por Bruno Capelas
Há alguma coisa de diferente no mundo da música: se nos anos 80, no texto “Canção, estúdio e tensividade”, Luiz Tatit tomava nota da importância do estúdio como diferencial para a canção popular, em 2012 pode-se ver que esse local de gravação pode ser qualquer lugar, de um quartinho todo empoeirado nos fundos de uma casa até uma praça ou um estúdio cheio de equipamentos.
A Driving Music, mais recente empreitada de Fábio Andrade, líder da finada banda punk fluminense The Invisibles, é fruto dessa nova era. “Comic Sans”, primeiro disco cheio da banda, foi gravado no quarto do apartamento de Fábio e é um bom exemplo de como as novas possibilidades de gravação podem ser um novo caminho para a música hoje em dia. “Existia outro modelo de trabalho que contemplava muito algumas pessoas, e não necessariamente as mais interessantes, as mais capacitadas, e hoje esse modelo não existe mais”, diz ele.
“Comic Sans” foi lançado no meio do ano passado (você pode baixar o disco no site oficial), pouco antes do cantor passar uma temporada em Nova York. Ao voltar, a Driving Music deixou de ser um projeto só dele para se tornar um grupo de verdade – chegando até a abrir para o Beady Eye no Rio de Janeiro.
Hoje acompanhado de Gordinho (PELVs), Melvin (Carbona/Tremendões), Develly (PELVs) e Matos (ex-Cabaret), Fábio veio a São Paulo para fazer o primeiro show da Driving Music fora do estado do Rio de Janeiro. A apresentação foi na Casa do Mancha, reduto indie na Vila Madalena – como se isso não fosse uma redundância – e antes do show, o antigo guitarrista do The Invisibles bateu um papo com o Scream & Yell.
Em uma hora e meia de conversa, Fábio ressaltou a importância de uma boa produção – “compor bem é essencial, mas produzir bem também é necessário, mas acho que muita gente ainda não entendeu isso” – explicou porque não canta em português – “português pra mim era Chico Buarque, e Chico Buarque era a minha mãe, e eu precisava negar a minha mãe aos 16 anos de idade” – e disse que não entende jovem que não foi roqueiro.
Ele ainda comentou sobre os discos que mudaram sua vida, a relevância de uma boa sequência de faixas dentro de um disco e expôs sua visão sobre o Rio de Janeiro de 2012 – tanto na política quanto na música. Respira fundo, e deixe essa conversa te dirigir a outros lugares. Um bom papo que você lê a seguir:
Antes de tudo: o que é o Driving Music? O que ele tem de diferente do que você tinha feito antes?
Essa é uma boa pergunta… na verdade… existem tantas definições diferentes que a gente já nem sabe mais. [O projeto] começou em 2006 quando a minha banda anterior, o The Invisibles, acabou, e eu resolvi continuar. Na época, percebi que queria tocar mais, que o meu problema era com a banda, e não com a música. Já acabei com a banda já sabendo que ia continuar e já com o nome de Driving Music. Desde o começo, era com esse nome que eu lançava as músicas que gravo em casa. Até novembro de 2011, o Driving Music era quase que exclusivamente isso. Antes de lançar os primeiros EPs, gravei algumas demos que eram bem diferentes, que soavam mais parecido com o The Invisibles. Quando fui gravar o primeiro EP da banda, chamei alguns amigos para participarem, mas depois fui fazendo sozinho. O disco também teve colaborações. Mas, embora o [Gustavo] Matos tenha gravado algumas coisas de percussão e o Daniel [Develly] tenha feito uns teclados, “Comic Sans” era o disco que eu estava querendo fazer naquele momento. Então fui passar um tempo fora do Brasil, e quando eu estava lá, a gente recebeu um convite pra tocar num festival que o Queremos estava organizando, um pessoal do RJ que tá levando um monte de bandas para lá, para abrir o show do Beady Eye. Eles ouviram o disco, gostaram e eu ainda não tinha banda.
Era um projeto seu, gravando em casa, não tinha banda?
Para não falar que isso nunca tinha acontecido, a gente chegou a fazer dois shows, numa formação completamente heterogênea. Eu tocava bumbo, caixa e violão ao mesmo tempo, e a gente não tinha baterista… Era uma coisa bem menor, não tinha uma estrutura de banda tradicional, e tinha várias músicas que não tinham baixo. Não foi algo que a gente conseguiu continuar. Quando topei fazer esse show do Queremos é que surgiu a formação atual do Driving Music. Cheguei ao Brasil numa segunda e o show era na outra segunda. Ensaiamos quatro vezes e fizemos o primeiro show. De lá para cá, não acho mais que o Driving Music seja um projeto solo meu. No começo a gente chamava de coletivo para ter certa mobilidade, mas hoje digo que virou uma banda mesmo para tocar as músicas que já gravei e para frente.
Então quando o Driving Music gravar um próximo trabalho, essa vai ser a banda?
Sim. São eles mesmo, definitivamente. Por outro lado, ainda gosto muito de fazer as coisas em casa e mexer muito tempo nas músicas. Gosto de ficar brincando que nem maluco, fazer música com programação de bateria, passar uma tarde em casa e gravar um monte de coisa. Mas hoje a participação é da banda inteira. No show, os arranjos já estão bem diferentes do que são no disco.
Pegando um gancho do que você falou, eu queria que você contasse melhor como foi essa história de gravar uma jam consigo mesmo em “Afterglow”.
