por Marcelo Costa
03 de setembro de 2011, um sábado de sol, ao menos em São Paulo, e uma pequena parcela de apaixonados por música pop tinha um compromisso especial para este dia: ouvir “The Whole Love”, oitavo disco do Wilco, que seria liberado pela primeira vez para audição no site oficial da banda por 24 horas – e, claro, seria ripado e distribuído em blogs e redes de compartilhamento em seguida.
Amplificada pelo Twitter, a audição de “The Whole Love” lembrou um tempo distante em que uma pessoa da turma comprava um disco, chamava os amigos e todo mundo ouvia aquele álbum junto. Foi mais ou menos assim: um grupo de amigos (virtuais) ouvindo pela primeira vez o disco de sua banda preferida e comentando sobre esta ou aquela passagem enquanto um vinil estilizado girava na tela do computador – sem a possibilidade de trocar faixas.
A relação esquizofrênica que as pessoas têm com a música no século 21 abre espaço para movimentos nostálgicos como a Retromania liderada por Simon Reynolds, uma sensação nublada de um tempo em que a música era mais importante não porque ela era necessariamente boa (apesar de ser realmente boa), mas sim porque ela era de difícil acesso, quase um objeto de culto, algo de gênios ou de deuses que caminhavam sobre a Terra.
O punk, de certa forma, veio para combater isso (e um pouco mais, certo Elizabeth) e, 30 anos depois, a coisa toda tomou uma velocidade anestesiante através de fios de telefonia. Para felicidade de alguns e desespero de muitos, gravar um álbum e disponibilizá-lo na web é algo tão simples como tomar café da manhã na padaria da esquina. O resultado é que são tantos discos para se ouvir que basta virar as páginas do New Album Releases para entrar em pânico.
Temos aqui, talvez, um conflito de gerações. A coisa toda está indo rápido demais para aqueles que amavam seus disquinhos e tinham lá sua relação platônica com os álbuns (e os artistas) – o que a volta do vinil apenas reforça – enquanto a molecada carrega dezenas de milhares de músicas no celular/iPod como se não houvesse amanhã (e há?). Os velhos querem criar leis; os jovens querem quebrá-las. Já vimos esse filme, certo?
Jeff Tweedy montou sua primeira banda, a Uncle Tupelo, quando tinha 20 anos, mas isso ficou lá atrás, nos anos 80. Agora ele tem 44 e precisa se dividir entre a função de pai de família (as pausas da banda em julho/agosto para ele curtir as férias dos filhos irritam os fãs que os querem ver ao vivo) e de líder de um dos poucos grupos atuais que ainda cria algo relevante mesmo com 17 anos nas costas (embora a formação recente esteja junta apenas desde 2004).
Lá se vão dois meses desde que “The Whole Love” foi apresentado pela primeira vez ao público via internet e, desde então, Tweedy e compania tem usado a rede mundial de computadores com certa freqüência para divulgar o álbum através de transmissões de shows na integra além de aparições em programas de TV (transmitidos para internet) e pequenas sessões especiais (como a delicada apresentação no Tiny Desk Concert, com áudio liberado para download).
A forma com que o Wilco lida com a web passa a ideia de que agora eles precisam investir na própria gravadora (“The Whole Love” é o primeiro lançamento do selo dBpm Records, da própria banda), afinal não são mais empregados, mas donos, assim como denota uma tentativa de se adaptar aos tempos modernos sem mudar a personalidade: eu sou assim, o mundo é assim, vamos juntos. “The Whole Love”, o álbum, de certa forma, estende essa premissa. Após dois discos que davam um abraço apertado no passado (com alguns momentos magníficos e outros nem tanto), o Wilco tenta se adaptar a ele mesmo num disco multifacetado.
Jeff Tweedy sabe das coisas: “As pessoas disseram que este é o melhor álbum do Wilco. Não sei se estão certas ou erradas, mas há uma certa facção de nossos fãs que, acho, sentiu-se traída pela retidão dos dois últimos discos”, comentou em entrevista à Rolling Stone quando questionado sobre a força de “Art of Almost”, a música que abre “The Whole Love” de forma épica. “Essa canção cuida da coceira destes fãs”.
Seis meses antes, em meio a pré-produção do álbum, Tweedy comentava sobre “Art of Almost” com um repórter da revista Spin: “Para ser honesto, não sei o que aconteceu com essa canção. Era algo que nós tínhamos, que mudou ao longo do tempo e que preferimos do jeito que está agora”, explicou antes de citar a principal influência da música: “Ela tem uma certa atmosfera que você também pode ouvir em “Tonight’s the Night” (álbum de 1975 de Neil Young)”.
“Art of Almost” é o lado experimental do Wilco que tanta falta vinha fazendo falta nos discos pós “A Ghost is Born” (2004), este, por sua vez, um álbum experimental em excesso. Eis uma faixa surpreendente de sete minutos em que o escudeiro Nels Cline se divide entre loops e riffs sujos na primeira parte e um solo nervoso de guitarra na coda após uma abertura grandiosa de sintetizadores. Tudo no lugar certo (e que deve crescer absurdos ao vivo).
