Cinema: Em “Na Estrada”, Walter Salles é fiel ao clássico beatnik, mas pisca o olho para a Geração Crepúsculo

por Marcelo Costa

Em seu genial livro “Dicas Úteis Para Uma Vida Fútil”, que tem o subtítulo de “um manual para a maldita raça humana”, o escritor Mark Twain define que “viajar é fatal para o preconceito, a intolerância e as ideias limitadas. Não se pode ter uma visão ampla, abrangente e generosa dos homens vegetando num cantinho do mundo a vida inteira”. É um pensamento bastante interessante, que poderia ser o prólogo de “Na Estrada” (“On The Road”, 2012), novo filme de Walter Salles, se o filme já não fosse literário demais.

Literário, bem… É famosa a citação do afiado escritor Truman Capote, que após ler “On The Road”, o livro de Jack Keroauc, teria dito: “Isso não é literatura, é datilografia!”. Porém, o que Capote e praticamente todo o meio literário sério do final dos anos 50 não entendeu é que “Pé Na Estrada” (como o livro foi chamado no Brasil) era mais do que literatura, era praticamente um álbum fotográfico que flagrava o que Henri Cartier-Bresson definiu como “o instante decisivo”, neste caso bastante amplo, de uma geração à margem do american way of life.

É importante enfileirar essas citações porque Walter Salles procurou ser bastante fiel não só à narrativa, mas também ao que simboliza o livro para toda uma geração, e principalmente para o mundo atual, afundado em um capitalismo desenfreado que resultou em distorções distópicas bastante relevantes, como o mundo produzir mais comida do que se consome (e ainda assim termos milhões de pessoas passando fome) ou termos mais casas vazias construídas do que pessoas sem teto (e ainda assim, os viadutos e as favelas estão lotados).

Em “Na Estrada”, a fotografia de Eric Gautier é um dos personagens principais, permitindo ao roteiro recortado simular o livro com a precisa imprecisão característica das diferenças das duas artes, e o resultado é um road movie poético, difícil e contestador. Como o livro. Ou como um álbum de fotos que a pessoa vai passando e se surpreendendo com cada imagem no papel. Salles – auxiliado pelo roteirista Jose Rivera – picota a trama tentando passar ao espectador a vivência da viagem, a experiência da estrada, mas não deixa buracos na história.

A história. Nova York. Logo após a morte do pai, Sal Paradise (Sam Riley), um jovem de 23 anos que quer ser escritor, conhece Dean Moriarty (Garrett Hedlund), um ex (eterno) ladrão de carros recém livre da cadeia, e sua namorada Marylou (Kristen Stewart), que é noiva de um marinheiro em Denver (tudo bem, Dean também namora Camille – Kirsten Dunst –, que mora em São Francisco), e os três se tornam amigos. Sal sonha em atravessar o país, ver pessoas, colher histórias, tudo isso para escrever um livro, e segue seu destino durante quatro anos.

Os personagens são todos reais (o que fica explicito no manuscrito original do livro, publicado em 2007), com os nomes adotados na versão que chegou às livrarias 50 anos antes. Sal Paradise é Jack Kerouac, Dean Moriarty é Neal Cassady, Marylou é Luanne Henderson, Camille é Carolyn Cassady, Old Bull Lee é William S. Burroughs, Jane é Joan Vollmer, Carlo Marx é Allen Ginsberg, e Terry é Bea Franco. Claro que há fantasia na história original, valorizada pela fotografia no filme, mas ainda assim “Na Estrada” é um interessante retrato de época.

Vivendo completamente à margem da sociedade, o trio Sal/Dean/Marylou avança numa experiência de liberdade que chacoalhou os alicerces da sociedade norte-americana (e mundial) nos anos 60 movidos por sexo livre, drogas, roubos e jazz (os assaltos do trio – e de boa parte que os seguiram nas décadas seguintes – não eram apenas a postos de gasolina e supermercados, mas também à cultura negra, um paraíso criativo, instigante, mas extremamente perigoso, ainda mais nos anos 40 – periodo retratato no livro).

É nesse cenário de caos, pobreza e desordem que surgem as fotografias de Sal: uma spanglish que precisa cuidar do pai e do irmão pequeno e que ganha dinheiro colhendo algodão; um tiozão que não é muito chegado em mulheres; um velho professor com uma boa mira na espingarda de dois canos e sua esposa “excêntrica”; um discípulo de Rimbaud que sonha em ir para a África transar com negros; um casal recém-casado cujo marido deixa a esposa para cruzar o país com os amigos; um pai inexistente; um jazzista; um país de pessoas sem nome.

Walter Salles não desperdiça o excelente elenco que tem em mãos, e, apesar de curtas, as passagens de Viggo Mortensen, Amy Adams, Steve Buscemi, Elisabeth Moss (que muita gente conhece como Peggy Olson, da série Mad Men) e Alice Braga são marcantes, como se fossem pequenas portas abertas em uma casa, que permitem adentrar ambientes decorados, que não mudariam a história se permanecem fechadas, mas ampliam o olhar para o todo (um artificio que os irmãos Coen transformam em arte em alguns de seus melhores filmes).

No fiel da balança cinematográfica, “Na Estrada” é um pequeno e bonito épico artístico que vai muito além do olhar raso do espectador que vê no filme apenas atores hollywoodianos seminus (uma redução tão tola quanto a de Truman Capote). Walter Salles foi respeitoso com o livro que trouxe para os holofotes uma geração boêmia, nômade e inconformista, mas o mérito do filme (diferente do que muitos esperavam e/ou queriam) não é inspirar como o livro, mas sim analisar o passado e coloca-lo em contraponto com o presente através de uma história de redenção pessoal (sob o olhar atento de Proust).