Um dos motivos porque o The Invisibles terminou foi porque eu estava cansado de ficar correndo atrás pra marcar ensaio e demorar seis meses pra gravar duas músicas. Falei pra mim mesmo que queria fazer as coisas no meu tempo, com mais agilidade e não ficar dependendo dos outros. Acho que até gravar as duas primeiras demos do Driving Music, eu estava tentando provar pra mim mesmo que conseguiria fazer isso. Só no primeiro EP é que acredito que tem uma tentativa de apresentar algo diferente. É uma maluquice gravar sozinho: tem um lado muito bom porque não tem ninguém te inibindo, principalmente na hora de gravar voz. É libertador. Mas gera essa maluquice de, no momento que aparece uma música que pede um cuidado especial, você tem de quebrar a cabeça pra resolver aquilo sozinho também. No caso de “Afterglow”, a música tem uma frase só. Tem algumas alterações, mas a música é basicamente sustentada em um único verso. Eu não tinha como tocar isso no violão sem saber quantos versos ia durar, quantas partes ela ia ter… Acabei deixando a música lá pro final das gravações. Normalmente, você começa a gravar uma música pela bateria, mas a bateria sou eu quem faço, então eu também não sabia que música tinha de tocar, porque não tinha acabado de escrevê-la. Foi um jogo de recorta e cola muito maluco. Primeiro, gravei uma base no violão. Em cima do violão fiz a bateria, que me fez mudar coisas no violão. Voltei no violão para gravar coisas de novo, então coloquei a voz. Por isso falei que era uma jam comigo mesmo, uma vez que um instrumento demandava o que o outro ia fazer. Às vezes tive de gravar tudo de novo. Até o final do disco, não sabia o que achar dessa música. Sabia que ela seria a primeira, mas eu não tinha muita confiança por causa da estrutura “nova” dela. Sabia o que tinha que fazer com “as outras”, mas não com “Afterglow”. Muita gente acha a melhor música do disco, algo que nunca imaginei, e é também uma das que mais gosto de tocar.
“Afterglow” também chama a atenção porque tem um sampler meio perdido no comecinho dela. “Settle” é outra música que tem um sampler – você disse certa vez que é uma gravação do James Joyce. Conta mais desses dois samplers, e por que eles tão no disco?
Foi absolutamente casual. Como crítico de cinema, tenho o costume de analisar e analisar depois a obra pronta. Penso até hoje sobre o “Comic Sans”, e muitas coisas não me ocorreram na época da gravação. Quando gravei, estava ouvindo muito o The Books, que é uma banda que adoro, e eles trabalham com “found sound”. Eles vão atrás de gravações em sebos, em fitas cassetes perdidas, gravações de voz que eles não fazem ideia do que sejam, e usam isso como o vocal de uma música. Uma boa parte das canções deles não é cantada, mas trabalham em cima desses samplers, que aparecem dos lugares mais absurdos o possível. E em “Afterglow” tinha essa introdução enorme com a qual eu não sabia muito bem o que fazer. Achei interessante usar um sampler ali, e por algum motivo me ocorreu pegar uma dessas gravações de curso de inglês, que o professor coloca para os alunos ouvirem nas aulas. Era curioso para mim usar essa gravação em um disco que é todo cantado em inglês, algo que as pessoas sempre comentam. Achei que era uma boa piada começar com o mais básico o possível da língua inglesa, que é a pessoa te ensinando a falar o país de onde você veio. Por coincidência, no CD que eu peguei tinha uma mulher falando que era do Brasil, de Porto Alegre, com um sotaque nada brasileiro. Para mim isso fez um baita sentido, porque eu não posso falar que faço música brasileira. Sou brasileiro, mas lido com referências completamente externas – como um estrangeiro. Com o sampler do Joyce foi o mesmo caso. Fiz “Settle”, que era uma música complicada de ser resolvida porque tinha uma introdução barulhenta. Era uma das minhas preocupações que as faixas estivessem bem ligadas umas com as outras, que existisse integração. Coloquei um ruído enorme no começo de “Settle” para fazer essa passagem, e achei que também coubesse um sampler ali. Nesse momento lembrei de um amigo meu que é fã de Joyce e que me falou que existia na Internet uma gravação do Joyce lendo um trecho do “Finnegan’s Wake”, isso em 2008. Na gravação, começa o Joyce lendo uma língua que não dá pra saber se é inglês mesmo. Já me perguntaram se era indiano. Quando comecei a ouvir aquilo é que eu realmente não consegui entender uma palavra do que ele dizia – e isso “fechava” com a ideia do estrangeirismo, e de como a língua pode ir do mais básico, isto é, do “eu sou brasileiro” até as expressões e deformações do Joyce. Isso não é importante para o disco, mas é o tipo de detalhe que me dá a sensação de unidade. Tem essa camada escondida pra quem quiser ir adiante tentar entender um pouco mais sobre o álbum. Acho que isso constrói uma narrativa.
E por que cantar em inglês? É uma opção, uma condição, uma necessidade? Você passou um tempo fora do Brasil, tem algo a ver com isso?
Podia ser uma boa explicação… “ah, estava morando fora e resolvi fazer o disco”. É um pouco menos casual que isso. Tinha quatro músicas gravadas quando marquei essa temporada de passar cinco meses em Nova York. Falei pra mim mesmo três semanas antes de viajar: ‘se não acabar o disco agora, só vou voltar a poder mexer nele em novembro’. Na época, nem tinha todas as músicas prontas – três delas eram apenas rascunhos de ideias. Parei tudo na vida: fiquei três semanas resolvendo coisas da viagem e gravando, e foi esse o tempo de gestação do disco. Compus, escrevi letra, gravei e masterizei tudo em três semanas. Foi um processo intenso, acordava e dormia com o disco, para poder ficar cinco meses mais tranquilo, fazendo divulgação. Gostei da palavra que você usou para “cantar em inglês”: é uma condição. Nunca tive vontade de escrever em português. Quer dizer: escrevo texto, prosa em português, trabalho diariamente com a língua e adoro ela. Mas a ideia de música sempre foi vinculada à música anglo-saxã, essa foi a minha formação. Especialmente pelo fato de onde eu vim: não sou da capital, sou do interior do Rio de Janeiro.
De onde?
