por Marcelo Costa
“A próxima música que nós vamos tocar fala sobre impermanência. Muita gente aqui carrega mortos nas costas. Essa música fala sobre isso e se chama ‘Mesmo Que Mude’”. Ao anunciar aquela que seria a última canção do show que a Bidê ou Balde fez no fim da madrugada de sábado, no Jukebox Festival, em São Paulo, o vocalista Carlinhos Carneiro estava explicando o conceito dos relacionamentos através de uma canção quase doce que diz que é sempre amor… mesmo que acabe, mesmo que mude.
“Trilhas Sonoras de Amor Perdidas” aprofunda a temática da impermanência focando nas fitas cassetes que um rapaz gravava para uma menina. Você, caro leitor, talvez nunca tenha gravado ou ganhado uma fita cassete, mas já deve ter gravado (ou ganhado) um CDR ou uma mixtape. “A maioria das fitas gravadas se transformaram em CDs, que se transformaram em Playlists. A tecnologia muda, mas o espírito é o mesmo”, explica o personagem principal (interpretado por Guilherme Weber) em certo momento da peça.
A nova produção da Sutil Companhia de Teatro, de Curitiba, é a segunda parte de uma trilogia iniciada com a sensacional “A Vida é Cheia de Som e Fúria“, em 2000 (eleita uma das 10 peças mais importantes da década pela revista Bravo), e que tem por gancho a música pop. Não à toa, o cenário de “Trilhas Sonoras de Amor Perdidas” é tomado por vinis (“Screamadelica”, “Bringing It All Back Home”, “Automatic”, “Southpaw Grammar”, “MTV Unplugged in New York”, “Chelsea Girl” e muitos outros) e caixas de som.
Porém, por mais que a música seja uma das estrelas da peça, “Trilhas Sonoras de Amor Perdidas” apenas usa as canções como ferramenta para aprofundar a temática da memória tão cara à companhia curitibana. As músicas estão ali ligando os personagens (como tantas vezes conectaram e continuam conectando pessoas), fazendo com que eles viajem no tempo (aqui mais precisamente para o começo dos anos 90) através de uma seleção de músicas gravada de forma especial para… dormir, dirigir, transar ou dizer, de forma cifrada, eu te amo.
Ele é jornalista (e assina uma coluna em um jornal em que recupera trilhas sonoras de amor perdidas) e tem um programa em uma rádio. A história começa em São Paulo em uma noite em que o rapaz está revirando suas fitas e lembrando de sua ex-mulher, Soninho (Natalia Lage). Eles se conheceram como muitos casais: ela estava em uma balada e ele a percebeu cantando uma música -“Thirteen”, do primeiro disco do Big Star – e prometeu gravar uma fita especial para ela (e gravou abrindo com “Femme Fatale” na versão do Big Star).
Eles estão se apaixonado e começam a gravar enlouquecidamente fitas cassetes um para o outro. Tudo para eles está ligado intrinsecamente à música. No dia do primeiro beijo, por exemplo, ela lamenta não ter encontrado a fita com o álbum “Moondance”, de Van Morrison: “Eu tinha planejado para mim mesma que isso iria acontecer ao som desse disco”. Mais pra frente os dois festejam a felicidade bebendo uísque e cantando uma música que diz que o mundo irá acabar em cinco anos (“Five Years”, David Bowie).
As músicas estão ali conduzindo o espetáculo, no entanto, “Trilhas Sonoras de Amor Perdidas” diverge bastante de “Som e Fúria”, uma peça mais adolescente (apesar de Rob Fleming ter 36 anos) e centrada no humor e na crise do amadurecimento (em tempos de adultescência). “Trilhas” têm lá seus ótimos momentos de comédia, mas é muito mais profunda, dolorida e dramática chegando a sufocar o espectador – principalmente na segunda parte, densa e por várias vezes tristonha.
O rapaz está ali cercado por fitas cassete que representam uma pessoa que não existe mais, muito embora ele quisesse que ela ainda existisse, e ele a mantém viva naquelas fitas embora já não lembre mais da cor dos olhos dela. O tempo passa… e é preciso seguir em frente (seja com as canções ou sem elas). Impossível não ouvir Carlinhos Carneiro cantando: “Ela vai mudar. Vai gostar de coisas que ele nunca imaginou. Vai ficar feliz de ver que ele também mudou. Pelo jeito não descarta uma nova paixão”. Mesmo agarrado por milhares de corações partidos, o tempo não para.
