O Oscar pode não significar nada, mas, entre escolhas e omissões, costuma explicar muita coisa. E uma subtrama que vem há décadas se desenrolando a partir das listas de indicados e vencedores é a dependência da cultura popular em seu próprio passado.
O western, que até o princípio dos anos 90 só existia na história da premiação por conta de um único e desbotado registro (“Cimarron” foi tido como o melhor filme de 1931), retomou sua glória cinematográfica — com “Dances With Wolves” / “Dança com Lobos” (1990) e “Unforgiven” / “Os imperdoáveis” (1992) — após três décadas dentro de um caixão (as obras de Sergio Leone e todas as suas variações spaghetti são um caso à parte).
Do mesmo modo, o musical, principal chamariz de público nos primórdios do cinema sonoro, foi diversas vezes revisto por Hollywood e celebrado pela indústria — tanto em abordagens que de alguma forma incorporavam o zeitgeist (“West Side Story”/ “Amor, Sublime Amor” de 1961) como em produções essencialmente nostálgicas (“Chicago”, de 2002). O próprio “Singing in the Rain” / “Cantando na Chuva” (na certa esnobado pelo Oscar por conta do fato de um outro filme do gênero, “An American in Paris” / “Sinfonia de Paris”, ter sido consagrado no ano anterior) promove, como temporão de uma era dourada, uma releitura precoce de um cinema que, no começo dos anos 50, já ensaiava sua decadência.
O caso de “The Artist” / “O Artista”, no entanto, é bastante diferente. Ele não marca a retomada de um gênero específico nem se limita a se apropriar do imaginário de determinado período. A intenção do diretor Michel Hazanavicius foi prestar uma homenagem ao cinema mudo com um filme que, embora conte com uma trilha sonora gravada e sincronizada, emula em minúcias a técnica cinematográfica usual naqueles dias — da fotografia em preto e branco ao formato de tela (1.33:1, conhecido pelos historiadores como academy ratio e pelos compradores de DVD como full screen).
No universo de seus 100 minutos de duração, “O Artista” é incontestavelmente agradável. Porém uma sensação incômoda o cerca: a produção aclamada como a melhor e mais relevante de 2011 não passa de um simulacro de uma película da década de 1920. A ausência de diálogos sonoros e os demais detalhes que remetem a uma tecnologia antiquada não cumprem, durante a maior parte do tempo (a não ser na sequência do sonho do protagonista), qualquer função narrativa. São meros artifícios, parte integrante do ar retrô que faz do filme uma espécie de parque temático baseado na velha Hollywood. E isso é cinefilia de gift shop.
Trata-se de uma obra que deveria ser encarada da mesma maneira que “Dead Men Don’t Wear Plaid” / “Cliente Morto Não Paga” (1982), pastiche noir no qual Carl Reiner botou Steve Martin para contracenar com imagens de arquivo de Humphrey Bogart, Bette Davis, Barbra Stanwyck, Alan Ladd etc., e a sessão dupla “Grindhouse” (2007), na qual, em cópias propositalmente (e nostalgicamente) desgastadas, Quentin Tarantino e Robert Rodriguez brincaram com cinema pé-de-chinelo que sustentou drive-ins mundo afora nos anos 1970.
Mas “O Artista” foi levado a sério. Agora, a Academia de Artes Cinematográficas possui dois filmes mudos em seu histórico de premiações: um de 1927 (“Wings” / “Asas”, contemplado na primeira edição do Oscar e lançado meses antes de o som se tornar o padrão) e outro de 2011. Assim, embora na aparência “O Artista” seja anti-3D e anti-CGI, temos em mãos um bom indicador dos rumos do cinema — que, na essência, sempre foi marcado pelo artificialismo, mas nunca havia se revelado tão fake.
– João Eduardo Veiga, 31, é jornalista. Tem escrito no blog www.depoucamtonta.com
Outro detalhe que explica bastante coisa: lançamento pelos Weistein. O lobby deles é imbatível.
Talvez o maior mérito de “O artista” seja a vontade que dá de rever “O âncora”, seu filme-gêmeo passado nos anos 70…
Pensei mais ou menos a mesma coisa sobre o filme. É bom, bem feito, mas parece que o único propósito é ser uma homenagem, e nada além. Na sequência do sonho, achei que a história fosse tomar um rumo diferente, de brincar com a questão do som, mas não.