“Blues”, de Robert Crumb (Conrad Editora)
por Marcelo Costa
Texto publicado no Scream & Yell em 24/02/2005
Robert Crumb é uma lenda. Uma lenda magrela, franzina e tímida, daquelas que esconde atrás de seu sorriso uma inteligência voraz e uma visão inconformada das coisas que o cercam. Em Blues (Conrad), Crumb constrói uma ode aos primeiros anos do estilo, enquanto massacra a música popular moderna, que na verdade é qualquer coisa criada dos anos 70 para cá. “Eu me interesso por épocas anteriores, mas os anos 1920 e 1930 são próximos o suficiente para me despertar um envolvimento pessoal”, diz o desenhista no posfácio, para depois completar: “A música moderna sempre me pareceu apocalíptica”.
Blues reúne, pela primeira vez, as HQs “musicais” de Crumb e as capas de discos, filipetas, anúncios e cartazes que o quadrinista fez nas últimas quatro décadas. As HQs já haviam sido reunidas em Crumb Draws the Blues (inédita no País), enquanto as capas de discos foram compiladas na França e na Holanda, mas nunca publicadas em um mesmo livro.
A relação do desenhista com a música é o mote de Blues, que conta com dezenas de histórias deliciosamente nostálgicas, honrando o velho bordão “como era boa aquela época” enquanto sacaneiam os tempos modernos em um livro que é um retrato impressionante a respeito dos bluesmen norte-americanos. “Eu adoro música. No entanto, não sou um grande músico. No máximo, arranho um banjo ou um violão. Para mim, a música é o maior dos prazeres, com o sexo. Mais do que arte, admito”, garante Crumb. E essa relação apaixonada é exibida ao extremo em Blues.
Desenhada em 1984, Patton conta a história do blueseiro que trocou a alma pelo sucesso com o demo em uma encruzilhada, bateu e apanhou de muitas mulheres, entornava álcool como respirava e gravou alguns dos maiores blues de todos os tempos, para morrer totalmente desconhecido. “A música que Patton tocava e cantava não pode ser descrita de maneira alguma. Ela precisa ser ouvida”.
As Velhas Canções São As Melhores é um dos trechos mais hilariantes do livro, e lembra muito o estilo MAD de ver as coisas. Crumb traduz para os quadrinhos, literalmente, quatro canções e o resultado é uma acachapante sacanagem com as músicas, mas a grande carta de intenções do livro é a história Onde Foi Parar Toda Aquela Música Magnífica de Nossos Avós (1985), que detona Bruce Springsteen e até cita o Menudo! Para Crumb, o problema é que a música elétrica é tocada alta demais, sem contar que desde Robert Plant, passando por Bon Jovi, Guns e chegando no Darkness, gritar e cultivar uma cabeleira decente ficou muito mais importante do que tocar uma simples canção.
Além da crítica voraz de Crumb, em histórias recheadas de cinismo e diretas no queixo da juventude consumista, Blues traz as ilustrações coloridas do quadrinista para capas de discos, revistas e até filipetas de sebo e selos de vinis. Robert Johnson é retratado com suprema maestria para a capa da revista 78 Quarterly (1988) enquanto o violinista Louie Bluie ganhou uma sensacional capa de disco: de um lado, uma bela negra seminua e do outro, ele, o demônio. Entre os dois, o blueseiro. No entanto, nenhuma capa de disco de Crumb ficou mais famosa que a para o álbum Cheap Thrills, da banda Big Brother & The Holding Company, que contava com os vocais da então desconhecida Janis Joplin, amiga de Crumb. Clássica é pouco para a capa do disco. A própria capa do livro foi retirada também de uma capa de disco, a coletânea Harmônica Blues, com canções dos anos 20 e 30.
Em uma edição caprichada da Conrad – que já lançou no Brasil o álbuns com histórias de Fritz The Cat, Mister Natural, a compilação de trechos da revista Zap Comix, e América – Blues também conta com a presença de Mr Natural e o famoso “Keep on Truckin”, além de fotos do próprio Crumb em atividade com sua banda (sim, ele montou uma banda!!!), que, segundo um dos cartazes presentes no livro, é “a banda perfeita para todas as ocasiões: festas, casamentos, quadrilhas, festivais e pequenos clubes”. Em um cartaz anunciando um disco do R. Crumb & The Cheap Suit Serenaders, o desenhista (e tocador de banjo) avisa: “Nós não usamos glitter, nem penduricalhos, pulseiras ou colares brilhantes nessa banda de homens. Apenas tocamos a melhor música que podemos”.
Blues é, mais do que qualquer outra coisa, uma reverência ao passado, e como observou Rosane Pavam no ótimo prefácio do livro, “o passado é uma ilusão – e como ilusão precisa ser restabelecido, ou ser um homem não fará senso”. Por baixo da veia satírica com que Crumb detona os dias atuais e se declara apaixonado pelo passado também há muita nostalgia. A crítica, no entanto, serve para chacoalhar o leitor e mostrar que as coisas que existem hoje em dia brotaram no passado e foram sendo afetadas pela cultura de massa até tomarem a forma que tomaram. E vão continuar mudando. No fundo, bem lá no fundinho, música boa é música antiga. Se tirarmos as histórias inventadas, as roupas, o glamour, a moda e o marketing, pouco sobra de tudo que ouvimos atualmente da “melhor banda de todos os tempos da última semana”. É ali, no som do violão cru e da voz rascante que está a redenção. Nos velhos discos de vinil (discos de vinil? Meu Deus, o que é isso?) de 78 RPM. Amém.
Leia também:
– Levando Robert Crumb para comprar vinis em São Paulo, por Marcelo Costa (aqui)
Esse livro é foda, eu tenho. 🙂
Também tenho e li essa HQ. Até fiz uma resenha também aqui.
É bem chocante e engraçado, como qualquer outra obra de Crumb. Legal também são as canções dele, com o grupo Robert Crumb and His Cheapsuit Serenaders. Como ele é um fanático pelos anos 20, dá pra antecipar né…