Barra Mansa. É uma cidade pequena perto de Volta Redonda. De certa forma, escolher ouvir rock quando você tem dez anos de idade era uma posição política. O Melvin, que toca comigo, também toca no Monobloco. Isso era, e ainda é absurdo pra mim, totalmente impensável. São duas coisas totalmente inconciliáveis, embora sejam para ele – e que ótimo para ele que são! Mas para mim não são, porque tem algo de político em se negar a fazer algumas coisas. Que não é só a língua portuguesa, mas são um símbolo de se ouvir música em inglês. No começo isso foi um processo baseado muito em tentativa e erro, compondo olhando dicionário. Aprendi inglês lendo encarte de outras bandas. Era um processo de colagem. As minhas primeiras músicas em inglês têm letras muito ruins, com um inglês muito precário. Mas, ao mesmo tempo, percebi que era um caminho interessante escrever em inglês como um estrangeiro, um não nativo da língua, um pouco como o [escritor argentino Jorge Luis] Borges fez com o espanhol. O Borges escreveu em espanhol a vida inteira, mas ele foi alfabetizado em inglês, e ele achou que em algum momento ia ser interessante voltar para a língua da terra dele com essa perspectiva de quem foi formado em outra língua. Pra falar de outro exemplo, de um cineasta que gosto muito, o Sérgio Leone. Ele faz faroeste americano na Itália, que é algo completamente estrangeiro… Ser um estrangeiro em uma língua me permite fazer construções de frases diferentes, combinações de palavras que um nativo não faria. Não sei o quanto isso é perceptível, mas é uma preocupação. Não é algo randômico, mas tento combinar palavras que de alguma maneira expressem esse estrangeirismo. Sempre achei que o mais interessante de viajar não era, sei lá, ir pra Disney e ver a Disney. O mais interessante era você ir num restaurante e ver como você vai dar a gorjeta naquele lugar, essas diferenças menores. Como se dá ou não bom dia para o porteiro. Isso te expõe no seu estrangeirismo. Tinha essa ideia de que isso poderia acontecer com a minha música, que ela pudesse ser diferente porque não vem de fora.
Você citou Sérgio Leone, Borges, Joyce, trabalha como crítico de cinema, tuas músicas têm vários momentos visuais… Que tipo de coisas te inspira a compor?
A primeira resposta é clichê: tudo. Mas, sabendo que tudo influencia, o que posso dizer que conscientemente me influencia? Uma das ideias por trás do “Comic Sans” era trabalhar a partir de canções dos outros. Ou seja: canções minhas, mas que nascem de ideias que tirei de alguma música de alguém. No começo, isso era um projeto de álbum. Queria pegar o “Yankee Hotel Foxtrot” do Wilco e refazer. “Orange Traffic Cones” é uma música que nasceu assim: ela é a minha “Kamera”. Como começa “Kamera”? Com uma batidinha e um vocal mais grave e contido que o resto do disco. “Aphasic Singalong” é a minha “War on War”. Foi um processo consciente: partia sempre da ideia principal, mas juntava com outras coisas e saía com uma coisa que fosse diferente, mas tivesse algo original. Esse projeto acabou se perdendo no meio do disco, mas ainda tem certas canções que tão nele e são assim…
Engraçado você ter falado do Wilco porque na primeira vez que ouvi o “Comic Sans” eu pensei que tinha muito de Wilco e de Elliott Smith nele. Foram duas referências que vieram fácil na minha cabeça.
Vou te falar que nunca tinha ouvido direito um disco do Elliott Smith até três meses atrás. Não tem nenhuma influência. Mas sempre vi os filmes do Gus Van Sant, que têm as músicas dele. Isso é, eu nunca tinha parado pra ouvir, mas sabia o que era. Coincidentemente ou não essas músicas já tinham sido apresentadas pra mim. É engraçado: “Orange Traffic Cones” é “Kamera” muito claramente pra mim, mas as pessoas falam em Blur, em Beck. Quando acabei de gravar ano passado, falei pro Daniel: “estava tentando fazer ‘Kamera’, mas saiu uma mistura de Norah Jones com Jota Quest”. Realmente achei isso (risos). E cada um acha uma coisa diferente, o que é interessante por uma matriz específica. Fico feliz que você tenha achado Wilco…
Vejo Wilco em quase todo o disco, e alguma coisa de Manic Street Preachers em “Settle”…
(interrompe) Que é uma banda que nunca ouvi. “Settle” pra mim é Hüsker Dü, de uma maneira desconstruída. Tem muito a ver com o estilo da minha banda anterior. Peguei uma música de punk-rock, a desmontei e joguei uns pedaços fora. Não tem bateria, nem baixo… É muito maluco isso: mesmo tendo muita clareza de onde eu estava tirando as músicas, depois ouço o disco de novo e descubro uma frase melódica muito parecida com coisas diferentes. Óbvio que tenho o interesse de fazer algo meu e original, mas nesse sentido sou meio maneirista. Não tem como eu fazer música sem passar pelo “Yankee Hotel Foxtrot”, hoje. Como não tem como não passar pelo “Pet Sounds”, pelo “Revolver”, dos Beatles. Não dá pra ignorar algumas referências…
Como elas apareceram na sua vida? Fala um pouco mais sobre esses três discos e a importância deles pra você…
