por Carlos Eduardo Lima
Há alguns poucos anos, dependendo de onde você estivesse, seria possível escolher entre três diferentes shows dos “Beach Boys”. Brian Wilson, em plena forma, com sua banda, tocando o repertório de álbuns emblemáticos como “Pet Sounds” e “Smile”; Al Jardine e sua “family band”, com filhos, primos e uma galera mandando bala em uma boa retrospectiva da carreira da banda ou Mike Love e Bruce Johnston, sob o nome Beach Boys, acompanhados por uma formação regular de músicos, igualmente revisitando o melhor do repertório dourado dos rapazes da praia.
Dá pra ter uma vaga noção do tanto de desentendimento que essa banda causou na vida de seus integrantes ao longo dos tempos. Sabendo disso, é um espanto que todos esses sujeitos, cada um com seu baú de memórias e ressentimentos, tenham se reunido para gravar um disco de inéditas dos Beach Boys, o trigésimo de sua carreira, o primeiro desde “Summer In Paradise”, de 1992, que era muito mais um disco solo de Mike Love. Se pensarmos em algo mais coletivo, o hiato aumenta para 27 anos, quando Carl Wilson, Al Jardine, Bruce Johnston, Mike Love e a presença vacilante de um Brian ainda lidando com seu estado frágil de saúde, colocaram na praça um disco homônimo bem fraquinho. Eram outros tempos.
A primeira pista de que algo estava sendo tramado para comemorar os 50 anos de atividade dos Beach Boys veio sob a forma de uma regravação, a sintomática “Do It Again”, original de 1969, do disco “20/20”. Um belo clipe foi produzido mostrando os integrantes gravando a nova versão no Capitol Studios, secundados por velhos colaboradores como Jeff Foskett (que agora é responsável pelos agudos de Carl Wilson, morto em 1997, por câncer) e até David Marks, que integrou a banda entre fevereiro de 1962 e outubro de 1963. Além deles, a Brian Wilson Band, chefiada pelo multi-tarefas Darian Sahanaja, está presente e assume a missão de prover todo o background sonoro possível para as canções beachboyanas, sejam elas mais rápidas e alegres ou as mais contemplativas e tristes.
Em comum, aquela sensação de verão musical eterno, algo que nenhuma outra formação musical em todos os tempos foi capaz de produzir. Aliás, aqui cabe uma pequena digressão: como sabemos, o Hemisfério Norte é um lugar muito mais frio que a metade sul da nossa bolota azul e branca. O pessoal de lá passa muito mais tempo sob um céu cinzento e experimentando temperaturas muito mais severas que nós. Quando chega o verão, há o estabelecimento espontâneo de uma alegria libertadora no ar. Tudo é possível no verão, tudo é melhor no verão, sob o sol. “That summer feeling”, lembram? Para a América do início dos anos 60, a equação composta por California + música dos Beach Boys = verão.
Os Beach Boys surgiram com a missão de levar o verão em forma de música para um país que curtia música feita na Inglaterra. Perderam o bonde, vagaram sem direção por décadas, perderam Dennis e Carl Wilson e viram Brian sair de cena por motivos emocionais e químicos por mais de vinte anos. Com tudo isso computado, é possível dizer que “That’s Why God Made The Radio”, o novo disco, é um completo triunfo. Mais ainda: não traz em si nenhum vestígio de uma hipotética associação nefasta visando faturar grana na nostalgia de cinquentões deslocados pela modernidade. É um verdadeiro comeback, uma verdadeira celebração e, mais que tudo, uma oportunidade perfeita para dizer adeus.
Sim, porque é uma despedida, ainda que não totalmente revelada. Senão, vejamos. Houve um disco dos Beach Boys, lançado em 1965, chamado “Today”, que era dividido em duas partes. A primeira trazia canções praianas, de carros, garotas e diversão. A outra parte continha melodias mais sérias, tristonhas, um prenúncio de que Brian Wilson estava mudando sua forma de compor e “ver” a música do grupo. Essa curiosa configuração musical ressurge neste novo trabalho, com um tema central: o passar do tempo. Os Beach Boys estão velhos, gente. Eles têm a média de 70 anos, já poderiam estar descansando em suas mansões na beira da praia, mas que nada. Estão em turnê e há datas marcadas para o Chile e até em Cingapura.
