Texto e fotos por Marcelo Costa
Seis dias após uma apresentação consagradora no segundo dia do Festival Coachella 2011, o Arcade Fire desembarcava em Illinois para uma série de três shows sold out no pavilhão da Universidade de Chicago, que lembra mais uma quadra de basquete de colégio do que um local de shows (mas com estrutura para receber até 10 mil pessoas). Os ingressos evaporaram meses antes como água no deserto, mas ainda na porta, no dia do primeiro show, era possível comprar uma arquibancada por 51 dólares nas bilheterias.
Localizado numa esquina da rua Racine (se você assistiu ao filme “Os Intocáveis” irá se lembrar dela), a frente do UIC Pavilion não está tão movimentada perto das 19h30, horário em que o National está escalado para abrir os trabalhos (na saída será diferente, com uma fila enorme tomando o viaduto que leva até a estação de metrô). E o grupo de Matt Berninger tropeça nas baladas e faz muita gente sentir saudade dos shows absurdos de dois ou três anos atrás. Nem “Mr. November” consegue ajeitar as coisas. Pena.
Pouca gente arreda os pés da pista no intervalo para arrumação do palco e, alguns copos de cerveja depois, um filmezinho dark anuncia que o show do Arcade Fire irá começar. A banda entra no palco ao som de “The Lusty Month Of May”, em cena do filme “Camelot”, de 1967, e o barulho dos instrumentos causa uma desordem que encobre a voz suave da atriz Vanessa Redgrave no telão e transforma-se em “Month of May”, a canção mais barulhenta do despojado terceiro álbum do grupo, “The Suburbs”.
Abrir o show com a sua canção menos polida soa uma carta de intenções: “Se você acha que vamos mudar apenas porque ganhamos um Grammy, aqui está a prova de que somos os mesmos”. A guitarra de Win Butler apita loucamente, Régine castiga os pratos de uma bateria menor ao lado do set do baterista Jeremy Gara enquanto o multi instrumentista Richard Parry, de posse de um megafone e de outra guitarra, grita coisas desconexas. Ainda há teclado (tocado pelo irmão de Win, William) e violino no arranjo. O caos no palco é contagiante.
Sob o barulho de microfonia da canção anterior surge “Rebellion (Lies)”, o primeiro dos hinos do álbum “Funeral”, de 2004 (ao todo, seis canções do disco vão entrar no set list desta primeira noite), e uma rotina que se seguirá durante toda a noite é imposta: a mudança dos músicos nos instrumentos é constante e em nenhuma música o arranjo segue a ordem da canção anterior. William, ensandecido, toca um tambor. Régine vai para os teclados. A música surge forte e poderosa e todos no UIC a cantam.
O som que sai das caixas é claríssimo, cristalino como água de montanha. Tanto que, apesar do som sujo das guitarras e do impacto das porradas nas duas baterias, é possível ouvir perfeitamente o som delicado do xilofone que pontua o arranjo de “Neighborhood #2 (Laika)”, outra que faz o ginásio todo cantar. E os canadenses não diminuem o ritmo: “No Cars Go” (com todos no palco cantando, exceção de Jeremy, mas incluindo as duas violinistas) e “Haiti” mostram uma banda impecável sobre o palco.
Win assume o violão para entoar “Rococo”, que começa calminha (com o baixista Tim Kingsbury no chocalho e Règine, Richard e William nos teclados), mas cede ao caos na segunda parte. Uma nota repetida anuncia “We Use To Wait”, uma das canções do disco novo mais festejadas na noite, e então a banda decide presentear o público de Chicago tocando pela primeira vez ao vivo na turnê a pálida “Sprawl I (Flatland)” no lugar da excelente “City With no Children”. Conhece o ditado “presente de grego”?
Outra baixa no repertório do show: a balada dilacerante “Crown of Love” não aparece, o que serve para contrariar todos aqueles que achavam que o show da banda no Coachella fosse apenas um tira gosto de um show normal. Não foi. A banda tocou mais tempo no deserto do que na primeira noite sold out de Chicago (nos dois dias posteriores, além de “Sprawl I (Flatland)” não voltar ao set list – felizardos, a banda tocou o mesmo número de canções do festival, 18 contra 17 da primeira noite).
No telão, o videoclipe de “The Suburbs” antecipa a faixa título do premiado terceiro disco dos canadenses, que surge numa versão bonita seguida de uma coda encantadora. O público vai ao delírio, e parece pronto para o trecho final do show: “Intervention”, “Keep the Car Running” e “Neighborhood #1 (Tunnels)” (com Régine na bateria e o baterista Jeremy em uma das guitarras) soam eternas, perfeitas, definitivas, reflexo de uma banda inspirada que vive o melhor momento de sua carreira – e parece estar consciente disto.
Então Win, depois de contar que todas as camisetas vendidas (tanto do Arcade Fire quanto do The National) na banquinha de merchandising terão parte do valor revertido para o projeto do grupo no Haiti, anuncia a última música do show, e “Wake Up” soa o perfeito resumo da relação do público com o Arcade Fire: o coro é cantado com todos com as mãos estendidas, como se estivessem em uma missa. É o momento mais claro na noite de que o Arcade Fire está virando religião. Se isso é bom ou mal, só o futuro dirá, mas não tem como: o momento arrepia.
A banda faz uma apresentação irrepreensível (deslize de “Sprawl I (Flatland)” à parte) e deixa o palco ovacionada pela audiência – mesmo sem os balões coloridos que encantaram / impressionaram o Coachella seis dias antes. Alguns minutos depois, retornam para o bis com mais três números – “Ready to Start”, “Neighborhood #3 (Power Out)” e “Sprawl II (Mountains Beyond Mountains)” – encerrando em alto nível uma noite em que o caos e o melodia passearam de mãos dadas por cenários de subúrbio recheados de funerais e bíblias negras – uma paisagem suspeita que abriga um dos melhores shows de rock da atualidade.
Leia também:
– Diário Estados Unidos 2011: shows, cervejas, viagens por Marcelo Costa (aqui)
– Melhores de 2010 Scream & Yell: “The Suburbs”, Arcade Fire, Melhor Disco (aqui)
– “The Suburbs”, a guerra suburbona de Win Butler em Houston, por Marcelo Costa (aqui)
– “Neon Bible”, o fim do mundo como nós o conhecemos, por Marcelo Costa (aqui)
– “Funeral” fala sobre a vida de todos nós, todos nós, por Marcelo Costa (aqui)
preciso mt de uma camiseta dessa q vc citou no texto…
vende a sua? rs
pobres dos hippies que vão assistir aos allman brothers, hehehe…
Arrepiante.E olha,o que você disse eu realmente acredito que sempre foi uma verdade,o Arcade Fire é quase uma religião,com muitas músicas que parecem realmente ritos de igrejas em que se canta com a maior emoção e devoção,Rebellion,Wake Up e No Cars Go estão ai pra provar isso…
deve ter sido intenso