A primeira vez que eu ouvi Wilco foi um presente de uma amiga de Volta Redonda que me deu o “Being There”. É um álbum que tinha sido bem criticado na época. Ela comprou, não gostou e me deu. Ficou guardado muito tempo lá em casa e eu me lembro claramente da sensação de quando ouvi. Estava indo de ônibus do Rio para Barra Mansa, estava calor e o ônibus estava com a janela aberta, e botei o disco pra ouvir e ele fez um sentido absurdo. Tão absurdo que, quando o “Yankee” saiu, eu não encontrei muito sentido naquilo porque o “Being There” ainda era o disco que eu não conseguia superar. O que é pra mim hoje o disco da Joanna Newsom, que eu considero infinito, algo que não consigo superar pessoalmente. É um problema monumental na minha vida aquele disco, uma obra-prima absurda. Comprei o “Yankee”, ouvi um pouco, e então teve o show do Wilco no Rio em 2005, que eles abriram com “Poor Places”. Foi quando o disco se revelou pra mim, tocado ao vivo na minha frente. E foi algo angustiante porque eu sabia que estava vendo o show da minha provável banda favorita a partir daquele momento e nem conhecia todas as músicas que eles estavam tocando. Felizmente depois consegui ver o Wilco mais cinco vezes, então… Já tá até bom. Desisti de esperar eles virem de novo. A experiência com os Beatles foi um pouco diferente… era uma das poucas coisas que dividi com a minha mãe, que ela tinha em casa. Parte dessa coisa de cantar em inglês era porque cantar em português era Chico Buarque, e Chico Buarque era a minha mãe…
Você estava tentando negar a sua mãe… (risos)
Naquele momento, para mim, era muito importante negar a minha mãe e o meu pai. Pô, eu tinha uma banda de punk-rock… Mas fui explorar a discografia dos Beatles depois, já mais velho, com 19, 20 anos. Eu falei do “Revolver”, mas podia ser o “Álbum Branco”… Talvez o meu favorito hoje seja o “Abbey Road”, que acho um disco inacreditável, assim como o “Sgt. Pepper’s” ou o “Rubber Soul”. Acho que toda a música pop está tentando até hoje lidar com os Beatles. É um negócio que fez e faz um estrago tamanho que as pessoas tão até hoje tentando lidar, tendo aquilo como uma referência que não dá pra se ignorar. O “Pet Sounds”, ao contrário do que é comum, não veio junto com os Beatles. Ele veio antes. Por culpa do The Invisibles, eu ouvia muita coisa que era influenciada por Ramones. E os Ramones foram influenciados pelos Beach Boys, então Beach Boys foi uma das primeiras bandas antigas fora do nicho de punk-rock que fui procurar ouvir. E comecei ouvindo “Fun Fun Fun”, “Be True to Your School”, “Surfin’ USA”, até que um dia baixei o “Pet Sounds” e acabou tudo. E hoje nem só o “Pet Sounds”, mas também os discos que eles fizeram depois também me impressionam muito, como o “Smile”, o “Friends”… Não consigo pensar em música descolado desses discos. Música pra mim está ligado ao que esses discos são. Felizmente, ainda tem discos saindo que mexem comigo da mesma maneira, como o último da Joanna Newsom, por exemplo. “Agora entrou um dado novo aqui que eu não vou conseguir ignorar”. A Joanna Newsom é uma compositora extraordinária, mas uma letrista sem igual. Achava o Jeff Tweedy um grande letrista, mas quando chega a Joanna Newsom, ela faz tudo parecer um pouco menos grandioso. Mas isso é papo de análise, um pouco…
Pegando um pouco a ideia da juventude, uma vez você falou numa entrevista que “achava que a juventude não se completa se você não vai a shows de rock”.
Não entendo jovem que não foi roqueiro, da mesma maneira como não entendo música sem pensar nos Beatles. Isso fecha um pouco o que eu disse a respeito de cantar em inglês. Você tem que estar puto com alguma coisa, de alguma forma, porque você é jovem e tem muita energia. Quem dera eu tivesse o foco de saber para onde direcionar minha energia naquela época. Não sabia o que fazer com a minha banda – e ela até existiu por bastante tempo, e lançou discos. Mas é uma coisa que você precisa. Especialmente no meu caso, crescendo numa cidade que não tinha nada. Lá teve show de rock quando eu comecei com a minha banda. E quem ia ao show eram os meus amigos, as pessoas com as quais eu me relacionava, que era quem ouvia rock na cidade. É um negócio muito restrito. Juventude tem muito a ver com isso. Eu não queria ouvir jazz quando eu tinha 18 anos, por mais que hoje escute Nina Simone e ache a coisa mais inacreditável do mundo. O punk-rock nunca foi exatamente música com M maiúsculo. É óbvio que tem canções incríveis, e discos incríveis, mas não era só uma questão musical, mas de postura com o mundo, energia e comunidade. É uma obra que só faz sentido dentro daquela comunidade, e quando ela se expandia ela meio que acabava. Não é à toa que o Clash nunca pode continuar sendo uma banda de punk-rock: quando eles começam a ficar muito grandes aquilo deixa de ter sentido. Acho que é uma coisa ética também, que pra mim é forte. Praticamente não ouço mais nada de punk-rock, embora muita gente da Driving Music tenha vindo desse mesmo meio. É um lance ético de tentar fazer coisas diferentes. Jovem que não gostou de rock, pra mim, não é a ideia de jovem que eu tenho, sem querer desrespeitar ninguém. Se fosse estar no meu dicionário, ouvir rock seria uma condição – e obviamente não me considero mais um jovem. Estou gravando um disco com violão, e tenho quase trinta anos… Mas essa coisa de guitarra alta, de se perder frequências do seu ouvido pra sempre porque um puto botou um amplificador alto pra caralho e você saiu com aquele zumbido e você nunca mais vai ouvir aquilo… Sempre achei esse risco muito impressionante. Hoje não quero mais perder frequências, mas naquela época eu achava importante, morrer um pouco, perder algumas coisas no processo. O rock é algo muito violento, e acho violência, enquanto conceito, uma coisa importante pra vida. Sair do mesmo lugar, se destruir.
Pegando outra frase sua: “Minha maior vontade é fazer música como um padeiro faz pão”. Eu tentei de vários jeitos interpretar essa frase e nenhum deles se encaixou direito. Queria que você falasse um pouco mais disso também.
