Música – Romulo Fróes: Estrutura e Estranheza

por Miguel Ramos

Considerado um dos principais nomes da nova geração da música brasileira, Romulo Fróes vem há tempos produzindo um trabalho, no mínimo, bastante interessante. Seu quarto álbum, “Um Labirinto em Cada Pé”, lançado recentemente, parece consolidar uma mudança grande em sua obra, apontada em canções de seu segundo disco, “Cão” (2006), aprofundada no disco anterior, o álbum duplo “No Chão Sem o Chão” (2009), mas só agora plenamente concretizada. Essa mudança merece ser olhada mais de perto.

O centro desse movimento parece estar naquilo que organiza e confere unidade as canções. Nos dois primeiros discos, essa unidade era garantida por seu núcleo, a articulação da melodia com a harmonia, pela letra cantada, em suma. Dessa forma, a unidade sendo nuclear, os diversos elementos que compõem as faixas entram como exterioridades à própria identidade da canção. O arranjo de guitarra em “Sol Sem Calor”, o coro em “Atrás Dessa Amizade”, ambas faixas do disco “Cão”, ou os desafinos em “Suíte”, música do primeiro álbum de Romulo, “Calado” (2004): os elementos acrescentam, de fora, significados à canção. Já em “Um Labirinto em Cada Pé” ocorre o contrário: a unidade agora é garantida pelas bordas, pela batida do baixo e da bateria. Todos os elementos são interiorizados, fagocitados por uma estrutura que, por mais estranha que se torne, circunda a música e delimita claramente sua forma e seus limites. O riff de “Jardineira”, faixa 10 do álbum, não se mostra externo à canção, atraindo-a para um determinado pólo, mas se torna constitutivo, ajuda a organizar a letra e a compassar a bateria. Todos os elementos da faixa (letra, bateria, melodia, guitarra) se encontram lado a lado, sem hierarquia, dispostos simetricamente, ajudando a criar um sentido difuso que não está contido em nenhuma delas. O disco anterior indicava essa estruturação, mas contava com bem menos elementos tratados horizontalmente, de forma que as potencialidades desse movimento eram menos exploradas do que são agora.

A principal decorrência dessa estruturação é a liberação das partes. Desobrigada de constituir a identidade da canção, tarefa agora delegada à estrutura da bateria e do baixo, cada parte pode se constituir mais livremente como um pedaço, uma frase, um fragmento. Por exemplo, as letras. Nesse disco elas não procuram mais um sentido totalizante, organizativo; constituem-se como fragmentos de um discurso nunca completo. O argumento fica evidente ao se comparar as letras de “Marcha”, “Feito Um Estranho” e “Máscara”, três faixas do álbum “Cão”, com músicas do disco novo como “Quero Quero”, “Tua Beleza” e a própria “Jardineira”. Enquanto as primeiras carregavam o sentido da canção, e por isso são coerentes, unidades fechadas, podendo ser lidas sem que se perca o essencial de seu significado, agora, a letra não contém mais o sentido da música, ela é colocada ao lado da guitarra, se confunde com ela, não pode mais ser entendida fora do contexto em que surgiu, nem deve-se tentar lê-la dessa forma. O começo de “Máscara” serve de exemplo: a letra pode ser lida como um texto, autônoma: “máscara / não aquela que cobre a cara / mas a cada momento fala / sem palavras / o amor acaba / como a folha que cai do galho / como o sono que vem dos olhos / e toma a casa / e ninguém vê / ninguém viu / onde foi que ele entrou / nasceu / depois sumiu / não era eu / quem morreu de alegria”. Entre as canções do novo disco, pode-se citar o refrão de “Jardineira”, que só pode ser apreendido em sua existência estranha quando sobreposta aos outros elementos que compõem a canção: “Ó jardineira calada / na lenta ladeira no meio da lapa / como é que dói no seu anjo da guarda / a casa dela tá toda inundada / caiu a pedra no meio da sala / sumiu no pó, mas foi entrevistada”.