Nenhuma das outras 15 faixas lançadas no pacote “The Whole Love” (11 na versão oficial, três na deluxe edition e uma, a tocante versão para “Sometimes It Happens”, do repertório de Linda, a senhora Richard Thompson, do Fairport Convention, apenas no vinil e no iTunes) alcança em dramaticidade, grandiosidade e brilho “Art of Almost”, o que de forma alguma diminui “The Whole Love”, mas sim, colocada ali, como primeira música, manda o recado: “Olha, a gente mudou um pouquinho. Não estranhe”.
Essa pequena mudança é fruto claro da boa fase que essa formação do Wilco vive. Tweedy precisou demitir (de forma traumática) algumas pessoas, contratar outras e largar os analgésicos (que ainda o assombra como algumas letras do álbum entregam) para ficar de bem com a vida – e com a música. Num primeiro momento, esse sentimento de felicidade resultou em canções que, como Tweedy mesmo definiu, eram retidas, contidas – preguiçosas, grifo do editor. De certa forma, um tributo do Wilco aos anos 70 (em especial a Neil Young, Paul McCartney e Fairport Convention).
O grande mérito de “The Whole Love” é mostrar que Jeff Tweedy, mesmo feliz, está um pouquinho a fim de sair da zona de conforto. E isso basta para transformar canções singelas como “Dawned On Me” em uma pérola pop de levar lágrimas aos olhos. Em tempos de relacionamentos em crise (mais do que nunca, todas as noites são um teste), Tweedy reafirma o amor por sua esposa em uma melodia de arranjo vibrante (mellotron, ukelele, sintetizador, guitarras de seis e doze cordas e até Jeff Tweedy tocando baixo) e encantador.
No mesmo clima pra cima de “Dawned On Me” está a sua quase irmã gêmea “Born Alone” (com Tweedy, Cline e Patrick Sansone encorpando o som das guitarras), o primeiro single “I Might” (uma “Can’t Stand It” sem a pressão da gravadora, afinal, agora eles mesmos são donos de sua própria gravadora), a roqueira “Standing O” (de abertura retumbante) e a comovente faixa título (como não se impressionar com um “rockstar” casado há 20 anos que escreve para sua esposa: “Eu ainda te amo até a morte”?).
Baladas climáticas dão o tom do outro lado do álbum multifacetado: “Sunloathe”, a melhor (e que traz ecos de George Harrison), começa com tecladinhos gélidos e segue num crescendo comportado enquanto Tweedy diz que detesta o sol, que mata sua memória e que não quer perder sua luta (mais: “Não quero terminar essa luta!”). “Em boa parte dela estou tirando sarro do abismo do vicio fabricado internamente”, contou à Rolling Stone sobre “Sunloathe”. “É uma corrente comum em muitas das minhas músicas: ficar puto com minha pena de mim mesmo diante do sofrimento real do mundo”, avisa.
“Rising Red Lung”, por sua vez, começa acústica com base no ukelele e, assim como “Sunloathe”, ganha um crescendo comportado enquanto a balada lenta (e meio chatinha) “Black Moon” aparece em duas versões (a segunda, presente no disco bônus, mais crua sem o arranjo de violino e violoncelo da versão oficial – o que valoriza o steel de Nels Cline). Em “Open Mind” (com teclados e lap steel disputando a atenção), Tweedy canta que está muito velho para clichês enquanto “Capitol City”, uma valsinha tola e divertida, deseja: “Eu queria que você estivesse aqui”.
“The Whole Love” abre com uma canção de 7 minutos e fecha com uma de 12 (sendo que a primeira versão se aproximava dos 15 minutos): “One Sunday Morning (Song for Jane Smiley’s Boyfriend)” é calma, reflexiva e dylanesca (e com acordes que lembram “Anunciação”, de Alceu Valença). Tweedy canta sobre religião, depressão e brigas familiares inspirado numa conversa que teve com o namorado de Jane Smiley, escritora vencedora do Pultizer.
Há ainda “I Love My Label”, b-side do single “I Might”, uma bela versão para o original de Nick Lowe, inclusa na versão deluxe do CD (e no iTunes) junto a outras duas canções inéditas: a extremamente surreal “Message From Mid-Bar” – que enfileira versos como: “O ódio irá nos manter juntos / O amor irá nos separar / O ódio irá salvar os golfinhos” ou “Alguns dias eu desprezo / Todo mundo que eu vejo / Somos todos desprezíveis / Mas você é toda minha” – e “Speak Into The Rose”, rockão instrumental que recupera a raiva de “A Ghost Is Born”.
Inteiramente gravado no sótão que a banda mantém em Chicago e produzido por Tweedy, Pat Sansone e Tom Schick (que tem trabalhos com Rufus Wainwrigh, Paul McCartney, Ryan Adams e Sonic Youth no currículo), “The Whole Love” parece o primeiro trabalho em que o Wilco soa como uma banda coesa em pé de igualdade nos arranjos. Nels Cline, solista por natureza, aparece mais, mas o baixo de John Stirrat soa mais presente assim como as pontuações da bateria de Glenn Kotche e as intervenções de teclas de Mikael Jorgensen.
