vai explicar muito, mas, de outra maneira, o rock é uma linguagem que incorporou tanta coisa que até cabe chamar de rock sim. Qualquer coisa é rock, acho, mas tem um tanto de música brasileira ali, que é fácil de ser encontrada nas harmonias. O que tenho para me comunicar é a minha língua. O Wilco não pode fazer música em português, e acho que no Brasil, a única coisa que pode me fazer sair na frente do Wilco é cantar em português.
Como é que é?
Olavo: É importante ter a dimensão da barreira da língua, que é algo que as pessoas sentem. É mais fácil ser espontâneo escrevendo em português do que em inglês. Quando escrevo em inglês, eu faço um voo de galinha em termos do que eu poderia expressar. Escrever em inglês estreitava a minha oportunidade de pensar. A palavra, o som da palavra e o sentido são coisas que se puxam, e em português isso é mais claro para mim. Isso é uma limitação minha. Por outro lado, a menos que exista o propósito de ter carreira internacional, acho que não faz muito sentido escrever em inglês, hoje, no Brasil. Nós, no Lestics, queremos falar com as pessoas daqui. Não quero ir para fora, quero fazer música para brasileiro ouvir. Agora, quando o cara consegue fazer isso e conquistar um mercado no exterior, como várias bandas independentes vem conseguindo, acho do caralho.
E o que você acha da sua própria voz?
Olavo: Não sou um grande cantor, com aquela voz de Agnaldo Rayol. Acho isso tolerável, porque sou eu que faço as melodias e as letras, sou intérprete de mim mesmo. Tenho minhas limitações, mas venho melhorando com o tempo. Canto melhor agora do que eu cantava tempos atrás. Não desgosto da minha voz gravada cantando, mas acho bizarro o som da minha voz falando. Com todo mundo é assim: você nunca ouve sua voz como ela é de verdade. Acho legal. Tenho minhas limitações, mas ela serve bem para contar legal as histórias e conversa bem com as minhas melodias.
Tem algum cantor no qual você se espelha ao cantar?
Olavo: Não. Tento não afetar, modular ou mexer muito na minha interpretação. Todo mundo que não canta assim, eu gosto. Mas gosto demais de música. Sou fã de muitos cantores e cantoras, mas não tenho um espelho. Até porque voz é fogo: você só pode dar o tiro com a sua espingarda. Óbvio, tenho muitos modelos a partir do que eu ouço, mas conscientemente, não tenho disso não.
De que música vocês gostariam de gravar uma cover?
Olavo: Acabamos de gravar “Poor Places” do Wilco, para um tributo aos dez anos do “Yankee Hotel Foxtrot”. É uma das bandas que eu mais adoro, sou bem fã mesmo. A gente curtiu bastante o processo, dá vontade de fazer de novo.
Xuxa: “The Weight”, da The Band.
Umberto: “Tower of Babel”, do Elton John.
Patu: “Harvest Moon”, do Neil Young.
E como foi a experiência de gravar uma música de outra pessoa, Olavo?
Olavo: Quando eu estava no Gianoukas, gravamos uma cover para “Teu Inglês”, do Fellini, e sempre fazíamos versões nos nossos shows. Quando tinha pouco tinha um, quando tinha muito, tinha dois. Era divertido. No Lestics, não sei por que, temos dificuldade em fazer isso. Uma vez, fizemos “One Man Guy”, que é do Loudon Wainwright III, e que foi gravada pelo filho dele [Rufus]. Além do Wilco agora, rolou também uma vez “A Horse With No Name”, do America. Foi bem legal gravar “Poor Places”. Das bandas contemporâneas, o Wilco é uma das que eu curto mais. Topei na hora quando surgiu o convite, mas foi algo feito muito em cima da hora, então fizemos bem rapidamente. Tiramos a música, pensamos em como a gente poderia deixá-la com a nossa cara, fomos para o estúdio e gravamos bem rápido. Eu achei um tesão, mas é uma responsa enorme tocar uma música dessas. Eu adoro o original, obviamente, e gostei do resultado quando a gente gravou. Logo depois, desgostei tremendamente, mas agora estou gostando de novo.
E você consegue se ver compondo para outra pessoa?
Olavo: Ah, acho que não. Você diz, compondo de encomenda para que outra pessoa cante?