Sou um grande apreciador de culinária. Acho um pão bem feito um negócio muito nobre. Mas o que eu queria dizer é que eu não quero que a música seja uma exceção na minha vida. Quero fazer música todo dia, como um cara vai lá pra padaria todo dia e faz pão.
Até porque a música não é a tua atividade profissional…
Não, mas mesmo se fosse. Vários artistas conseguiram fazer isso acontecer. Alguns cineastas que vão e pegam a câmera todo dia pra filmar alguma coisa. É mesmo a coisa da atividade diária: o padeiro fazendo pão, o pedreiro subindo um muro, e você está ali fazendo o seu trabalho, não no sentido de remuneração, mas no sentido de trabalho mesmo, por sua força ali. Isso me interessa muito, que a música seja um ato de trabalho contínuo. Por mais que eu não vá lançar coisas todos os dias, eu não queria ter uma banda para ensaiar uma vez por mês, ou lançar um disco a cada três, quatro anos, que acaba sendo a rotina das bandas independentes brasileiras. As bandas aqui duram 15, 20 anos, mas ficam se arrastando. Não quero isso. Música pra mim é uma atividade diária, de alguma forma, seja ouvindo, compondo, escutando outros discos com o sentido de pesquisar referências e novos sons. Pensar que cada dia estou fazendo um pouco. E é engraçado que desde o lançamento do “Comic Sans” eu não tenho nenhuma música pronta. A cada dia tenho gravado ideias, frases, riffs, e uma hora vou juntar todas elas e tentar ver no que dá. Um pouquinho a cada dia, uma hora vou encontrar o sentido disso tudo.
Outra coisa engraçada que você falou uma vez e que eu queria discutir é a seguinte. Ia rolar um show da banda e você falou que estava fazendo tanta divulgação que parecia um vendedor barato.
Pô, nem lembrava disso.
Ia te perguntar justamente disso: hoje o artista tem que compor, tem que produzir, tem que divulgar o seu trabalho e correr atrás de marcar os shows, porque não tem um executivo que vai chegar no final do mês e te dar um contracheque para viver. Como é que você encara isso?
Cara, existia outro modelo de trabalho que contemplava muito algumas pessoas, e não necessariamente as mais interessantes, as mais capacitadas, e hoje esse modelo não existe mais. Acho que não só na arte, mas na vida também, aquela coisa de você ter um emprego e uma carreira já está com os dias contados. Não vejo muito futuro nisso, nessa vida meio de funcionário público, as pessoas precisam pensar no que elas tão fazendo, as coisas não vão andar se elas não pararem pra olhar. Mas vale dizer que vender a minha banda, a minha música, não é exatamente a melhor coisa que eu faço no mundo. É muito difícil hoje que você consiga alguém que se interesse para ouvir o seu disco, e entendo isso porque eu acho difícil me interessar para ouvir os discos dos outros. É um processo lento, às vezes frustrante, mas não tenho escolha, e também ninguém me deve nada. Não sei como você ouviu o disco pela primeira vez…
Acho que foi quando saiu o link no próprio Scream & Yell… Mas foi engraçado porque eu peguei para ouvir o disco agora antes da entrevista e descobri nele coisas diferentes do que eu tinha ouvido na primeira vez. Nunca tinha me impressionado com “Skatepark”, e hoje é a música que mais gosto do disco…
É um comentário que já ouvi várias vezes: a cada show que fazia, alguns amigos mudavam de música favorita. Acho bacana isso que vai mudando…
É um disco que tem camadas sonoras: a percepção dele muda o quanto mais você ouve. E isso tem muito a ver com a produção do disco, que pra mim está muito bem amarrada. Em algum dos teus textos, você comenta que “compor bem é essencial, mas produzir bem é necessário também”.
Acho que essa é a questão essencial da música brasileira independente hoje. Os músicos ainda não entenderam que um timbre é tão importante quanto uma nota. Por isso, acho que existem canções ótimas e compositores excelentes, mas tenho muita dificuldade de ouvir porque acho o som muito mal gravado. Acho que dei sorte, porque gosto de ficar horas na frente do computador fazendo essa porra. É um trabalho de maluco, mas adoro. O meu estúdio, que é um quartinho na minha casa, é o meu habitat natural. É onde me sinto mais estimulado. Mesmo que demore muito tempo, é ali que vou processar ou gravar melhor um som que quero. Não sou nada estudado nisso: faço muitas cagadas, erro muito, mas um pouco do que o disco tem de diferente é justamente isso. Um exemplo é que aplico na minha voz um efeito que ninguém aplica em voz, que é um efeito para teclado, um simulador de órgão. Filtro quase todas as vozes por ali. Uma hora tive essa ideia e resolvi experimentar, e acabou funcionando. Se as canções não fossem boas, nada disso serviria. Sou muito interessado em compositores clássicos do pop, no estilo clássico de composição pop, composições em quatro tempos, com verso, refrão, ponte, tudo muito bem explicado, as coisas nos lugares delas. Acho difícil demais fazer isso – Bruce Springsteen é um cara que faz isso divinamente bem. O último disco do Ron Sexsmith, “Long Player Late Bloomer”, que é um desses caras pra mim, é um disco muito difícil de ouvir pra mim porque é super mal produzido. A produção é pra tentar facilitar o contato da música com as pessoas, e no Brasil pouca gente percebeu isso até agora. É um trabalho vital para o disco sobreviver, para o disco não parecer um disco feito na década de 80, com todos os cacoetes que ainda não foram abandonados, porque se está acostumado a fazer as coisas daquele jeito.
E o mais interessante disso tudo é que você produziu isso totalmente em casa.