“Trilhas Sonoras de Amor Perdidas” analisa de forma arrebatadora as coisas que ficam impregnadas em nossa pele e que não conseguimos deixar para trás nem explicar direito o motivo pelos quais elas ainda nos acompanham após o fim. Talvez seja amor (mesmo que mude). Uma ouvinte do programa de rádio lhe envia uma trilha sonora de amor perdida (uma fita que seu ex gravou para ela) contando a sua história: “Nós terminávamos toda semana, e sempre voltávamos. Ele tinha um gênio forte que queria me manter longe dele, mas ainda assim eu o amava”.
Esta talvez seja a melhor peça que a Sutil Companhia de Teatro já fez por seu conjunto de acertos em sua inspirada montagem. O roteiro, exemplar, vai e volta e se repete na ânsia de reforçar a idéia da memória que começa a se perder, do amor que começa a escorrer como água entre os vãos dos dedos. Os atores brilham em cena e a história é forte o bastante para dar nó na garganta, apertar o peito e garantir pequenas pontadas no estômago, dores que quem viveu (o fim de) uma verdadeira história de amor já sentiu.
As músicas estão ali como um objeto de familiaridade e fetiche para o público (que irá gravar mixtapes com as canções da peça), mas a função delas é ainda mais nobre: a de funcionar como trilha sonora de várias histórias de amor (quem sabe, a sua). De “Don’t Get Me Wrong” a “Heart Shaped Box”. De “Sadly Beautiful” a “Just Like Heaven”. De “Beast of Burden” a “So Real”. De “Midnight Train to Georgia” a “Ladies and Gentleman, We’re Floating in Space” e “Soul on Fire”, a música, como escreveu Salman Rushdie certa vez, “mostra como deveriam ser os nossos eus, se fôssemos dignos do mundo”. E dignos do amor.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
Leia também:
– “Não Sobre Amor”, uma bela peça cruel e lírica, por Marcelo Costa (aqui)
– Guilherme Weber fala ao Scream & Yell sobre “Avenida Dropsie” (aqui)
– Guilherme Weber fala sobre A Vida é Cheia de Som e Fúria, por Marcelo Costa (aqui)
– “Nostalgia”, uma encantadora peça de teatro pop, por Marcelo Costa (aqui)
-“O Chão Que Ela Pisa”, de Salman Rushdie, por Marcelo Costa (aqui)
A exibição de “Trilhas Sonoras de Amor Perdidas” integra uma mini-mostra da Sutil no Sesc Belenzinho, em São Paulo, que inclui ainda “Thom Pain / Lady Gray” e “Não Sobre Amor”.
“Trilhas Sonoras de Amor Perdidas”
De 18/06 a 31/07
Sábados, às 20h; domingos, às 18h
Duração: 3h, com intervalo de 15 minutos
“Thom Pain / Lady Gray”
De 23/06 a 07/07
Quintas, às 21h (no feriado do dia 23, a sessão será às 18h)
Duração: 2h com intervalo de 15 minutos
“Não Sobre o Amor”
De 15/07 a 31/07
Sextas e sábados, às 21h30; domingos, às 18h30
Fala Mac, cara o que eu vou comentar não tem nada haver com o esse texto, na verdade estou impressionado como não rolou nenhum texto, por menor que fosse, a respeito do disco novo do Twilight Singers, o Dynamite Steps, que eu achei fodão, mas principalmente sobre não ter rolado na do Collapse Into Now do R.E.M., que eu estou ouvindo agora e simplesmente achei maravilhoso, um disco que é difícil parar de ouvir. Você não gostou dos discos??? Rss Apenas curiosidade… Abraço.
Uma hora dessas pinta algum texto sobre eles 🙂
Só consigo pensar que preciso ir correndo para São Paulo assistir “Trilhas Sonoras de Amor Perdidas”…
uma cena: 2008, eu e minha mulher no rio, vendo o show do rem. Olhamos para o lado e o guilherme weber chorando intensamente ao ouvir everybody hurts. adotamos de cara uma simpatia extrema por ele naquele momento. ele pulava, cantava, sorria e chorava. Diferente do que se costuma ver em globais que querem mais ser vistos do que ver algo. Ai vem essa peça. remonto os pedaços daquela cena no show…deu uma vontade doida de sair de belém pra ir assistir.