Seria fácil para Tweedy, na esteira da opinião de alguns fãs, tomar “The Whole Love” como o melhor álbum do Wilco, mas ele foge da questão. A impressão que fica é que a forma multifacetada do álbum compila alguns dos melhores momentos da carreira da banda, mas o conjunto não soa tão completo e homogêneo quanto “Summerteeth” (1999), “Yankee Hotel Foxtrot” (2002) ou mesmo “Sky Blue Sky” (2007). É um grande disco, mas não é “o” disco.
Talvez falte tristeza, algo que Tweedy rejeita categoricamente. “Não compartilho a idéia de que a criatividade nasce do tormento”, disse em entrevista ao jornal espanhol El Pais. “Um monte de grande arte foi criada apesar da miséria e não por causa dela. Não sou feliz o tempo todo, mas não passo o tempo todo sofrendo”, explicou. Ainda assim, abriu uma brecha: “Há um traço de tristeza em tudo que o Wilco faz. Uma melancolia subjacente. Não é pessimismo. É a desconfiança simples da condição humana. A certeza de que, cedo ou tarde, vai dar merda”.
Essa melancolia subjacente a qual Tweedy se refere bate ponto em algumas canções de “The Whole Love”, mas falta raiva, desconforto, inadequação, sentimentos que transformem a tristeza e/ou mesmo a alegria em algo… maior. Ainda assim, “The Whole Love” tira o sexteto da monotonia dos discos anteriores (principalmente “The Álbum”, de 2009) e tem a seu favor o fato de levar um bom leque de novas canções para o palco, local em que o Wilco se torna imbatível. Não é correto desejar a tristeza para alguém, então que a felicidade perdure, mas que ela não enferruje uma das bandas mais interessantes da atualidade.
Leia também:
– Wilco ao vivo no Parco Della Musica, 2010 em Roma, por Marcelo Costa (aqui)
– “Wilco (the album)”, Wilco: Jeff Tweedy conquista e ao mesmo tempo desaponta (aqui)
– “Sky Blue Sky”, Wilco, um disco setentão para 2007, por Marcelo Costa (aqui)
– “Sky Blue Sky Tour Edition”, Wilco, por Marcelo Costa (aqui)
– “Kicking Television”, do Wilco, uma poderosa banda de rock, por Marcelo Costa (aqui)
– “A Ghost Is Born”, Wilco, um disco chato, chato, chato, por Marcelo Costa (aqui)
– Faixa a Faixa: “Yankee Hotel Foxtrot”, do Wilco, por Marcelo Costa (aqui)
– Faixa a Faixa: “SummerTeeth”, do Wilco, por Marcelo Costa (aqui)
– Dez vídeos: Wilco ao vivo no Primavera Sound em Barcelona, 2010 (aqui)
– “Once Around”, Autumn Defense, projeto de John Stirratt e Pat Sansone (aqui)
– Melhores da Década 00: “Yankee Hotel Foxtrot”, Wilco, no segundo lugar (aqui)
– “The Autumn Defense”, The Autumn Defense: música calma para corações roqueiros (aqui)
– La música de nuestro tiempo: entrevista de Jeff Tweedy ao El País (aqui)
– Entrevista: Jeff Tweedy responde perguntas da Rolling Stone EUA (aqui)
– Entrevista: Jeff Tweedy Talks Wilco’s “Irreverent” Fall Album, Spin Magazine (aqui)
Poxa, eu já nem leio mais ‘resenhas de discos’ porque simplesmente não tenho mais paciência (mal tenho saco para ouvir discos novos, que dirá sobre ler alguém discorrendo sobre eles, rs). Mas para o Wilco eu sempre abro exceção. Textão para desafogar esse feriado chuvoso.
Me identifiquei muito com a abertura do texto.
Parabéns.
PS: Achei que era só eu que achava ‘One Sunday Morning’ parecida com ‘Anunciação’, rs.
fala, mac…
não posso comentar sobre o disco, pois não consigo ir além de “dawned on me”… tá no repeat há um mês!
quando conseguir ir além, eu volto!!
parabéns pela resenha e abraço.
Mac, em todos esses anos em que acompanho o ScreamYell (e por tabela o Calmantes…), esse foi o texto que eu mais aguardei, ou melhor, o primeiro disco do qual realmente eu ansiei por uma resenha, nesse caso, a tua resenha. Fui apresentado ao Wilco por tuas linhas em 2005, e de lá pra cá a caminhada diária colocaram Tweedy e comparsas num pódio pessoal ao lado do Pink Floyd (nada ver um com o outro haha). A terceira vaga do pódio é itinerante, muita gente se reveza.
Indo ao que realmente interessa, The Whole Love pra mim é da turma dos melhores discos (Summerteeth, YHF, Being There (é, ué), uma renovação das expectativas que eu tinha por um novo grande disco deles. Não digo que seja o disco do ano pq ouvi o novo do Decemberists, mas é uma bolacha que vai me acompanhar por muito tempo.
duas palavras sobre esse disco: todo amor.