“That’s Why God Made The Radio” é o melhor disco que a banda produz desde 1972, quando lançaram “Carl And The Passions”. Talvez até seja mais interessante que este, uma vez que o conceito está mais amarrado e todos parecem em paz. Além disso, um Brian Wilson extremamente participante está no comando da produção, o que, convenhamos, faz muita diferença. Canções como a faixa-título (um tributo ao meio de comunicação que mais educou roqueiros ao longo do tempo), “Beaches In Mind”, “Daybreak Over The Ocean” e “Spring Vacation” respondem pelo lado arejado e feliz de músicas solares, padrão Mike Love. A esquisita é desnecessária “The Private Life Of Bob And Sue”, sobre um casal num reality show, parece totalmente fora de lugar. É o único “erro” em todo o disco.
Mas a quota de Brian Wilson o redime de tudo o que soou de confuso e estranho ao longo dos anos 70 e 80 da banda. A spectoriana “Strange World” é a abertura de uma surpreendente e belíssima suíte de encerramento para o disco, algo que pode ser comparado aos melhores momentos de Brian desde sempre. “From There To Back Again” (com vocais de Al Jardine), “Pacific Coast Highway” e “Summer’s Gone” (na voz do próprio Brian) são de emocionar o mais descrente ouvinte de música. São melodias assombrosas de tão belas, com letras pungentes sobre envelhecimento, ciência das mudanças do mundo, do corpo e da alma, como se não pudéssemos lidar com isso a partir de um determinado momento, nos restando resignação. É um tema inédito no cânon da banda, algo que ainda estava inexplorado. Wilson esgotou todo o assunto nessas três lindas canções.
Este novo disco dos Beach Boys faz justiça de inúmeras formas, mas, talvez a mais notável de todas seja, como disse Alexis Petridis, um crítico do jornal inglês The Guardian, conceder-lhes a oportunidade de se despedirem em grande estilo. Em forma, em paz, só música. Amém.
– Carlos Eduardo Lima é jornalista e assina a coluna Sob o CEL no Scream & Yell (leia aqui)
Leia também:
– The Beach Boys Pós-Smile: o Beach Boys que você não conhece, por CEL (aqui)
– 2004, o ano Brian Wilson na música pop, por Marcelo Costa (aqui)
– Brian Wilson e as melodias ensolaradas, por Carlos Eduardo Lima (aqui)
– “That Lucky Old Sun”, Brian Wilson – Bonito e tristonho, por Marcelo Costa (aqui)
– “Brian Wilson Reimagines Gershwin”, Brian Wilson – Classe absoluta, por Adriano Costa (aqui)
– DVD “An All-Star Tribute To Brian Wilson”, por Marcelo Costa (aqui)
– Público alaga o Tim Festival de lágrimas em show de Brian Wilson, por Marcelo Costa (aqui)
Sim ! É um disco honesto e representa um final digno para os Beach Boys. Não é pretensioso, nem pretende recriar feitos anteriores, conciliando as canções solarengas de Mike Love com as melodias mais trabalhadas de Brian Wlison. “From There To Back Again” é capaz de ser a faixa mais memorável do álbum e o compacto “That’s Why God Made The Radio” é um saudável retorno às origens e uma homanegem sentida a como tudo começou. A despedida dos rapazes da praia, de uma forma autêntica, deixa no entanto um pequeno amargo de boca. Os shows desta ‘farewell tour’ não passarão pelo Brasil nem por Portugal. Paciência, restam-nos os CDs.
Pois é, meu caro. O CD já está de bom tamanho. Agora, viu que o Mike Love e o Bruce vêm ao Chile SEM o Brian Wilson e o Al Jardine? Estranho, não?