Julio Cortázar: “o conto deve vencer por nocaute; o romance, por pontos”. O livro “A Sordidez das Pequenas Coisas” (Não Editora, R$25,00) deixa a impressão de que o escritor Alessandro Garcia é um lutador que vence por pontos, e não por nocaute. Seria digno de palmas, se fosse um romance.
O problema de alguns contos do livro de estréia de Garcia é que ele parece insistir demais em criar uma atmosfera, um ambiente, em analisar em minúcia certos comportamentos – o que talvez seja uma indicação de que ele deve se sair melhor em narrativas longas. “Pelo alívio dos enfermos”, por exemplo, enfileira cerca de 20 personagens em meras 9 páginas. O leitor se pergunta: afinal, por que o narrador está me contando tudo isso?
“Vãos” é exemplar. Temos uma narrativa longa demais para um conto, e abreviada demais para um romance. O narrador explica muito, transmitindo informações em excesso. Garcia tenta encerrar em 15 páginas o que seria matéria para 150. As divagações dos personagens e certa imprecisão vocabular são as marcas não apenas de “Vãos”, mas de todo o livro.
Ao examinar detidamente seus personagens, Alessandro Garcia aposta na fricção entre o que eles desejam e o que acontece de fato. Para Cortázar, autor da predileção de Garcia, a eficácia de um conto depende “da sua intensidade como acontecimento puro”. Quando opta pela exploração da análise psicológica, Garcia, no entanto, está mais no terreno das hipóteses que no da ação. Terminada a leitura, não sobra muito além do choque – muito bem construído, como no conto “Verão em Porto Alegre”, que de resto independe da localização geográfica apontada no título. Some-se a isto a moralidade, questionável, do conto: o desejo como algo sórdido.
Em “Senhas” e “Procissão”, Garcia não consegue estabelecer um equilíbrio entre o que dizer e o omitir, resultando em fracassos. Este equilíbrio é alcançado em contos curtos como “Velhos”, “Epifania” e “As pernas flácidas de Dona Ataíde”.
O conto “Tio” é talvez o mais infeliz do volume. A sordidez soa tão mesquinha que seria mais bem etiquetada como indiferença. A história, assim, se torna desinteressante e nem a imitação – “emulação” é uma palavra pesada demais – das famosas notas-de-rodapé de David Foster Wallace consegue salvar o conto.
DFW tinha aquela intenção do escritor moral: isto é certo, aquilo é errado, veja a que ponto chegaram as coisas. Alessandro Garcia, por outro lado, não está interessando em escrever com o dedo apontado, nem em oferecer atos puros de generosidade como contrapartida da baixeza humana, muito menos em fazer com que o leitor reflita sobre as conseqüências morais de suas escolhas. (Quando o faz, em “Pequena resolução de ano-novo”, não consegue atingir a voltagem e a tensão necessárias.)
Ele prefere as “pequenas coisas” em vez da perversidade ou sordidez puras, o que implicaria a ausência de um mal absoluto, o Mal em maiúscula. Aqui temos um conflito: qual o sentido de discutir a sordidez se parece haver um pudor em investigá-la a fundo?
Seu livro não remete ao desencanto nem à sordidez de um Bukowski, pois opta por uma abordagem sutil, preferindo enredar o leitor na situação para depois golpeá-lo. O tratamento delicado enfraquece o tema escolhido como central para o livro.
“As nuances mais opacas” trata da consciência da sordidez: homens que se sentem culpados por procurarem prostitutas. Contudo, a história não é forte o bastante para “reformar o íntimo de um homem”, como aponta Mariel Reis no posfácio. Esta intenção tornaria o livro místico, segundo Reis. Para ser verdade, seria preciso mais fervor, mais iluminação e mais técnica, para que as epifanias atingissem o coração do leitor.
Quando procura ousar na forma, como em “Submersão” e “Decágono”, Garcia não se sai bem. Não se sabe o motivo do personagem de “Submersão” ter dois amigos, quando um não tem função. O uso dos flashbacks não tem justificativa, exceto a de indicar que Garcia está mais próximo do romance do que do conto. “Decágono”, contudo, tem boas partes, como a 8 e a 10. Muito pouco, no entanto, para justificar a construção inusitada.
São nos contos em que a oposição entre sordidez e pureza se manifesta escancaradamente, embora não em sua máxima potência, que Alessandro Garcia se sai melhor. O primeiro conto, do pai discursando para as filhas; aquele da família cuja mãe tem um amante para substituir o pai que supostamente morreu.
Como apontado, não são ainda contos perfeitos. “Veja bem, não vamos perder a oportunidade” também remete às preocupações de DFW, mas desta vez mais bem filtradas por Garcia – e seria um conto melhor se começasse pelo último parágrafo. “Finados” evidencia um fracasso em tentar equilibrar o registro coloquial com a colocação perfeita de todos os pronomes, algo que soa desarmônico também em outros contos. Em “Finados, escapou um “é verdade”, entre vírgulas, que está em outro conto, com um narrador completamente diverso deste menino sem pai. Este “é verdade” ainda é resquício da mão do autor, não do narrador.
“Antes da noite chegar” é um conto sobre um escritor tentando escrever. Hmmm…não parece nada atraente, não é? Garcia tenta mostrar como é o júbilo do criador, porém a narração distanciada em terceira pessoa torna frio o relato. Um depoimento do próprio Garcia teria mais efeito. Como o de Caio Fernando Abreu, que dizia ter um sentimento de “glória interior” quando escrevia. Ou o do poeta norte-americano Theodore Roethke, que se ajoelhava quando acreditava ter escrito algo bom. Não seria mais divertido se um conto sobre o tema mostrasse Eça de Queirós tropeçando no bigode ao dar um duplo twist carpado depois de escrever uma frase perfeita?
“Senhas” é uma crônica; como conto, é dispensável (basta pensar em “Senhora”, de Dalton Trevisan, que trata do mesmo tema). “Florêncio” levanta uma questão grande demais para se limitar a um conto: “Como definir um verdadeiro gênio?” – além de ser um personagem à procura de uma narrativa que dê conta de suas possibilidades picarescas.
Chama atenção a quantidade assustadora de epígrafes. Todo conto tem uma. Estamos falando de 20 contos com epígrafes. Na maioria das vezes, elas mostram o ponto de partida da história. Entende-se o valor afetivo que possam ter para o autor, mas em sua maioria são desnecessárias para o leitor.
Quem sabe Alessandro Garcia consiga encontrar no romance seu veículo mais adequado, de forma a combinar o impulso para o lirismo e a análise psicológica com a capacidade de criação de enredos. Talvez neste gênero de mais fôlego, o escritor gaúcho possa manifestar, de forma mais bem realizada, suas preocupações com as pequenas coisas, a vida dos personagens que não aparecem no jornal, as mesquinharias e epifanias cotidianas. Neste sentido, um possível caminho a ser trilhado é o da questão racial, presente em dois contos, em especial, “Subúrbios”, cujos três parágrafos iniciais poderiam muito bem ser o começo de um romance.
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– Gabriel Innocentini (@eduardomarciano) é jornalista e assina o blog Eurogol