Talvez nem conseguisse fazer em estúdio, porque é um trabalho demorado e caro, acho que não conseguiria pagar alguém pra ficar ali operando as coisas para mim. Outra coisa bacana de se gravar em casa é que ele não tem nenhum isolamento acústico, então pega muito do som do ambiente, da minha empregada lavando prato na cozinha, das velhinhas do andar de cima. Se essa ideia de fazer música igual um padeiro faz pão serve, então tem que se considerar também o ambiente em que esse pão é feito. E tem reverberação do quartinho… É muito fácil hoje gravar um disco perfeitinho. O que também é um problema: não basta entrar num estúdio e sair com um disco lindo, limpo e prefeito. O difícil é fazer um disco do Guided by Voices, que gravava numa fita cassete e acabavam chegando num som que você conseguia identificar não só pelas músicas, mas também pela produção dos caras. Tudo o que se envolve ali é pensado artisticamente, e eu estava tentando isso. Não é à toa que acho o primeiro disco do Bon Iver lindo, mas não tenho a menor paciência de ouvir o segundo. O primeiro disco tem a marca do lugar onde o disco foi gravado. No segundo tem quinze pessoas cantando com ele num estúdio normal, fica parecendo, sei lá, o Coldplay (risos). Os meus discos favoritos têm isso: eles têm algo de impresso de como eles foram feitos neles.
Uma critica ao “Comic Sans” dizia que não era um disco simples, mas um disco simples de ser ouvido. É um disco que não tem problemas pra ser ouvido na íntegra – quando ouvi o disco pelas primeiras vezes, eu ouvia no metrô, ou no ônibus, que eram ambientes que não me trariam problemas pra ouvi-lo. Uma das coisas que ajudam isso é o pensamento nas sequências de música. Percebo que você tem uma preocupação especial em fazer um caminho ao longo do disco.
Você falou disso e pensei logo no Sondre Lerche, que é um dos meus músicos favoritos. Uma das características do trabalho dele é pegar algo que é complicado e fazer parecer muito fácil – e como compositor, ele é bem mais sofisticado que eu, seja nos arranjos ou na maneira que ele usa os acordes e como os encadeia. Compartilho essa intenção dele de fazer uma música com andamento 7/4, que você nunca vai ouvir no rádio, e mesmo assim fazer com que o ouvinte não perceba que ela tem um “pedaço faltando”. As pessoas quando vêm tocar comigo normalmente se surpreendem com a quantidade de notas nas músicas, e principalmente, na maneira como essas notas mudam de uma parte para a outra. Dificilmente faço um refrão igual ao anterior, porque acredito que é necessária uma mudança que a própria duração da música precisa impor. Senão fica uma coisa muito quadrada, muito tediosa. O tempo transcorrido da canção precisa afetar a própria canção, ela precisa sofrer com isso. Se a música começa e termina do mesmo jeito, acho que algo não aconteceu. Quanto a isso da ordem das músicas, é uma coisa que sempre me preocupei, desde o tempo do The Invisibles. E agora lembrei que uma das minhas brincadeiras favoritas de infância era pegar um disco e criar uma nova sequencia, ou ficar fazendo coletâneas, ou misturar coisas, ou escolher dez discos de um artista e selecionar músicas para fazer um álbum só. Sempre me interessou muito como esse contínuo, o que tem um pouco a ver com o que depois virou minha paixão por cinema.
Você pode jogar uma música no lixo se você colocá-la entre duas outras que não façam sentido. É uma brincadeira que muita gente faz hoje com as mixtapes…
Acho que vou mais além: escrevo pensando na faixa 5. “Tá faltando uma faixa 5”. Na época do Invisibles ainda, dei uma entrevista e um cara me perguntou: “pô, mas qual é a diferença entre a 5 e a 6?”. Falei que a diferença era que a 5 vinha depois da 4 e a 6 vinha depois da 5. É uma diferença elementar, mas a música vai responder a alguma coisa que está vindo antes e vai preparar para o que vem depois. Nesse disco, vai um pouco além: queria construir algo que fosse quase uma peça inteira, com ligações entre as canções que dessem alguma organicidade. Em alguns momentos isso acontece bem para mim, no começo de “Skatepark”, por exemplo. Gosto muito do começo de “Lavender Suit”, com aquelas guitarras gravadas ao contrário. É algo que sempre foi forte pra mim, e voltou a ser com o “Comic Sans” porque ele é meu primeiro álbum cheio desde 2004 – desde aquele ano eu lancei muita coisa avulsa, demo, EP. É algo que eu acho que vai ficar mais forte nos próximos trabalhos.
Por que “Comic Sans”?
(pausa breve) Achava que era a hora de alguém resgatar a fonte da má fama pública (risos). Nunca tive alguma relação com a fonte, mas achei que era um título bom, sonoro e achava um absurdo que ninguém tinha lançado um disco com esse nome. Sim, fiz a pesquisa no Allmusic pra ver. Agora descobri que tem um cara do Rio que vai chamar um EP chamado “Cosmic Sans”. É uma boa gag, porque eu não queria que ficasse um disco sisudo, porque a gente não é uma banda sisuda – os shows têm até certo lado de comediante, quando estamos inspirados. Mas ao mesmo tempo em que é uma gag, eu achava que a outra via nesse nome era uma brincadeira com o Sans, que vem de ser sem serifa, mas pode ser uma leitura para “sem humor”. Tem uma dualidade ali de negativo-positivo dentro do próprio nome do disco. E quando falei pras pessoas, ninguém achou que era uma má ideia, então ficou. Tem gente que acha que o próximo disco vai chamar Helvetica (risos).
E por que Driving Music?
(outra pausa breve). Caralho, não me lembro de onde isso veio exatamente. Desde que tirei a carteira de habilitação, ouço música no carro. Eu vim do Rio até aqui com seis horas de música ininterruptas, e é um momento bom para mim [o de dirigir ouvindo música]. Talvez tenha aí alguma relação com o cinema de imagem e movimento, com a música de fundo, olhando pela janela… Quando pensei num nome, também fiquei chocado que não existia nenhuma banda chamada Driving Music, porque para mim era um nome muito bom. O myspace já estava registrado porque um cara lançou uma coletânea de techno com esse nome, mas não existia nenhuma banda chamada Driving Music. E aí aparece outro duplo sentido: pode ser tanto música para dirigir quanto uma música que te leve para outros lugares. Ter “music” no título também era algo que me agradava. Mas dificulta a pesquisa no Google, no Twitter, sempre aparece um monte de bobagem… (risos). E gosto da ideia de ser uma banda que tem um nome que pode ser qualquer coisa. Se um dia me der na telha de fazer um disco de música eletrônica, pode soar coerente.