Só uma correção, o personagem de Nick Hornby que inspirou A Vida É Cheia de Som e Furia chama-se Rob Fleming, Rob Gordon é o nome dado na adaptação pro cinema, bem ruim por sinal, feita pelo Jon Cusak.
Boa, Laercio. Mas sabe que eu gosto do filme?
fala aí mac. panço por aqui, preciso falar contigo. me manda um e-mail? leonardoster@gmail.com
E aí Marcelo, tranquilo?
Recentemente comecei a ler o “Love is a mixtape: life and loss, one song at a time”, do Rob Sheffield. Depois de assistir a peça fiquei me perguntando se ela é baseada nesse livro, porque as histórias são praticamente idênticas.
Li algumas entrevistas do Felipe e ele só cita um livro do Thurston Moore como referência.
Conhece o livro do Rob?
Lindo texto. Lembrei de todas as fitas que gravei e levava para viajar comigo nas férias ou presentear amores não correspondidos. Vi “Avenida Dropsie” em 2009 e gostei muito. Quando estiver em São Paulo e essa peça estiver em cartaz, se torna desde já um programa obrigatório.
Bruno, não li o livro ainda, mas o Rob Sheffield é citado pela Sutil como fonte de inspiração sim.
Criação: Sutil Companhia sobre as histórias de Thurston Moore, Kim Gordon, Lee Ranaldo, Steve Shelley, Dean Wareham, Dan Graham, John Zorn, Jim O` Rourke, Elizabeth Peyton, Arthur Jones, Jason Bitner, Rob Sheffield, Raymond Pettitbon, Greil Marcus, David Shields, Lou Reed, Giles Smith, amigos próximos e outros diversos relatos.
Vou atrás!
Fui ver hoje, e realmente muito boa! Isso q nao sou de ir ao teatro, nos ultimos dez anos acho q tinha ido 3 vezes, sendo duas pra ver A Vida é Cheia de Som e Furia, hehe.
E porra, tudo a ver muito forte, mais de uma vez ao longo da peça pensei comigo “agora podia entrar ‘Mesmo que Mude’…ou no final, como a derradeira”, casava tri bem.
Assisti hoje à “Trilhas”, e vi também “Não Sobre Amor” há uns dois anos e pouco e não acho que esta foi superada. “Trilhas…” tem ótimos momentos, sim, mas me parece que sobra alguma coisa, não está tão equilibrada: por vezes soa repetitiva e enfadonha.
Os melhores momentos para mim são dois, lá no fim, quando tudo que aconteceu antes na peça volta com força total para o climax: “Don’t Get Me Wrong” na festa e “Beetlebum”. Neste último lágrimas ameaçaram rolar pelo meu rosto.
E uma frase bem engraçada que nunca vou esquecer, não sei se é exatamente assim: “o Réveillon é o “Hey Jude” dos feriados: se durasse um terço do que dura e fosse a cada 5 anos seria ótimo!”
Fala Marcelo,
Li essa sua resenha logo que você a publicou, sem ainda ter visto a peça, e logo nos primeiros parágrafos, tive impressão semelhante à do Bruno Lee, que comentou aí acima: seria uma adaptação do “Love is a Mixtape”, do Rob Sheffield? Daí, fui procurar outras resenhas e sinopses da peça e, então, vi que era mesmo a história autobiográfica do Sheffield que estava sendo encenada. Bacana.
Mas só tinha um problema: e as citações ao livro? Revirei a internet atrás delas, li entrevistas com o Felipe Hirsch, e nada. Só uma citação a um livro do Thurston Moore e uma ficha técnica da peça com o nome do Sheffield perdido em meio a outros 16 nomes de músicos e artistas.
Então, fui assistir a peça para ver o que estava rolando. Talvez, não fosse o que eu estava pensando, talvez Hirsch apenas tivesse se inspirado na história de Sheffield para criar algo novo e original.