Com os arranjos ocorre algo semelhante. Não se constituem mais como unidades coerentes e exteriores à canção, mas como fragmentos interiorizados por essa estrutura. Nesse sentido, perdem suas funções de artefatos culturais para serem especificamente… arranjo. Dito de outra forma: os arranjos de “Cão” aludiam por vezes a identidades culturais exteriores, articulando-as e propondo significações externas ao próprio disco – a frase de Batatinha, “é proibido sonhar, então me deixa o direito de sambar” em “Você Me Diz”, a guitarra em “Sol Sem Calor”, tocada por Lanny Gordin em estilo semelhante aos discos de Caetano dos anos 70, a regravação de “Cadência do Samba” (Ataulfo Alves/Paulo Gesta) com citação a “Fita Amarela” (Noel Rosa) no disco “Calado” e, mais que todas essas, a bateria em “Mulher Sem Alma” (Nelson Cavaquinho/Guilherme de Brito), talvez o momento mais explicitamente tropicalista do trabalho de Romulo. Tropicalista no sentido de articular e colocar em choque identidades culturais constituídas, reconhecíveis e exteriores ao disco. A canção de Nelson Cavaquinho, gravada com um violão de 7 cordas, é estranhada por uma bateria agressiva, que marca não o ritmo, mas sua existência como um instrumento não pertencente ao universo do samba, e assim se sobrepõem dois universos, o samba de Nelson Cavaquinho e a agressividade do rock, de uma bateria tocada em um compasso próprio. Esse jogo de significações externas, de diálogos explícitos com elementos da cultura brasileira dá lugar a uma interioridade estranha, sem pontes explícitas em direção a algo culturalmente consolidado fora do próprio trabalho. Agora, tudo é interioridade, e os arranjos e elementos das canções são pedaços que constroem essa estrutura estranha, e não mais que ela. Não que o trabalho de Romulo não proponha construções ou identidades sobre a cultura brasileira, apenas não fala mais sobre isso; o foco é desviado da identidade cultural que propõe, que fala sobre, para o objeto cultural que é, que figura estranha, indecifravelmente, em meio à imensidão de produtos e artefatos culturais que nos circunda.

Essas proposições acontecem agora em um espaço imaginário turvo, disforme, incompleto – as alusões ao carnaval (a palavra aparece em três das 14 faixas de “Um Labirinto em Cada Pé”), a partes da cidade do Rio de Janeiro (Baía de Guanabara, Cassino da Urca, Cacique de Ramos, Corcovado, Lapa), a pedaços da música popular brasileira – a marcha de carnaval da Jardineira na faixa de mesmo título, a música “Mora na Filosofia”, canção de Monsueto imortalizada por Caetano, em “Muro”, (“Bota na peneira /quero ver passar”); ou a animais – a fixação pelo termo bicho (bicho lindo, bicho preso, bicho ruim, bicho morto), taturana, cachorro, urubu, iguana, baleia, caranguejo. É necessário ressaltar a importância da participação de Nuno Ramos e Clima, ambos artistas plásticos, nessa constituição de um imaginário a que se pode aludir mas não desvelar completamente. Talvez seja essa construção de um universo não completamente discernível, de um imaginário que não pode se constituir como significação, que não pode ser enunciado por inteiro, a contribuição mais forte, mais original e mais contemporânea (embora o trio arrogue para esse imaginário antecessores na cultura brasileira, especialmente a figura-símbolo de Nelson Cavaquinho) do trabalho de Romulo.

Mas é preciso agora perguntar sobre o quê, nessa mudança tão grande com resultados tão interessantes, foi deixado de lado. E a resposta está contida na primeira faixa, “Olhos Da Cara”, que figura no disco como uma reminiscência daquilo que foi deixado de lado, da matéria-prima que deu lugar à estrutura que organiza o disco. E essa matéria prima pode ser traduzida na figura da estranheza.

