por Tiago Faria
O disco anterior de St. Vincent, “Actor” (2009), soava como uma versão às vezes sinistra (imagens descoloridas, trilha sonora em slo-mo, final infeliz, heroína dilacerada) para um desenho animado da Disney. Branca de Neve, no caso, preferiria não ter despertado do sono.
Em “Strange Mercy”, Annie Clark não abandona os limites do conto de fadas. No entanto, ele se torna mais assombrado e neurótico, como num mashup de “A Bela e a Fera” com “De Olhos Bem Fechados”. Tensão sexual (para toda a família).
Estamos no terceiro disco de Clark. E a impressão, agora muito clara, é de que ela decidiu demarcar uma trajetória, “assinar” a própria história. E, se essa trilha ainda não parece exatamente singular, já mostra coerência tanto na sonoridade quanto nos temas que a cantora vai acumulando, reiterando.
Juntos, a começar por “Marry Me” (2007), os discos vão narrando uma trama, que parece se tornar progressivamente mais pessoal (se bem que são sempre misteriosas as diferenças entre a personagem St. Vincent e a pessoa Annie Clark). É um disco, aparentemente, de “confissões”, de “descobertas íntimas”, sobre uma mulher em embate com o mundo, sobre histórias de amor que não se realizam, sobre culpa e frustração — a primeira faixa se chama “Chloe in the Afternoon”, que foi o título em inglês para o “Amor à Tarde”, conto moral de Eric Rohmer.
O script de “Strange Mercy”, portanto, vai provocar as comparações inevitáveis com os, digamos, “thrillers psicológicos” de outras cantoras agoniadíssimas, como Aimee Mann (à frente de todas elas), Fiona Apple, Emily Haines. Há canções do disco, como “Cheerleader” e a faixa-título, que poderiam ter sido gravadas por qualquer uma delas. Há clichês do rock de “mulheres livres em crise” que St. Vincent segue, mesmo que inconscientemente.
Há momentos em que esses lugares-comuns deixam a dúvida: este sofrimento é de Annie Clark ou de todas elas?
Os versos facilitam a vida de quem escreve resenhas de música. Porque, de certa forma, está tudo lá: uma personagem que se revela sem pudores, que vai tirando a roupa e se examinando faixa a faixa. “Tive bons momentos com caras ruins, contei mentiras inteiras com meios sorrisos”, ela conta, antes de resolver que “não quero ser sua cheerleader, não mais” (em “Cheerleader”). Lá perto do fim do disco, já começa a soar como uma teenager carente: “Você alguma vez se importou de verdade por mim?”, ela pergunta, em “Neutered Fruit”.
E ela canta, é claro, o desejo. Mais desejo (quase nunca correspondido) que sexo em si. “Você é uma festa que ouço quando colo o ouvido na parede”, ela admite, em “Dilettante”. “Mas ninguém está ganhando, e os tubarões estão nadando no vermelho”, conclui. A solução que encontra para não se decepcionar com tanta frequência é cínica. “Vou ganhar a vida dizendo às pessoas o que elas querem ouvir. Não é um plano perfeito, mas é o que temos”, afirma, em “Champagne Year”.
Então taí: não é uma narrativa muito diferente daquela que havia aparecido em “Actor” ou em “Marry Me”. A diferença é que, agora, Clark parece mais disposta a encontrar uma sonoridade também irritadiça, desgrenhada (e também uniforme, recorrente em toda a duração do disco). À voz delicada, sobrepõe camadas quase grotescas de teclados, interferências de guitarras, sintetizadores baratos que às vezes sugerem um filme de soft-porn para as madrugadas dos anos 80. E, como antes, arranjos de cordas roubados de peças de teatro infantil.
O efeito pode ser mesmo apaixonante (Annie é femme fatale em pele de gatinha manhosa), principalmente para quem conhece St. Vincent só agora. Para aqueles que dobram estas páginas há mais tempo, “Strange Mercy” pode bater como um capítulo com algo de perturbador (e de redundante), ainda longe do clímax.
– Tiago Faria (@superoito) é jornalista e assina o blog Meu Nome Não É Superoito
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fiquei curioso com o disco, vou atrás dele. gostei muito do “Actor”, fora que tem uma música do primeiro disco, “What me worry”, que é uma das minhas preferidas de todos os tempos.
Excelente texto, hein. Parabéns.
Sobre St Vincent, é como dito acima, ela sabe dosar, do doce ao amargo e se sai bem em tudo. É realmente um trabalho para os fãs de música com “M”, sem purismos.
Tem gente comparando com Bjork, mas pera lá, dá para perceber uma proposta totalmente diferente, só se assemelha com a cantora islandesa pela excentricidade.
Álbum do ano, sem dúvidas.
O pior, cara, é que fui dar uma de curioso e ver a foto da dona da voz maravilhosa. Para quê, fiquei hipnotizado!
Bacana o destaque para st. vincent. Uma puta artista, ainda pouco conhecida aqui no brasil. Mas comparações com Fiona Apple, Aimee Mann, se restrigem apenas aos versos, se muito. Musicalmente, estas são bem distintas. Os riffs e cortes raivosos nas músicas, estão presentes desde o primeiro disco, que acho até mais “raivoso” do que os dois ultimos, musicalmente falando (Vide Paris is Burning e Your lips are red, duas porradas mesmo nas partes lentas). Enfim, além das letras, o grande mérito, e relevancia musical da annie clark está em sua música, riffs de guitarra bem feitos, e originais, que revelam um ligeira influencia de zappa, por ter um leve experimentalismo, sem deixar de ser algo puramente pop. E nos dois ultimos cds, o uso de sintetizadores e teclados só veio a engrandecer. Embora sinta falta de alguns instrumentos mais peculiares, como o triângulo, no final da já citada pelo amigo acima, “What me Worry” do primeiro disco.
Só lembrando que, como referencia e boa instrumentista, ela tocou por algum tempo no Polyphonic Spree e na banda de Sufjan Stevens, onde, se nota, uma certa semelhançla no que tange a melodia das musicas de annie.