por Marcelo Costa
Um barulho de motor de carro toma o ambiente enquanto os letreiros surgem sob uma tela escura. O ronco continua e o primeiro quadro pega uma Ferrari negra cortando a película rapidamente com uma paisagem desértica ao fundo. A Ferrari roda o pequeno circuito em círculos por mais de dois minutos, quando enfim o motorista para o carro, desce e se põe a olhar estático para um lugar qualquer. Nenhuma palavra.
No quarto longa-metragem de sua carreira, Sofia Coppola volta a mirar sua lente para o vazio, tentando encontrar algo quase impossível de ser visto. A busca começou em “As Virgens Suicidas” (1999), filme denso e belo (como a morte, diria alguém). Seguiu-se com o premiado “Encontros e Desencontros” (2003), em que dois personagens perdidos encontravam o amor no lugar mais improvável (e impossível), como se só a visualização desse instante bastasse para preencher o vazio que se prosseguiria.
“Marie Antonieta” (2006) levava o espectador à corte real da França para mostrar que até ali era possível tatear o vazio. Pena que para justificar sua história realista (quer maior solidão do que um alto cargo “público”), Sofia tenha transformado a Rainha que perdeu sua cabeça na guilhotina e era odiada pelos franceses em um personagem mais… hummm… humano e correto (na contramão da História). “Um Lugar Qualquer” (“Somewhere”, 2010) corrige essa falha com louvor e parece o filme mais bem acabado da diretora.
Ok, ainda não existe um roteiro tangível. Sofia volta a praticar algo em que parece estar se tornando mestre: iludir o espectador. Os primeiros 20 minutos de “Um Lugar Qualquer” soam praticamente como se fossem videoclipes estrelados – primeiramente – por dançarinas de poledance que se exibem para um ator famoso de Hollywood ao som de Foo Fighters (“My Hero”) e Amerie (“1 Thing”) combinados com uma bonita passagem de patinação no gelo ao som de Gwen Stefani (“Cool”).
Porém, apesar de subir o som e deixar a história em segundo plano no começo arrastado de “Um Lugar Qualquer”, Sofia consegue demonstrar com exatidão aquilo que propõe: o mundo vazio de Johnny Marco (Stephen Dorff), um famoso ator de Hollywood (daqueles que as mulheres chegam se oferecendo) que têm dificuldades em preencher seu tempo com algo que seja… relevante. Na verdade, o adjetivo aqui pouco importa, pois nada parece tão importante quando o vazio se instala.
Johnny até tenta recorrer ao básico (da fama): sexo, drogas e rock and roll funcionam como passatempo, mas não preenchem a alma. Então surge Cleo (Elle Fanning), numa cena interessante: após fechar o quadro anterior beijando uma loiraça, Sofia flagra Johnny sendo acordado na manhã seguinte por outra loira, sua filha de 11 anos. E o mundo do ator vira de cabeça pra baixo. A mãe de Cleo (ex-esposa de Johnny) surtou e decidiu sumir do mapa. A garota passa a ser responsabilidade dele, que pouco a conhece.
“Um Lugar Qualquer” desfere estocadas certeiras de esgrima nos olhos daqueles que vêem os atores de Hollywood como pessoas inteligentes, sagazes e sempre com a resposta certa para a pergunta mais imbecil. No filme de Sofia (assim como em uma passagem de “Encontros e Desencontros”), os atores são personagens vazios levados de lá para cá no globo terrestre (no caso, dos Estados Unidos para a Itália) como joguetes de uma indústria que privilegia o externo, a carcaça, o rosto.
O filme ainda reserva cutucadas para o pai (ausente), Francis, na relação de Johnny com Cleo (o livro “Como a Geração Sexo, Drogas e Rock and Roll salvou Hollywood”, de Peter Biskind, alimenta o mito), mas mais do que um acerto de contas familiar e com a indústria do entretenimento, “Um Lugar Qualquer” é o filme em que Sofia Coppola mais se aproxima da perfeição em filmar o vazio (com sutileza e, quase, admiração – algo que no belíssimo “As Horas”, de Stephen Daldry, era mais evidente que o nariz falso de Nicole Kidman).