Ao optar por retratar um bando de desajustados – pobres e maltrapilhos, livres, drogados e inconsequentes – na pele de alguns dos símbolos da Hollywood atual, Salles dá uma piscadela para a juventude fã da Saga Crepúsculo (que irá assistir ao filme em torrent, já que ele recebeu classificação 16 anos nos cinemas – mas eles vão assistir: blogs de fãs já destrincham a vida de Luanne Henderson) num gesto que tanto pode provocar quanto inibir, afinal não há final feliz. Todos crescem enquanto guerras acontecem, presidentes são depostos e o mundo parece balançar eternamente entre a bomba atômica e um cupcake (atualizando  madeleines).

Voltamos então a Mark Twain, que escreveu no início do século 20: “Os radicais inventam as ideias. Quando elas se esgotam de tanto uso, os conservadores as adaptam”. Em um tempo em que tudo é publicidade (de bondade a assassinato), a contracultura foi assimilada, sugada e incorporada ao dicionário, mas ainda dá um bom caldo. Porém, por mais que as estradas (e o capitalismo) continuem por ai, é sempre importante lembrar que o “amor que você leva é igual ao amor que você faz”. No fim, independente do caminho, estamos todos em busca (do tempo perdido e) da mesma coisa: nós mesmos. Será a sociedade apenas um pretexto?

Pano rápido.

– Marcelo Costa é editor do Scream & Yell e assina o blog Calmantes com Champagne

Leia também:
– A busca de Walter Salles: um olhar rápido sobre quatro filmes do diretor (aqui)

12 thoughts on “Cinema: Em “Na Estrada”, Walter Salles é fiel ao clássico beatnik, mas pisca o olho para a Geração Crepúsculo

  1. Marcelo, tu sabe escrever sobre cinema como poucos.

    Já li várias resenhas sobre este filme e ninguém parecia se preocupar muito com um ponto que eu acho crucial: se Walter Salles conseguiu não apenas fazer jus à importância da obra original, mas superar os gaps que sempre aparecem na tradução de linguagem literária para a cinematográfica de modo a evidenciar que a mensagem de liberdade auto-reflexiva que marcou aquele momento pós-guerra é, sim, relevante até hoje. Nesse sentido, as citações de Mark Twain e a menção a Henri Cartier-Bresson caíram como uma luva e (na minha opinião) fizeram “A” diferença perante o que a maioria dos críticos anda dizendo sobre este filme. Acho que isso proporcionou a devida recontextualização que toda adaptação exige. É também muito bom saber que ele conseguiu valorizar o elenco e não deixar buracos na história.

    Somando todos esses pontos, teu texto foi efetivo em dissipar o cagaço que todo fã da obra original tem em dar uma chance à adaptação do Walter Salles.

    Parabéns pela escrita e um abraço!

  2. Muito bom. Boas sacadas, boas referências cruzadas e boa sensibilidade para perceber o filme. Parabéns mesmo.

    Faz-se necessária uma correção tola – confira aí a vida do Mark Twain, ele morreu em 1910…

    Gostei também do comentário do Allan Kern.
    concordo com vcs dois.

  3. Ótimo texto Marcelo !!!
    Eu estava com ” um pé atrás ” com esse filme !!
    Mas seu texto deixou claro que a ” mistica ” do livro se mantem na medida do possível para essa adaptação para o cinema.
    A Vontade de assistir o filme aumentou agora , depois vou dar uma conferida no manuscrito original do Kerouac para o ” On The Road ” !!!
    VALEU !!!!

  4. Vou colocar umas coisas aqui antes da minha opinião sobre o filme.
    * gosto de filmes parados como Um Lugar Qualquer, Broken Flowers etc… Não preciso de ação frenética para me manter concentrado.
    * fotografia é um hobby serio meu.
    * não li On The Road

    O filme não me envolveu. Salvo raros momentos (as cena que envolvem jazz e dança, os campos de algodão) o que de fato rolou foi que vi de maneira inerte toda ação que ocorria na tela. Se alguma personagem morresse, tivesse um braço amputado, casasse, matasse eu não sentiria nada pois nenhum deles é realmente envolvente. Os caras andam e voltam, andam e voltam e voce esta lá tentando encontrar no filme algo que te interesse o mínimo pela próxima cena. Eu não consegui.

    Outro ponto. Quando o principal atributo de um filme é a fotografia alguma coisa está errada (Arvore da Vida?). A fotografia é ótima mas não foi suficiente e não sustenta um filme.

    Acredito que se o espectador tiver conhecimento prévio, lido o livro (alguns mais de uma vez) e já tiver certo sentimento em relação as personagens (os preferidos, os odiados) isso permite o sujeito ler na estrelinhas e perceber na tela coisas mais sutis. Guardadas as devidas proporções (porra, posso me arrepender de colocar isso) é como os fãs de Twilight que já leram todos os livros dezenas de vezes e vão para a sala de cinema apenas para ver as imagens daquilo que leu e imaginou. O mesmo que ocorre com fãs de Star Wars que conhecem o roteiro de cor e vão ao cinema para completar as partes falantes. No meu caso ocorreu com O Senhor Dos Anéis onde eu identificava situações que passavam batido por aqueles que não leram o livro.

    Mas Na Estrada não me parece oferecer muito para quem não leu o livro.
    Não curti. Não veria novamente. Não recomendaria.
    Abraço,
    Vinicius

  5. Tenho tanto respeito pelo livro e pela obra e ouvi falar tão mal (vindo de gente que não tem esse respeito) que cheguei a pensar que não valeria a pena assistir ao filme. Obrigado por colocar tudo abaixo, me fazer gostar do filme antes mesmo de assistir e ter de volta a vontade louca de fazer isso o quanto antes.
    Parabéns e obrigado, pelo baita texto, Mac.

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