É.
Olavo: Não sei, cara (risos). Não me passa essa ideia pela cabeça.
E quem vocês gostariam de ver tocando Lestics? E qual música?
Olavo: Zé Ramalho tocando “Plano de Fuga”.
Xuxa e Patu: Maria Bethânia cantando “A mesma decepção”.
Umberto: Caetano Veloso cantando “Leve”.
Vocês vivem financeiramente da banda?
Todos: Infelizmente não.
O que fazem nas suas horas não vagas então?
Olavo: Ganho a vida trabalhando com propaganda.
Patu: Trabalho em TI.
Umberto: Eu ganho a vida como professor de música.
Rola uma tristeza ou decepção por não viver de música, especialmente em um momento que há uma facilidade de mostrar seu trabalho para o público?
Olavo: Essa facilidade em mostrar o trabalho é relativa. A internet é um território em que você disputa a atenção das pessoas com milhões de outras bandas, outros clipes, outras notícias. E não adianta ter um canal se esse canal não tiver visibilidade. O nó da questão está aí… Ok, existem artistas que conseguem se promover por conta própria. Alguns poucos fazem isso muito bem, até. Só que na maioria das vezes a indústria musical ainda negocia a grande visibilidade.
Xuxa: O problema é que qualquer um faz qualquer coisa, entrega de graça, e isso banaliza a arte. E também influencia na grana, porque quem poderia cobrar é engolido pelo cara que faz de graça, mesmo que com uma qualidade inferior.
Olavo: Sei não… A gente disponibiliza todos os nossos discos de graça no site da banda. Sempre foi essa a nossa escolha. Com isso, estamos banalizando a nossa música? Talvez estejamos, numa certa medida. Mas é o jeito de fazer o trabalho alcançar mais pessoas. Fato é que a oferta de informação é muito grande, e o tempo das pessoas é curto… Tudo é consumido e descartado numa velocidade absurda. Pelo menos eu acho absurda – um entre muitos sinais de que estou ficando velho e um pouco ranzinza.
Umberto: Para mim, a grande dificuldade é que todo mundo sofre de uma falta de atenção hoje em dia. O cara ouve 30 segundos de uma música e já passa para outra, ou pior, já vira pro lado para fazer outra coisa. As pessoas não encontram mais tempo para ouvir um disco inteiro, o conceito de “álbum” acabou se perdendo com os iPods da vida. É muita informação e pouca atenção. Acho que a falta de disponibilidade das pessoas para irem a shows de bandas novas vem um pouco daí.
Patu: Em relação à grana, é muito complicado ter essa ‘dupla jornada’. Às vezes, durante o dia, rolam reuniões intermináveis no trabalho, stress etc. E depois de algumas horas, lá estamos tocando. A tristeza vem daí: de nem sempre poder estar inteiro para banda.
Ainda falando sobre indústria: vocês já se pegaram pensando no Lestics tocando nas rádios e sendo trilha da novela das oito? Ou isso faz parte do passado dentro da indústria musical brasileira?
Olavo: Na verdade, nunca me pego pensando nisso, e não é por não desejar que aconteça. Adoraria tocar no rádio ou na novela – assim como adoraria ganhar na loteria, ou que inventassem um remédio efetivo contra a queda de cabelo. Mas essas coisas não estão acontecendo, e eu não gasto tempo fantasiando a respeito. Minhas motivações para fazer música são outras, felizmente.
Xuxa: Já pensei sim, acho que a banda tem boas músicas, que caberiam em qualquer lugar. Acho legal porque isso dá visibilidade e pode abrir outras portas.
Umberto: Pensava nisso quando comecei a ter banda, no final dos anos 80. Hoje não tenho esse foco. Eu teria que produzir música que não gosto de ouvir e muito menos de tocar, o que me traria, artisticamente, muita frustração. A indústria fonográfica vive basicamente das figuras “pop” que aparecem a cada verão, de um ou outro medalhão da MPB e dos filhos de artistas famosos dos anos 70 e 80. Isso não me entristece nem me seduz. Vivo para fazer a minha música e não para tentar chegar aqui ou ali. Chegaremos aonde tivermos que chegar. Meu objetivo sempre foi fazer uma discografia de respeito, que eu possa escutar com prazer, e se um dia alguém ouvir e gostar, para mim está bom.