Uma das interpretações que você pode fazer do nome da banda é justamente essa coisa utilitária: “Tá, é música para dirigir”, e daí pode-se degringolar para o costume hoje que muita gente tem de ouvir música não prestando atenção na música, como se ela fosse algo acessório à vida. É o que eu pensei quando ouvi o nome da banda. E quando eu escutava no metrô, ou no ônibus, é porque era um disco calmo, e me ajudava a pegar no sono, da maneira que isso possa soar como um elogio…
(interrompe). É um bom disco pra dormir, e eu recebi isso mais de uma vez como um elogio.
Mas como você vê isso de “música pra ouvir fazendo outras coisas”?
Gostaria que não fosse só isso, mas não depende muito de mim, na verdade. Depende da pessoa: se ela tiver parada pra ouvir as letras ela pode achar algo de diferente ali. Se ela ouvir no fone, talvez também. Faço disco pensando em fone de ouvido, mixo o disco com fone de ouvido, que é algo que ninguém faz, porque gosto de colocar coisas escondidas no disco. Aquilo de ter muitas camadas, e elas irem sendo achadas ao longo do tempo, tem um pouco a ver com isso. Gosto de premiar quem ouve o disco com fone. Mas uma coisa é ouvir o disco com fone no silêncio, e outra é ouvir no metrô, onde o barulho externo vai cortar uma porção de detalhes… Gosto da ideia de imersão do fone, de fechar o olho e ouvir um disco falando só pra você. Poucos são os discos que me dão um safanão e me mandam parar pra escutá-los com a devida atenção. É o caso da Joanna Newsom: parar pra ouvir o disco dela durante duas horas é quase um ato político, ouvir uma mulher ali cantando sobre universos que não são os seus, desconhecidos em boa parte das vezes. Tanto musicalmente como quando letrista, ela vai a uma série de lugares que não são comuns. É um comprometimento, você tem que parar pra fazer isso. E gosto disso: já vi filme de nove horas no cinema. Tem certa beleza nisso: a gente corre muito ultimamente, então é interessante falar “Vou ficar aqui durante nove horas vendo esse filme no cinema”. Um filme. Que nem sei se vai ser bom. Concordo com você, mas gostaria de concordar menos. Música é mais importante do que a gente costuma ver, mas também é interessante esse fato dela ser meio “vagabunda”. A gente está tão inserido no mundo em ouvir música por aí, em comercial, em qualquer lugar. Acho que a arte tem que ser assim, tem que estar ali para quem quiser pegar, tem que ir pra rua. Não quero fazer música para um grupo específico de pessoas, mesmo sabendo que isso vai acontecer.
Você quer ser ouvido?
Quero. Se cantasse em português, facilitava, mas quero sim. Existem níveis de compromisso que me permito ou não fazer. São bobagens minhas, mas são importantes. Claro que quero ser ouvido, não acredito em quem fala que quer ser underground. Esse lado meio “gueto” do punk-rock foi sempre algo que me afastou, isso de ser algo pra poucos. É para poucos já: cantar música em inglês no Brasil é pra poucos sim, e ponto final. Mas espero que, desses poucos, sejam todos. Não vou ter o sucesso do Jota Quest, mesmo que tente fazer uma música parecida com a deles (risos). Não tenho essa ilusão, mas espero que a minha música seja o máximo que ela possa ser. Senão é que nem assumir derrota antes de começar, e não acredito muito nisso.
Você teve uma banda por dez anos, que começou no interior e depois foi para o Rio de Janeiro, tocando lá e que pode até ser chamada de “banda carioca”. Agora você tem o Driving Music. Queria saber como você vê a cena carioca nesses últimos tempos, porque existem aqueles que falam que ela morreu, enquanto tem gente que fala que ela nunca deixou de viver, e alguns que vem perspectiva nela de estar ressuscitando ou que ela nunca chegou a existir, que é melhor ir pra São Paulo de uma vez…
(interrompe) Mas existe cena em São Paulo, também?
É difícil dizer. Existe porque todo mundo vem pra cá, porque tem bastante coisa aqui, mais gente que faz e que ouve música…
Gosto muito de São Paulo. Acho uma cidade muito interessante, e acredito que o Rio tem muito a aprender com São Paulo, e talvez São Paulo nem tanto com o Rio. Ando muito frustrado com o Rio. A cidade está indo para um caminho que acho muito triste.
Mas isso tem a ver com política, com quem tá no poder?
Com a mentalidade do carioca de hoje.
E que mentalidade é essa?
Não quero parecer preconceituoso, quero parecer conceituoso, mas acho muito sintomático que o Rio tenha um prefeito que é da Barra da Tijuca. Ele era um prefeitinho da Barra, e hoje é o prefeito da cidade. E a Barra nunca foi exatamente um caminho que eu achasse interessante para a cidade, e o Rio está cada vez ficando mais parecido com a Barra. Não adianta nem ir contra porque as pessoas querem isso mesmo. Uma hora, talvez, vou ter que sair pra outro lugar. Não sei se ficando seis meses em São Paulo eu ia ser tão simpático à cidade quanto sou hoje, vira outra relação. Tem coisas que me incomodam em São Paulo: aqui tudo vira agência de publicidade. Não dá pra fazer arte em um clima desses. É um problema sério porque são coisas realmente muito diferentes, e é um limite que não pode se perder porque viraria uma tragédia. Em compensação, é uma cidade que demanda um cuidado com as coisas que o Rio poderia aprender. Aquilo de as coisas poderem ser mais bem feitas. Mas, musicalmente, confesso com alguma tristeza que após dez anos de banda fiquei ressentido com a música no Rio. Existiu um momento muito interessante com várias bandas fazendo algo ali, dialogando o que eu fazia; em outro, se tornou uma necessidade enorme minha achar que não tinha ninguém ali que fizesse algo parecido com o que eu faço, ou melhor do que eu podia fazer, e aí virava uma competição maluca. É algo péssimo, mas talvez tenha sido importante pra mim que isso acontecesse em algum momento. E aí me desacostumei de ir a shows, ouvir bandas novas. Agora estou voltando a ver algumas coisas e estou me surpreendendo de alguma maneira.