Duas passagens se destacam: na primeira, Johnny precisa “emprestar” seu rosto para o molde de uma máscara (a ser usada em seu próximo filme). Três homens começam o processo de “engessar” o rosto do ator. Trabalho feito, o grupo deixa Johnny e Sofia lentamente aproxima a câmera do rosto mumificado do ator em 1m30s de cena que causam risos nervosos no espectador (e Kie?lowski acreditava que oito segundos focando um cubo de açúcar em “A Liberdade é Azul” era muito para o público) enquanto se ouve apenas o respirar difícil do personagem (como se sem o rosto a vida fosse realmente mais complicada).
Na outra, ao som de um b-side dos Strokes (“I’ll Try Anything Once” – outro momento videoclipe), Cleo e Johnny são focalizados longamente tomando sol a beira de uma piscina, aparentemente felizes, propondo uma simplicidade para a vida que pode ser uma resposta para a necessidade de preenchimento da alma (“ser ou não ser, eis a questão”) como também um retrato da leveza do cotidiano refletida em um momento de ausência de palavras (que, embora muita gente discorde, servem mais para confundir do que para explicar).
Sofia Coppola aconchega o vazio naquele que parece ser seu filme mais bem definido (e mais arrastado, e mais… difícil) até os dez minutos finais, quando acaba escolhendo a saída mais óbvia, e joga fora tudo o que conquistou em 1h25 de história (preenchida com 90% de assuntos banais e momentos idem – como a vida), deixando uma dúvida/certeza no ar: será possível mudar? Abandonar tudo e começar do zero? Largar os vícios (fama, sexo e drogas)? Será possível, ao menos uma vez, se salvar?
As virgens não acreditavam nisso (ou não tiveram tempo para refletir – ah, a adolescência), daí o suicídio. Charlotte e Bob Harris tiveram sobrevida na paixão (que faz com que a pessoa se sinta viva, mesmo quando é apenas platonicamente retribuída). Maria Antonieta perdeu a cabeça. Johnny encontrou a pieguice de Sofia Coppola e saiu a caminhar. Parece uma solução simplista demais para um filme tão… vazio, e a simplicidade pode até enganar (Sofia, Johnny, o espectador, o resenhista) mas não consegue diluir o gosto adocicado de um final burocrático.
Um filme 90% ótimo é bom ou ruim? Veja e decida.
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Leia também
– Trilha de “Encontros e Desencontros” é rock’n roll, por Marcelo Costa (aqui)
– “Maria Antonieta”: os franceses sabem que a História é diferente, por Marcelo Costa (aqui)
– “Como a Geração Sexo, Drogas e Rock n Roll salvou Hollywood”, por Gabriel e Ismael (aqui)
– A Trilogia das Cores (Bleu, Rouge, Blanc), de Krzystof Kieslowski, por Marcelo Costa (aqui)
Kelly? Não seria Charlotte o par de Bob Harris?
Certissima, Amanda. Obrigado.
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Atenciosamente
O final é puramente simbólico. E lindo, devo dizer: o último frame termina e a música Love like a sunset part II da banda Phoenix começa a tocar. Perfeito. Muitos realmente não entenderam e acharam piegas, etc. Uma pena.
Acabei de ver. Acho que é um filme que podia mais, muito mais – e atinge mais os olhos e os ouvidos do que o coração e a cabeça. =X
Maria Antonieta não perdeu a cabeça. O filme acaba num lindo frame dela indo embora na sua carruagem num momento de reflexão.
E também acho o final de Somewhere meramente simbólico. Todos nós levamos vidas enfadonhas pontuadas por momentos de libertação. E esse momento no filme ainda teve o Phoenix de trilha sonora.
CALMAE, é o Chris Pontius do Jackass sentado no sofá na primeira foto? Sensacional haha
uma crise existencial de ator (celebridade) mostrada de forma diferente.
penso ter visto o benicio del toro no elevador e a valeria bruni-tedeschi como uma das suas amantes, porém não aparecem nos créditos.