Patu: Apesar de ter certeza que o Lestics poderia fazer parte de alguma trilha sonora de novela, não é isso que nos move. Como o Olavo disse, nossas motivações são outras.
Olavo: Eu trabalho, ganho dinheiro e tenho minha profissão. Faço música porque gosto de fazer. Se quiserem me dar grana para fazer música, vou adorar. Mas não tem ninguém me dando dinheiro para isso, e não vou parar de fazer o que faço só por causa disso. Não sou ingênuo com relação ao que são os meios de comunicação, o que é produto, o que é indústria cultural, o que é política cultural. Não estou fazendo um “Poliana, sou feliz e tudo bem”. É uma discussão longa, e acho que não dá para recair na tosquice de falar mal do arrocha, do Michel Teló, da Gaby Amarantos… Eles estão fazendo o som deles. O interesse econômico existe, e os meios de comunicação tocam uma pilha danada nisso, com rodeios e shows megalotados, com uma música que as pessoas curtem. “Ah, mas as pessoas curtem só aquilo?”. Acho que as pessoas podiam curtir aquilo e outras coisas mais, mas aí entramos na questão do interesse, do quanto é mais fácil vender um produto massificado. O que eu faço hoje no Lestics não é a bola da vez como interesse econômico.
E se fosse, ela teria chance de ser popular como a música do Michel Teló?
Olavo: Não sei, nunca chegamos nesse nível para descobrir se as pessoas iriam curtir. A música do Michel Teló é adequada para pular, para curtir, elas têm o seu momento. E as pessoas têm as baladas que elas costumam ouvir em outra hora. Elas não “tiram o pé do chão” vinte e quatro horas por dia, e eventualmente elas poderiam curtir outras coisas. Mas aí… (silêncio). E não falo da minha banda especificamente. Talvez ela não seja pop ou redonda o suficiente, mas existem gente da minha geração fazendo música popular, e que não consegue alcançar um público maior. Não estou defendendo a minha causa. Estou defendendo a ideia de que o espaço é ocupado essencialmente pelo interesse da grana. E isso não é desvalorizar quem está fazendo o sertanejo, o arrocha, o axé, o tecnobrega. Eles fazem a música deles lá, alguns com mais espontaneidade e verdade… Como tudo no mundo. Tem muito mais coisa ruim do que boa no rock, e isso acontece em qualquer gênero. Coisas boas são difíceis de fazer. Sempre que aparece um cara com um molho especial, vem um monte de cópias depois. É assim, e como pequenas variações tem “tchetcherere” dos mais variados, é uma fabriquinha de músicas sendo consumidas e descartadas. Num mundo ideal, as pessoas teriam acesso a mais variedade, mais repertórios, a mais artistas e os meios de comunicação se abririam para outros tipos de produção.
A Internet não ajudou nesse sentido?
Olavo: A Internet é algo do caralho, ela dá canal para um monte de gente que não tinha canal, e chega a um monte de gente que queria ouvir outras coisas. Quando eu morava no interior, cada disco diferente que eu conseguia era uma vitória. Não existia um acesso grande a músicas ou bandas novas, eu sempre acabava achando coisas novas no meio de um saldão. Aconteceu isso comigo: no meio de um monte de discos de novelas, apareceu um disco do Jonathan Richman. O cara que colocou lá no meio não fazia nem ideia do que estava vendo na frente. Estou contando uma historinha, mas o acesso era muito difícil. Se eu tivesse internet aos 14 anos, teria ficado louco. Mas, por outro lado, vivemos num país que ainda vê televisão demais. Quando você usa a internet como canal de divulgação, você já sabe que você vai chegar a um público interessado e bem segmentado. Mas está lindo: baixam os discos do Lestics no Brasil inteiro, em lugares que não chegaríamos nem fodendo se precisássemos de distribuição. Não é muita gente, mas é gente em tudo que é lugar. É bacana para caramba isso.
