por Ismael Machado
Um dos grandes clichês contados como se fosse uma realidade fechada na história do rock é que o movimento punk surgiu para dar fim e cabo de um estilo grandiloquente na música pop, personificado pelos gigantes do progressivo, do glam rock e das bandas de arena. Queen, Led Zeppelin, Yes, Emerson, Lake and Palmer e tantos mais estariam fadados ao esquecimento total, ao limbo da inutilidade. Nada mais falso. Enquanto o punk ia, sim, cavando espaço, mas abrigado por jornalistas ‘descolados’, antes mesmo dessa expressão existir, os ‘dinossauros’ continuavam a lotar estádios, a vender muito e a transformar o rock em espetáculo. Não houve, no entanto, banda que simbolizasse mais essa dicotomia entre o supostamente novo (o punk) e o arcaico (os dinossauros) quanto o Pink Floyd. A célebre camiseta ‘I hate Pink Floyd’, vestida por integrantes dos Sex Pistols, ícone punk, parecia demarcar uma zona de confronto, como uma declaração explícita de guerra. E quem venceu? Se é possível uma resposta caetanizada, seria afirmar que ambos. E nenhum dos dois.
O punk cresceu e foi assimilado pelo sistema, chegando a liderar as paradas de sucesso. Nirvana e Green Day representam bem a chegada do punk ao topo. E os dinossauros continuam bem vivos. Prova disso foi a bem sucedida turnê de Roger Waters em solo brasileiro. Não foi a primeira vez e, a depender da vontade do público, não será a última. Waters veio comprovar uma tese não escrita, mas verdadeira. São as grandes bandas, as que fizeram história, as que tem maiores possibilidades de turnês lucrativas, capazes de arrastar um público heterogêneo, com idades variadas. De U2 a AC/DC, de Rolling Stones a Madonna, de Black Sabbath a Pearl Jam, quem arrasta multidões são os que possuem pelo menos 20 anos de estrada nas costas. E não há como negar. Poucas bandas na história da música pop são tão queridas e emblemáticas como o Pink Floyd. Foi com essa grife que Roger Waters fincou os pés novamente em palcos brasileiros para apresentações em Porto Alegre, Rio e São Paulo (duas vezes).
Na capital paulista, o show foi no Morumbi, dias 1 e 3 de abril. No domingo, estádio lotado, com show marcado para as 19h30. Começou com apenas cinco minutos de atraso. Ou seja, exemplo a ser seguido. Shows cedo terminam mais cedo e permitem uma volta para casa mais tranqüila ou a continuidade na noite. É uma lógica certeira. Waters veio ao Brasil com o show que reproduz na íntegra o disco duplo “The Wall’, do Pink Floyd. Lançado em 1979, o disco se tornou um dos clássicos floydianos. Talvez seja o canto de cisne de criatividade inventiva do grupo, mas, ao mesmo tempo, foi praticamente o disco que, tendo sequencia no “Final Cut”, de 1983, expôs em demasia as escaramuças internas dos integrantes da banda. O grupo dissolveu-se para ressurgir fraturado anos depois, com David Gilmour, o guitarrista, ganhando, junto aos companheiros Nick Mason e Rick Wright, o direito de usar o nome da banda.
Roger Waters seguiu então carreira solo, mas não demorou muito e começou a alternar turnês com o repertório de ‘Dark Side of the Moon’, o disco mais bem sucedido do Pink Floyd e ‘The Wall’. O segundo, um retrato quase expressionista dos traumas infantis de Waters, cujo pai morreu em combate, é um libelo contra a guerra, o sistema educacional repressor, os estados totalitários e a alienação urbana. Foi transformado em filme pelo inglês Alan Parker. À época, Waters disse ter odiado a versão para o cinema. Mas embora no show haja uma crítica aos símbolos do capitalismo e do consumismo, como o McDonalds e a Mercedes Benz por exemplo, Waters não rasga dinheiro. Sabe o quanto o filme ‘The Wall’ é querido pelos fãs. Por isso, usa a versão cinematográfica de Parker como fio condutor do espetáculo.
