por Pedro Salgado, especial de Lisboa
Com os pés no hip-hop, paixão pela música negra e uma preocupação alternativa, formou-se um dos projetos mais originais da nova música portuguesa. A base instrumental e a preocupação em centrar as atenções na criação, levaram os membros do grupo a omitirem as suas caras na capa do disco homónimo, de 2010.
De “Orelha Negra”, recorda-se o labor de “Barrio Blue”, disseminando a soul music, com a preponderância do baixo e o teclado a marcar o ritmo ou, ainda, a percussiva “A Força da Razão” e a quase roqueira “A Cura”. De uma forma ou outra, estava encontrada a matriz que unia grandes talentos e que se expressava num coletivo unificado.
Na base desta revolução de sonoridade e conceito, encontravam-se o mais famoso rapper português: Sam The Kid (Mira Professional), o baterista Fred Ferreira (Ferrano), o baixista Francisco Rebelo (Rebelo Jazz Bass), o tecladista João Gomes (Gomes Prodigy) e o dj Cruzfader. E recorda-se a experiência de alguns dos seus membros em bandas como o Buraka Som Sistema e Cool Hipnoise.
Durante os shows do Orelha Negra é possível encontrar tribos que vão dos b-boys, ao jazz e à música indie. O caldeirão instrumental é beneficiado em larga medida dos samples portugueses e loops que o produtor Sam The Kid transportou para o coletivo. O som do conjunto representa a música e a cidade de Lisboa.
A mais recente aventura do grupo é “Mixtape”, trabalho que será editado em abril (2011), coincidindo com o primeiro aniversário do disco “Orelha Negra”. O trabalho resulta de uma iniciativa de releitura de temas anteriores, com remixes, e tem a participação do rapper Valete, Nerve, Tiago Bettencourt e Lúcia Moniz, entre outros.
O tema “Since You´ve Been Gone / A Memória”, com a participação vocal de Orlando Santos, está disponível para audição na página da banda do myspace: http://www.myspace.com/orelhanegra. De Lisboa para o Brasil, João Gomes, do Orelha Negra, conversou com o Scream & Yell. Confira:
Como vocês classificam o resultado de releitura dos temas antigos da “Mixtape” ?
Agrada-nos. Estivémos envolvidos na produção da maior parte das músicas. Foram vozes que nós convidámos ou que se tinham proposto a fazer as coisas e acabámos por fazer o trabalho no nosso estúdio, uma vez que tinhamos lá os instrumentais. Quando o resultado saiu não foi uma grande novidade para nós, porque já estávamos trabalhando neste projeto há mais de seis meses. A “Mixtape” tem algumas remixagens, de produtores que pegaram nos instrumentais e que recriaram o tema com as pistas que nós fornecemos, e manipularam e acrescentaram elementos ou vozes. Além desta ideia, de espírito normal da remixagem, tivemos alguns participantes que gravaram com os seus próprios meios, por cima dos nossos instrumentais, e músicos que se deslocaram ao nosso estúdio para gravar esses mesmos vocais. De um modo geral, são situações um pouco híbridas. Enviámos o disco a várias pessoas e elas foram escolhendo as músicas. No caso de Tiago Bettencourt, fizemos-lhe um convite para a faixa “Saudade”, que achamos que podia funcionar bem, e Lúcia Moniz mostrou-se interessada em fazer uma colaboração conosco em “Tripical”. Outros músicos nos disseram que, se fizessemos a “Mixtape”, estariam interessados em temas específicos, para além de voluntários que nos enviaram material e que em um ou dois casos conseguimos incluir.
Como foi a colaboração com Orlando Santos em “Since You´ve Been Gone / A Memória”?
Eu e o Francisco Rebelo conhecemos muito bem o Orlando. Durante alguns anos ele trabalhou com o Cool Hipnoise, por vezes toco no seu projeto, e sempre achei que o instrumental dessa música seria ótimo para a voz dele. Havia potencial para fazer uma canção. Então desafiei-o. Mandei-lhe a música e disse-lhe para ele fazer o seu vudu e a sua magia sobre ele, porque achei que o resultado pudesse ser bom. Passado uma semana ele mandou a sua versão e ficamos todos boquiabertos, principalmente o pessoal da banda que não o conhecia. Ficou perfeito.
Estão satisfeitos com a receptividade ao vosso primeiro trabalho?