Com a música feita no Rio hoje?
É. São coisas que digo que talvez não sejam exatamente o que eu gostaria que estivessem acontecendo, ou que eu veja como um caminho legal para a música carioca ou brasileira, mas há um caminho. Existe gente apontando pra algum lugar, e isso é uma novidade. Nessa semana fui num show na Audio Rebel, que é uma casa de shows que adoro. Ela é de pessoas que tinham banda na época que eu tinha o Invisibles, e investiram em aparelhagem de som, fazendo uma casa de show que também é estúdio que também é loja que também é albergue… Fui ver o show do Dorgas lá, que eu nunca tinha visto. Continuei meio sem ver porque o show atrasou muito, e acabei tendo que ir embora no meio, peguei só três músicas (risos). Mas vi a banda que abriu pra eles, que chama Novocaines, e vi coisas muito interessantes ali. O frontman cantava bem e tocava guitarra excepcionalmente bem, com o dedo, em um estilo particular. São garotos, com vinte e poucos anos, com uma pegada de rock setentista com alguma coisa de música brasileira, eles tocaram uma cover de Jorge Mautner. Achei interessante ver aquilo. Não sei se eu chegaria em casa e botaria o disco para escutar, mas achei bacana que exista gente fazendo aquilo hoje. Mas, um pouco por conta desse ressentimento, que espero que esteja passando agora, música pra mim sempre foi algo solitário. Nunca tive muito diálogo com outras bandas, nunca achei que as coisas que a gente fazia vinham da mesma base. Hoje eu tenho boas conversas com outros músicos…
Os músicos que hoje são da Driving Music vieram todos de outras bandas…
É. O PELVs é uma banda que sempre achei muito boa. Tinha muitos problemas, mas com um compositor muito inspirado e com melodias que eu achava muito bonitas. Estou cercado de pessoas que admiro. Até mesmo pra vir tocar aqui na Casa do Mancha, teve toda uma ponte com o pessoal do Supercordas. São bandas que conheço mal os discos, mas já ouvi e achei bacanas. Ouvi o disco do Bonifrate, e acho um disco legal, e sinto um ponto comum pra gente ter conversa e interlocução, que é algo que eu senti por muito tempo que tinha se perdido. Sou talvez uma das pessoas menos indicadas pra falar da cena do Rio, porque passei muito tempo sem ver nada, mas o que tenho visto hoje em dia me anima mais do que me animava há cinco anos. Tem uma galera de música experimental surgindo dentro do AudioRebel, tem o Chinese Cookie Poets. Tem coisas interessantes sendo feitas, tem pensamento por trás. O problema do punk-rock é que não existia o pensamento. Tinha muito impulso e pouca ideia, pouco direcionamento. E acho que hoje em dia tem gente com direcionamento no Rio, o que pra mim está sendo estimulante. Como acho o Rômulo Fróes um cara que tem um direcionamento estimulante, embora seja um dos casos de discos que eu ache pessimamente mal gravado. Rômulo é um compositor que não tenho dúvida do talento. No Rio, hoje, na verdade, a banda que a gente mais toca junto hoje também não é uma banda, é um cara só, que é o Mário Maria, que é um cara extremamente talentoso e faz músicas que adoro. Ele grava de uma maneira muito mais precária do que eu, porque ele grava com o microfone do próprio laptop e aí capta tudo mesmo o que tem ao redor. Existem coisas que acho fascinantes nele. Eu sentia falta de ter pessoas com quem conversar sobre música.
Mas você pode conversar sobre música com qualquer pessoa…
Sim, mas hoje converso como um fazedor de música, não só como quem ouve música, mas sim da perspectiva de quem faz música. As pessoas que fazem algo olham para aquilo de maneira diferente do que as pessoas que simplesmente só se relacionam com aquilo. É o meu caso com o cinema: não sou um diretor, embora até escreva alguns roteiros para cinema e sobre cinema. Não vou conseguir ter com um diretor uma relação que dois diretores têm entre si, porque eles têm esse ponto em comum entre si. Não é o mesmo papo que vou ter com um artista plástico, embora todos sejamos artistas, e achemos um meio de conversa. Mas a especificidade da conversa estava perdida pra mim, e consigo vê-la voltando com algumas bandas, e algumas pessoas. É pequeno, e devagar, mas não me preocupo em fazer tudo rápido. Não, o Rio não está bem. Mas ele já esteve muito pior, e isso me dá um alento.
– Bruno Capelas é estudante de jornalismo e assina o blog Pergunte ao Pop. Fotos por Clarissa de Oliveira. Tanto o álbum “Comic Sans” quanto o “EP 2010” estão disponíveis para download gratuito no site oficial do Driving Music: http://driving-music.net/home/
Achei a entrevista interessante, e por cause dela, baixei o disco.
Porém o que ele diz não tem muita coerencia com o que eu ouvi, tudo que ele criticou na cena nacional esta presente no disco, que tem algumas boas musicas, mas com arranjos confusos e a qualidade do som é muito ruim, mesmo compreendendo o conceito dos efeitos, a mixagem me pareceu bem confusa… O show deve ser mais interessante.