Fiquei impressionado. Frases exatas, diálogos, músicas, situações, sequência de acontecimentos, muito além do que eu esperava. A esmagadora maioria dos principais momentos da peça são simplesmente traduções de trechos do “Love is a Mixtape”. No livro, Sheffield relembra, por meio de mixtapes antigas, seu relacionamento com Renée Crist, garota que conheceu em um bar, ao som de Big Star. Eles ficaram juntos por cinco anos, até a morte de Renée, vítima de uma embolia pulmonar. Até as piadinhas são as mesmas (a do Hey Jude, a da inscrição na cruz de Cristo, a citação do diálogo de Steve McQueen e William Holden).
Mas para não dizer que o trabalho de Hirsch é apenas uma cópia do Sheffield, aquelas cartas lidas na peça de outras pessoas contando histórias de mixtapes não vêm do “Love is a Mixtape”. Descobri que o Jason Bitner, também citado na ficha técnica do espetáculo, possui um livro chamado “Cassette from My Ex: Stories and Soundtracks of Lost Loves”. Sim, histórias e trilhas sonoras de amores perdidos. Neste livro, Bitner reúne diversos textos que pessoas enviaram para ele contando casos pessoais de relacionamentos que envolvem mixtapes. Não li o livro, mas pelas resenhas que vi, as cartas da peça parecem vir daqui, possivelmente das histórias de Anne Jensen e Starlee Kine (estas, não citadas na ficha técnica).
Parte das música também foram alteradas em relação ao “Love is a Mixtape” e talvez existam outros detalhes mínimos que não venham do livro, mas, para mim, isso não diminui o fato de que Hirsch omite o fato de que sua peça é uma adaptação, e não uma colagem complexa, como tenta fazer parecer. E o pior, é a adaptação da vida de uma pessoa, de um episódio extremamente trágico, que Sheffield teve coragem de expor e que Hirsch não teve a menor vergonha de se apropriar.
O mais engraçado foi ler as resenhas dos jornais após ver a peça. A Folha diz, “A obra [“Mix Tape: The Art of Cassette Culture”, de Thurston Moore] inspirou Hirsch na nova montagem, com alguns poucos trechos reproduzidos. As cartas que ele próprio guardou, ou as de amigos, fazem mais volume dentro do texto, assinado pela companhia, mas que tem Hirsch como autor principal”. Será que Hirsch teve mesmo a cara de pau de dizer isso para a repórter?
Para mim, o nome de Sheffield escondido no meio da ficha técnica não valida nada. Hirsch já se baseou na obra de Victor Shklovsky, Will Eisner e Nick Norby, sempre deixando claro suas inspirações – e, quero acreditar, pagando direitos autorais. Não sei porque dessa vez ele resolveu fazer as coisas desse jeito.
Uns anos atrás, Gerald Thomas acusou Hirsch de ser um imitador, um ladrão, um con-artist. Hirsch se defendeu. Pensei que fosse apenas uma briga de egos. Agora estou em dúvida. Queria muito ouvir Hirsch falar algo a respeito, até para que possa provar o contrário. Espero que isso se amplifique de alguma forma. A peça ainda terá mais dois fins de semana de exibição aqui em SP.
E a quem viu ou vai ver a peça, digo que vá também atrás do livro, que lá encontrará a história completa e genuína. Vale muito a pena.
A Folha publicou hoje uma matéria comparando o livro de Sheffield e a peça do Hirsch. “Embora Sheffield seja citado numa lista de 17 nomes cujas histórias foram usadas pela companhia para compor o espetáculo, a proximidade coloca em xeque a ideia de autoria ao dar um passo além da inspiração. O enredo encenado é idêntico ao do livro.”
Quem quiser ler e tirar suas conclusões: http://goo.gl/GLBqF
Abs!
Ontem foi a última apresentação da temporada de “Trilhas Sonoras de Amor Perdidas” e o Felipe Hirsch falou com o público antes do início. Agradeceu imensamente o SESC por apostar na montagem, agradeceu pelo público lotar todos os espetáculos e no final pediu para as pessoas usarem a internet para o bem, para postarem coisas boas e não para perderem tempo com o que não vale a pena.
Não sei se isso serviu de desabafo diante da “polêmica” levantada sobre o livro do Sheffield ou se foram só palavras.
Abs!
Gente, alguém sabe se há previsão de uma outra temporada em sp? Caramba, essa acabou tão rápido…