Sim! De certa forma foi uma surpresa para nós. Tinhamos a consciência e o receio de que um projeto instrumental é sempre mais difícil de ser absorvido pelas pessoas do que um modelo que tenha base numa voz ou num discurso qualquer. Nesse sentido, tinhámos expectativas com a reação das pessoas. E correu tudo bem. Em parte, porque a estratégia que criamos em volta da capa do álbum, da sleeveface e do poster, conferiu um certo carinho pelo objeto. Um dos objetivos que tinhámos era que o público se relacionasse com a obra enquanto disco completo. Hoje em dia as coisas estão muito encaminhadas para o download, o MP3 e faixas avulsas. E as pessoas têm muito pouca disponibilidade e tempo para ouvir um trabalho inteiro. Nossa maior admiração foi o fato de ter existido uma aproximação ao álbum na sua integridade com fãs para todas as músicas. Se calhar, a nossa música ao ser ouvida, e não tendo o peso da letra, possibilita um certo espaço para fantasiar e sonhar. Tentamos fazer uma fusão de estilos e do hip-hop na sua forma genuína, com DJ e instrumentos reais. Trabalhámos muito para ter um som homogéneo, onde a mistura seja esteticamente funcional, e deixa as pessoas um pouco na dúvida sobre o que é real em termos de sampling e o que é exatamente tocado. Esse mistério agradou as pessoas e daí sua identificação com a sonoridade. Outra coisa que ajudou foi a união dos públicos que cada um de nós já tinha antes. Já eramos todos conhecidos e o Samuel (Sam The Kid) é o maior produtor de hip hop português. Ele é um grande talento e trouxe ideias muito criativas, loops principalmente. Eu e Francisco Rebelo tocamos juntos há 15 anos, fazendo grooves, trabalhando nesta linguagem de funk e soul. Já fizemos vários álbuns e trabalhámos com o Samuel como banda de apoio do projeto dele há quatro anos. O próprio Frederico já tem uma grande experiência e um público assegurado.
Vocês sentem que conseguiram transportar o melhor da música negra americana para esse álbum ?
Sentimos que conseguimos trazer uma grande parte dessa sonoridade, que nós gostamos e nos tem influenciado e motivado pela vida fora, enquanto músicos e artistas. Na realidade, achamos que é uma pequena parte, mas uma parcela tão importante como as outras (risos). Curtis Mayfield e Isaac Hayes são duas das maiores influências que nós temos e ainda consigo citar mais nomes: The Meters, James Brown, Bob Marley, J Dilla, Fela Kuti, etc, etc.
Tendo em conta que a música de vocês tem uma forte componente instrumental e dançante, será legitimo pensar que foi concebida para funcionar como uma música ambiente da vida noturna lisboeta?
Não foi concebida com esse conceito. Sempre dissémos que a forma como criamos este disco foi muito genuína e foi o resultado de muitas jam sessions. Ou seja, nunca dissemos: “Vamos fazer uma música para a noite ou para o dia!”. Fomos cozinhando as ideias numa base experimental e chegamos a um ponto em que fizemos o nosso primeiro show, e tivemos que fazer escolhas. A decisão não foi feita em termos de pista. O disco não é especialmente dançável, a não ser que vivessemos numa cidade cheia de b-boys, que adoram a nossa música para dançar. Não há muitos djs em Lisboa tocando o Orelha Negra. A não ser em pequenos bares, numa cena mais calma e muito Chillout. A nosso som funciona mais para tomar um copo, embora possa ser música dançável, mas em Lisboa há poucas noites de hip-hop. Agora existem as r&b sessions que são um sucesso, mas também não tocam tanto assim o Orelha Negra. De certa forma, a sonoridade do Orelha Negra representa um pouco a cidade e a música que se faz em Lisboa. O Sam The Kid, como produtor, estabeleceu um padrão de linguagem hip-hop portuguesa. Ele foi o primeiro a usar regularmente samples de música nacional e de discos comprados em Portugal. A sua sonoridade é bem patente no trabalho do Orelha Negra, que tem muitas referências aos discos instrumentais dele, pela forma como ele usa e manipula os samples. Isso remete para o nosso universo, porque são coisas de easy listening, cançonetas nacional dos anos 60. Ele procura coisas portuguesas e vai buscar elementos urbanos da segunda metade do século XX. Além dos samples em português. Aí foi mais Orelha Negra, ao procurar citações e frases de pessoas do mundo lusófono, abordando a música ou assuntos que nos interessavam.
Para mim, “Barrio Blue” é um dos temas mais cativantes do primeiro disco. Que ideia vocês procuraram transmitir com a canção ?
A ideia é a última coisa em que pensamos quando estamos compondo. Não procuramos transmitir ideias, mas sim fazer música. Normalmente, juntamo-nos e começamos a tocar a partir do zero. Outra forma de trabalho é quando alguém tem uma ideia sonora e os outros desenvolvem-na. Nesse caso, foi uma ideia baseada em samples que o Samuel trouxe, com uma certa sequência, e nós tocámos por cima e fomos fabricando algo a partir dessa base. As vozes em “Barrio Blue” não são muito concretas e não há nenhuma frase chave. Aquilo foi um groove e pode-se dizer que o nome surgiu, porque sentimos que o tema estava muito ligado à rua. Lembrava-nos um b-boy dançando em um guetto. A linha de baixo sugeria uma aproximação com “Inner City Blues”, de Marvin Gaye. Por esse fato, e por acharmos que havia uma ligação com um bairro ou ou guetto “Barrio Blue”. Pelo fato de ter um piano, também nos lembra a salsa de Nova Iorque dos anos 70.
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Pedro Salgado (@woorman) é jornalista, reside em Lisboa e irá contar as novidades da música lusitana aos leitores do Scream & Yell.
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