por Tiago Faria
Quando você ouvir pela primeira vez este álbum do Shins, possivelmente vai concluir que “Port of Morrow” é todo ele uma superfície polida e tranquila. Vai ficar, imagino, a impressão de que você já desvendou — antes, há muito tempo, numa outra época — todos os mistérios deste disco, mesmo que ainda não tenha se aproximado da faixa 6.
A sensação de conforto deve se tornar ainda explícita ao perceber que James Mercer, o mentor do quinteto, está regularmente nos avisando que ele é um “homem simples” (em “Bait and Switch”) e que estas canções não são, bem, muito complicadas (vide “Simple Song”, o primeiro single).
Havia um tempo, por volta de 2002-2003, em que Mercer comentava que o Shins era apenas uma desculpa que encontrou para criar variações inesperadas dentro dos limites de canções pop de três minutos de duração. O plano ainda parece fazer sentido, já que quase todas as faixas de “Port of Morrow” são canções convencionais, ainda que com uma ou duas (ou três) arestas aparentes — um efeito fofo de sintetizador, um corinho com eco, a bateria repetitiva de um hit do Phoenix.
No caso de ter resistido à monotonia generalizada, pode ser que você encontre um indício de que as coisas podem não ser tão unidimensionais como parecem. “É tudo muito simples, e terrivelmente complexo”, alerta Mercer, lá quase no fim do álbum (em “40 Mark Strasse”). O que provoca a pergunta inevitável: onde está a complexidade?
Talvez ela tenha se escondido nos versos de Mercer. É sabido que seus versos sempre representaram por volta de 80% daquilo que você considerava encantador nesta banda. Quando Natalie Portman, no draminha indie “Hora de Voltar”, comentou que o Shins mudaria nossas vidas, há boas chances de que estivesse falando sobre o teor deliciosamente literário de músicas como “The Past and Pending” e “New Slang”.
Ler as canções, neste caso, será uma pista importante para que você encontre a segunda dimensão do disco: “Port of Morrow”, então, vai se abrir graciosamente num álbum menos sereno e cômodo, com rasteirices que versam sobre envelhecimento, morte, dores de cotovelo e que, volta e meia, tentam materializar um sentimento que não se descreve com facilidade — um mal estar que acomete alguns adultos bem sucedidos, bons pais e maridos (Mercer, 41 anos, é casado e tem dois filhos), mas ainda assombrados por um tipo adolescente de inquietação.
A faixa título resume essa crise discreta. Depois de narrar uma cena que demonstra “a mecânica amarga da vida” (um animal devorando outro), ele descreve, com um falsete soul, o asco que a gente sente ao ver fotos de guerras. Como informar às crianças sobre todo esse horror? Os responsáveis por esses conflitos lamentáveis são “palhaços diabólicos”, o compositor conclui. Mas, em seguida, rompe o discurso inocente com uma constatação mais dura: “Logo notamos, caro ouvinte, que eu e você também estivemos lá”. Lá onde? Nas guerras e tragédias? Estaríamos, eu e você e Mercer, todos inseridos no Grande Esquema Medonho das Coisas?
Terrivelmente complexo, indeed.
Diante desse contraste entre letra & música, há o perigo de que você lamente a falta de valentia de Mercer, que se deu por satisfeito após gravar somente a metade de um conceito: um álbum que se lê com prazer e se ouve com certo tédio. Entender que este é o primeiro produto do selo de Mercer, o Aural Apothecary (via Columbia Records), esclarece o porquê de escolhas tão óbvias: antes de criar um disco novo do Shins, o músico/microempresário parece ter se sentido na obrigação de escrever mais um disco (típico, agradável, acessível) da banda. “It’s Only Life”, por exemplo, poderia ser uma balada edificante de Noel Gallagher. E “September”, o lado B de “Red Rabbits”.
Ao cruzar essas duas informações (a artística e a comercial), você vai perceber que Mercer sente uma falta tremenda do tempo em que o Shins era uma banda pequena e sem tantos compromissos, inventada dentro do cômodo pequeno de um apartamento. “A partir do momento em que você começa a jogar o jogo de tentar ser grande, você sempre perde”, ele comentou, numa entrevista. Mas, desde “Wincing the Night Away”, não é exatamente isso (ser maior; ao menos musicalmente mais ambicioso) que tenta fazer?
“Port of Morrow”, você haverá de concordar comigo, sofre de um complexo semelhante ao que contaminou pelo menos 50% daquele disco de 2007: o desejo por crescimento (e profissionalização madura) neutraliza a qualidade mais notável da banda. A saber, a simulação de um pop simultaneamente modesto (na atitude, na produção doméstica) e arrojado (na composição engenhosa dos versos, nos esquemas melódicos).
Ao fim do disco, você pode se pegar perguntando se ainda seria possível tratar o Shins como uma banda incomum. A pergunta, que se faz de simples, termina se mostrando não terrivelmente complexa — mas um tantinho enganadora, sim.
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– Tiago Faria (siga @superoito) é jornalista e escreve no http://superoito.com
Gostei do disco. Concordo que não vá em direções muito (ou nada) distintas do apresentado anteriormente, mas vejo isso mais como opção do que como covardia ou preguiça. Nada demais, mas bem agradável de se escutar.