Você falou de política cultural, e eu queria te perguntar sobre o que você acha de edital público para gravação de discos, seja via empresas ou secretarias de cultura municipais e estaduais…
Olavo: Acho que a cultura no Brasil é um patinho feio, porque recebe muito pouco recurso. Além disso, acho que é muito pouco entendida a necessidade de se investir em cultura. Quando tem um pouco de grana disponível, já vira o maior quebra pau. O país precisa investir em cultura. Investir em cultura é, além das fórmulas das grandes corporações, fomentar, criar caminhos para que a arte seja produzida e chegue às pessoas. Não adianta pegar dinheiro público, resolver seu problema e não chegar para ninguém. Eu não entraria num edital para gravar um disco, mas não acho ilegítimo quem entra. De verdade. Se esse dinheiro proporcionar shows de graça, é legal. Fazer por fazer, acho meio viagem usar dinheiro público. Tem que existir uma ideia desse trabalho artístico chegar às pessoas que estão pagando a conta. Não adianta dizer: “ah, mas foi a empresa que pagou!”. Não foi, foi isenção fiscal, dinheiro que teria ido para o erário. Nos “países desenvolvidos”, o estado fomenta a cultura. Não dá para deixar isso largado na mão do mercado. Se só o mercado mandar na cultura, o que vai existir? Aliás, muita coisa que é bancada pelo dinheiro do Estado vira um negócio extremamente mercadológico. E aí a marca sai ganhando duas vezes: porque vendeu seu produto, e porque ajudou um artista com isenção fiscal. Se o dinheiro é público, é legal que ele seja investido em manifestações culturais. O país não vive só de stand-up, e de música e cinema feitos com intuito comercial. E é importante que essa cultura produzida sem viés comercial chegue até as pessoas. Não adianta ter uma banda felizona, um diretor todo metido ou um grupo de teatro todo pimpão se as pessoas não tiverem esse contato. As pessoas precisam pensar mais, serem mais infelizes de alguma maneira (risos), abrir horizontes. Assim o país pode respirar um pouco mais.
E sobre crowdfunding, o que você acha?
Olavo: É melhor ainda, porque é bacana. Acho do caralho quem consegue. Se é um caminho? Não sei. Acho um sistema muito recente, totalmente legítimo, legal demais, sei lá. Para quem tem uma base de fãs legal, acho excelente na verdade. Vai funcionar mais para frente? Talvez funcione cada vez melhor. Se é uma opção para o Lestics? No futuro. Acho que consigo me ver passando o chapéu para gravar um disco, ao contrário de me inscrever num edital. É um perrengue que não estou a fim de passar. Mas se eu entrasse, tentaria fazer isso ser revertido de algum jeito. E fazer isso não é roubar o leite das crianças na merenda escolar, porque a verba para a cultura é pouca sim, em termos absolutos. Às vezes, existe por aí uma ‘miguelagem’: “ah, está investindo em cultura, mas tinha que construir mais casas”. Porra, é óbvio que tem que construir mais casas, tem um puta déficit habitacional no país! Tem pessoas vivendo miseravelmente, escola caindo aos pedaços, mas não é por causa do dinheirinho da cultura que isso está acontecendo. O motivo é outro. O Brasil precisa de educação e de cultura.
Para encerrar: se Shakespeare e os gregos já disseram tudo antes, vale a pena ter uma banda, escrever músicas novas e dar entrevistas?
Xuxa: Eles disseram quase tudo…
Umberto: Não temos a pretensão de contar nenhuma “novidade”, mas sim de falar do que a gente gosta do nosso jeito.
Patu: Vale a pena, porque temos almas atormentadas de um gênio!
Olavo: Tudo vale a pena quando a alma não é pequena, como diriam Shakespeare e os gregos.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista, escreve para o Scream & Yell desde 2010 e assina o blog Pergunte ao Pop.
– Fotos de Liliane Callegari (http://lilianecallegari.com.br/) de um show no Sesc Consolação, São Paulo
Leia também:
– Quatro vídeos do Lestics ao vivo em São Paulo, por Marcelo Costa (aqui)
– Aos Abutres”, Lestics: Pop da melhor qualidade, por Marcelo Costa (aqui)
– “Em faixas como ‘Velho’, a banda consegue quase tocar o céu”, por Adriano Costa (aqui)
– “9 Sonhos” e “les tics”, dois discos para baixar agora, por Marcelo Costa (aqui)
2 thoughts on “Scream & Yell recomenda: Lestics”