por Jorge Wagner
Em 1993, Milton Nascimento já não precisaria provar mais nada a ninguém. “Clube da Esquina”, “Milagre Dos Peixes”, “Milton”, “Travessia”, e tantos outros (bons) discos, já estavam prontos, e já o haviam rendido reconhecimento, dentro e fora do país. Mas Milton não estava satisfeito.
Nessa época, o cantor, que estava muito ligado à atividades em prol da ecologia (não apenas ele, se considerarmos, um ano antes, a realização da Eco 92) juntou uma turma de amigos, brasileiros ou não (entre os gringos, gente da estirpe do não menos engajado Peter Gabriel, James Taylor, o guitarrista Pat Metheny e o fanhoso Jon Anderson – de você-sabe-que-banda), conquistados aqui e ali, ao longo de seus quase trinta anos de carreira, e os convidou para participar de um disco no qual, a primeira coisa que podemos ver ao abrirmos o encarte é o símbolo da Anistia Internacional.
Lançado pela Warner e gravado no exterior, a qualidade sonora do disco é muito superior à maioria dos lançamentos nacionais da mesma época. “Seis Horas Da Tarde”, faixa de abertura, têm violões, orquestrações e, apesar de ter vozes, não tem letra (guardada as proporções, é algo que pode ser recomendado aos fãs de Sigur Rós, sem exagero algum). Serve como prólogo para “Estrelada”, que traz na seqüência um dueto de Milton Nascimento e Jon Anderson, em… português! Uma grande música com uma boa letra (fruto da parceria entre Milton e Márcio Borges). Não há como não ver certa graça no sotaque do eterno frontman do Yes.
“De Um Modo Geral”, a terceira faixa do disco, não é uma grande música, mas não abala a qualidade do álbum. O destaque fica por conta dos solos nervosos de Wayne Shorter no sax, e a cama de Túlio Mourão (ex-Veludo Elétrico, Mutantes e outros). A faixa seguinte, “Angelus”, instrumental, é a típica trilha para campanhas de ONGs. Traz na cola “Coisas de Minas”, mais um dos muitos tributos prestados por Milton à sua querida Minas Gerais. Começa animada, com gritos de “Ê, ê boi…”, mas é só após a última estrofe (“O Sol tá nascendo agora / O silêncio deixa ouvir / Será o sinal de um anjo / Essa brisa a traduzir / Meus nomes?”) que Milton, inspirado, faz suavemente, com o som de sua voz, menções à Ave Maria.
No ponto alto do disco, Milton vai até “The Magical Mistery Tour”, pinça “Hello Goodbye”, tira toda a aparente ‘felicidade’ da música, e a apresenta numa versão repleta de cordas e metais – fruto da orquestração de Gil Goldstein, deixando-a tão emocionante que ser capaz de fazer Paul McCartney chorar (se já não o fez). Em termos de cover, o paralelo possível é “Hurt”, do NIN, na voz de Johnny Cash. Boa o suficiente para fazer Trent Reznor, o compositor, dizer que era assim que gostaria de ter composto a música.
“Sofro Calado” é um tema rápido, de pouco mais de um minuto. Robertinho Silva fica encarregado da concepção rítmica, enquanto Milton declara: “Sofro calado / Pra não lhe dizer / A cada segundo / o que é um segundo / Sem você”, e é só. Então vem mais uma entre as milhares de versões possíveis e imagináveis para “Clube da Esquina #2”, em que o cantor parece querer mostrar a todos que já gravaram essa música algo como “É assim! Você precisa se emocionar em cada sílaba, e deixar com que todos percebam essa emoção!”. Hugo Fatturoso, Túlio Mourão, João Baptista e Robertinho Silva (piano, teclado, baixo e bateria, respectivamente) são, ao lado de Milton Nascimento, os heróis dessa que é, sem dúvida, a melhor versão já feita para a música, que nasceu sem letra, em 1972, para o disco “Clube da Esquina”, parceria de Milton e Lô Borges.
“Meu Veneno” é uma boa poesia, escrita em parceria com Ferreira Gullar, mas que serve mesmo como plataforma para o brilho de Naná Vasconcelos. Traz na cola “Only A Dream In Rio”, mezzo português, mezzo inglês (versão creditada à Fernando Brant). Milton Nascimento canta a primeira estrofe na língua pátria, e é seguido por James Taylor, numa bela homenagem ao Rio de Janeiro. “Qualquer Coisa a Haver Com o Paraíso”, parceria com Flávio Venturini (e gravada originalmente em “Nascente”, disco de estréia de Flávio), traz mais um dueto de Milton, dessa vez com Peter Gabriel, ex-vocalista do Genesis em tempos remotos. E os falsetes do mineiro combinam perfeitamente com os graves do inglês.
Já nas faixas “Vera Cruz”, “Novena” e “Amor Amigo”, a responsabilidade parece cair toda sobre o guitarrista Pat Metheny e o pianista Herbie Hancock, além de Ron Carter, Robertinho Silva e Jack Dejohnette (baixo, percussão e bateria, nesta ordem), nas duas primeiras. Apesar de todas serem assinadas por Milton (com Márcio Borges em “Vera Cruz” e “Novena”, e com Fernando Brant em “Amor Amigo”), a impressão é de que ele não passa de um mero convidado na brincadeira entre Herbie e Pat, os “donos da bola”. Com o dobro de duração de sua primeira aparição, “Sofro Calado” retorna para fechar o disco, numa versão com apenas piano e voz, em que Milton também cuida das teclas. Simples e emocionante, como tudo deveria ser.
E lá se foram quase 20 anos desde o lançamento de “Ângelus”. Rios de asfalto e gente continuam descendo pelas ladeiras, entupindo os meio-fios. O mundo melhor que Milton idealizou com esse disco não chegou, e provavelmente não chegará. Ainda não pressionamos nossos líderes, não reciclamos como deveríamos, não economizamos energia, não amamos e respeitamos todas as formas de vida, conforme o artista sugeriu na contra-capa. Parece ter sido pura utopia, e talvez, hoje em dia, o próprio Milton Nascimento saiba disso também. Mas nem por isso “Ângelus” deixa de ser um grande disco, tido por muitos como o “Clube da Esquina #3”.
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Jorge Wagner (siga @jotablio) é jornalista e colabora com o Scream & Yell desde 2006
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