E essa é a palavra que melhor se encaixa no show ‘The Wall’. Espetáculo. Outra a ser usada poderia ser ‘impactante’. É complicado fugir dessas duas expressões para definir as duas horas em que Waters apresenta o disco-show. É um espetáculo extremamente visual e bombástico, com o telão em forma do muro branco que caracteriza a capa do disco tomando conta de toda a extensão do palco e indo além. As imagens projetadas nele atingem um grau de qualidade que fazem, em muitos momentos, o público esquecer que no palco há uma banda.
É essa, talvez, a principal virtude e ao mesmo tempo o calcanhar de Aquiles de um show como o que tem sido apresentado por Roger Waters. A grandiloqüência da apresentação garante a emoção vivenciada pelos fãs. Impossível não se deixar impressionar. Além disso, as boas canções estão ali. De ‘Mother’ a uma sempre emocionante ‘Comfortably Numb’, o passeio pelo disco atinge fãs nostálgicos e os de última hora. Une gerações. Mas ao mesmo tempo, há uma indisfarçável frieza em tudo. Milimetricamente pensado, o show não permite momentos mínimos de descontração ou improvisos. Inclusive o ‘intervalo’, de cerca de 20 minutos, remete a uma ópera teatral, com a divisão por atos. E o retorno, com ‘Hey You’, uma das mais aguardadas, sendo executada por trás do muro, sem a visualização dos músicos gera uma sensação estranha. Tudo isso, aliado ao fato de que a interpretação soa extremamente igual ao disco, remete à quase certeza de que grande parte vocal é ‘playback’. Se isso depõe contra ou a favor, vai de cada um.
Dedicando o concerto a Jean Charles de Menezes, o brasileiro assassinado pela polícia britânica num metrô em Londres, e criticando o ‘terrorismo de Estado’, Roger Waters fez o discurso certo à plateia brasileira. Deve adaptar o discurso em cada país (na Argentina, a “pauta” foi as Malvinas). Como no filme, Waters critica a alienação e o totalitarismo, mas reproduz um palco que o aliena dele com o público, que mal o vê. Repete o gesto com braços em ‘x’, numa alusão nazista e fascista e o público embarca, reproduzindo o gestual. Nada mais simbólico.
‘The Wall’ acaba sendo uma conjunção de antíteses que fazem refletir a respeito dos caminhos atuais da música pop. É, ao mesmo tempo, a prova de que o punk estava certo ao tentar demolir as instituições grandiosas do rock, mas transmite a certeza de que o fracasso nessa tentativa não é de todo mal. O show provoca catarse, por ser resultado de um repertório de uma das bandas mais criativas e inovadoras da história do rock, mas ao mesmo tempo retransmite a frieza tecnológica dos dias atuais. Impacta, mas não absorve. É capaz de levar às lágrimas os fãs de longa data, mas são lágrimas antigas, de um tempo outro.
Waters acaba utilizando um arsenal tecnológico que pretende levar o espectador a outra dimensão sonora e visual. Acaba, no entanto, conduzindo os que amam a antiga banda, a quartos pequenos, com pôsteres na parede e um disco rolando no aparelho de som. Dentro desse quarto, quem sabe, adolescentes sonhando com a possibilidade, quase inatingível, de assistir a um show do Pink Floyd. Ao tentar mostrar o futuro dos espetáculos de rock, Roger Waters nos faz fechar os olhos e pensar no ingênuo passado que se foi e que dinheiro algum irá comprar, mesmo que tentemos por duas horas.
– Ismael Machado é repórter especial do Diário do Pará e está lançando o livro “Sujando os Sapatos – O Caminho Diário da Reportagem”. Saiba mais aqui. Fotos de MRossi e Rafael Koch Rossi (Divulgação T4F)
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– Roger Waters: The Wall ao vivo em Los Angeles, por Fernanda Ezabella (aqui)
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– Os 13 discos mais influentes de todos os tempos, por Marcelo Costa (aqui)
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Mestre Ismael, como sempre, botando pra quebrar.
“há uma indisfarçável frieza em tudo. Milimetricamente pensado, o show não permite momentos mínimos de descontração ou improvisos. Inclusive o ‘intervalo’, de cerca de 20 minutos, remete a uma ópera teatral, com a divisão por atos.”
Ismael, já ouviu falar que o The Wall é uma ‘ópera rock’? Não percebeu que é um espetáculo teatral? Esperava o quê?