Desde o primeiro disco, “Calado”, o trabalho de Romulo era constituído pelo recurso da estranheza, a estranheza como um elemento externo, que trazia um outro que não era delimitado, um informe que deixava as canções de um tamanho difícil de se mensurar. O arranjo de “Suíte”, a letra de “Feito um Estranho”, a mistura da guitarra com a melodia de “Dia Tão Cinzento” do disco “No Chão Sem O Chão”; nas três canções existe um elemento externo que é vislumbrado, mas não contido pela música, e isso torna difícil enxergá-las em sua totalidade, sempre parece haver um elemento que não se revela. Essa exterioridade nunca apreendida, parece, é a maior responsável pelo peso desses primeiros discos, ou de algumas de suas melhores faixas. Em “Um Labirinto em Cada Pé”, ocorre o oposto. Todas as partes de cada canção, estranhas em si, moldam uma estrutura que, por mais disforme e ímpar que seja, as circunda e delimita. As canções possuem um tamanho difícil e torto, porém claro. A estranheza está presente, constituindo a estrutura, mas sendo contida por ela. Não parece à toa que nesse disco surgem pela primeira vez arranjos mais claramente pop, especialmente nas intervenções de Nina Becker, o assobio e coro em “Máquina de Fumaça”, o coro em “Filho de Deus”, o backing vocal em “Onde Foi Que Nunca Vem”.

É possível encontrar esses termos dentro do próprio disco: enquanto todas as outras canções se revelam completamente em sua forma estranha, compondo um todo grande, não homogêneo, mas inteiramente visível, a voz de Dona Inah em “Olhos da Cara” rodeia a todas, perpassando suas pequenas aberturas e variações; paira como uma neblina densa, impossível de ser completamente delimitada, completamente enxergada, completamente experimentada.

O álbum “Um Labirinto em Cada Pé”, de Romulo Fróes, está disponível para download no link:

http://umlabirintoemcadape.blogspot.com/

Leia também:
– Romulo Fróes: “Agora é preciso voltar a falar de música”, por Renata Arruda (aqui)
– Show: “Um Labirinto em Cada Pé” ao vivo no Sesc Pompeia, por Marcelo Costa (aqui)
– Romulo Fróes lança “No Chão, Sem o Chão” com belo show, por Marcelo Costa (aqui)
– “No Chão, Sem o Chão”, Romulo Fróes: quarto melhor disco nacional de 2009 (aqui)
– Entrevistão Scream & Yell, Abril de 2010: Romulo Fróes (aqui)

6 thoughts on “Música – Romulo Fróes: Estrutura e Estranheza

  1. Vira e mexe o Rômulo tá por aqui.
    O Scream and Yell está para o Rômulo assim como a Globo está para Maria Gadú. rsrsrs

  2. Eu acho legal o S Y da uma força para os novos artistas brasileiros como tem feito nos ultimos anos. O Romulo é figura carimbada aqui. Mas eu juro que não consigo gostar de nada que esse cara faz com todo respeito ao trabalho dele. Acho na verdade que a maioria dos novos artistas de MPB que surgiram nos ultimos anos que muitas vezes são exaltados aqui em outras midias, são de qualidade duvidosa. Nossa musica passa por um momento terrível em todas as esferas, seja no rock, pop, nova ou velha mpb.

  3. Thiago, mais do que legal eu acho essencial o SY dá força aos novos brazucas.
    O que critiquei é que é sempre o mesmo. Tem tantos.
    Nossa, cara, discordo totalmente! A música brasileira tá num excelente momento.
    Quanto ao Rômulo, eu nem gosto e nem desgosto.

  4. Ahh, só pra ilustrar.
    Céu, Criolo, Guizado, Joseph Tourton, Bid, Lucas Santtana, Cidadão Instigado, Otto… Todos esses lançaram belos trabalhos nos últimos anos.
    Tem para todos os gostos.

  5. Disco chato. Só não tão chato quanto ao texto….

    “Desde o primeiro disco, “Calado”, o trabalho de Romulo era constituído pelo recurso da estranheza, a estranheza como um elemento externo, que trazia um outro que não era delimitado, um informe que deixava as canções de um tamanho difícil de se mensurar.”

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