“Waters critica a alienação e o totalitarismo, mas reproduz um palco que o aliena dele com o público, que mal o vê. Repete o gesto com braços em ‘x’, numa alusão nazista e fascista e o público embarca, reproduzindo o gestual. Nada mais simbólico.”
É esse, exatamente, o propósito. Aí está a crítica!
Ismael, você ouviu o disco, viu o filme, sabe qual o conceito, a ideia, a proposta? Entendeu ou só não gostou?
“Waters pretende levar o espectador a outra dimensão sonora e visual”
Eu fui levado. Insensibilidade é um mal grave do nosso tempo…
Porra, tenho 45 anos…velho…acho que ouvi quando vc ainda nem pensava em rock. vi o filme quando foi lançado. entrei na primeira sessão e saí na última…e se vc não percebeu, derramei lágrimas grossas durante boa parte do show. mas nada disso me impede de tb olhar com certo desprendimento que o tempo e a maturidade nos possibilitam. maturidade que me impede por exemplo, de ser grosseiro e desrepeitoso. Há uma certa insensibilidade quando lemos apenas o que queremos: ” A grandiloqüência da apresentação garante a emoção vivenciada pelos fãs. Impossível não se deixar impressionar. Além disso, as boas canções estão ali. De ‘Mother’ a uma sempre emocionante ‘Comfortably Numb’, o passeio pelo disco atinge fãs nostálgicos e os de última hora. Une gerações”. Isso está antes da frase destacada por vc. Não saber interpretar um texto também é um mal grave do nosso tempo.
Desculpe-me pela grosseria, Ismael.
Segundo minha interpretação, seu texto é um “bate e assopra” no espetáculo. Se isso é sinônimo de desprendimento e maturidade, quero passar dos 45 sem isso…
ok, vá lá…boa sorte
Belo texto.
Texto bem redigido, apesar de não concordar com parte da tônica dele. Achei um tanto amargurado.
Mas é pertinente a observação de que tudo lá foi cronometrado, frio, “tecnologicamente” frio. Só que vejo mais por um lado positivo, acaba contribuindo com o conceito do espetáculo.
Abraço!
Opa, Cláudio, não é que seja amargurado. O que percebi é que num show como esse, geralmente ou se deslumbra inteiramente ou se decepciona por completo. No meu caso, como fâ antigo do Pink, o que houve foi uma divisão de sentimentos. É muito legal toda essa parafernália, mas recebi um email de uma amiga jornalista e blogueira, Luciana Medeiros, comentando também justamente isso, o distanciamento que ficamos quando olhamos para aquilo tudo. Então, o texto faz uma reflexão sobre esses dois polos. Não é ‘morde e assopra’ como quis enfatizar o rapaz nos primeiros comentários. é apenas o fato de que dá para se olhar uma obra e ver que ela possui vários pontos de leitura, de interpretações. há momentos arrepiantes no show e há outros em que desejamos algo mais simples, mais cru, mais humano, mais próximo.
Muito bom, Ismael, mas discordo um pouco. A empatia foi alcançada. O distanciamento está na história de The Wall. Se apoiar na estrutura do filme considero normal, uma vez que Waters foi o roteirista da versão cinematográfica, mas não considero isso uma verdade absoluta, pois, do filme, temos apenas as animações do Gerald Scarfe, contratado já da turnê The Wall de 1980/1981. Minha visão segue aqui. Um abraço! http://resenhassemjornal.blogspot.com.br/2012/04/busca-por-verdade-e-justica-e-tao.html
certo, zoyd, discordar é necessário, dentro dos nossos limites de civilidade. Ms só pra reiterar, saí de belém apenas pra ir ver o show, o que diz um pouco sobre o quanto gosto do disco/show/banda.
Belo texto, Ismael, embora discorde um pouco.
Acho sim que muitas vezes a tecnologia se sobrepõe a qualidade musical, muitas vezes o espetáculo é mais importante que as canções.
Não acho que seja o caso desse show, pelo contrário, considero que foi a perfeita utilização da tecnologia a favor da música, que sempre foi o mais importante. A banda de apoio era muito boa, seria um baita show mesmo que ao invés de toda parafernalha só houvesse uma cortina branca atrás da banda, como no show do dylan algumas semanas depois.
And all in all we are all just bricks in the wall !
Ah, e também sou de Belém, embora morando em SP! Abraço!