por Sérgio Martins
No início do século passado, o compositor austríaco Gustav Mahler (1860-1911) lançou uma profecia à soprano alemã Lilli Lehmann: “Daqui a 100 anos, haverá festivais dedicados às minhas sinfonias, e elas serão executadas em enormes salas de concerto”. Não se sabe se essa previsão foi feita em tom de bazófia ou de desabafo, mas atualmente poucos compositores são tão executados quanto Mahler. As orquestras e o público o amam (bem, parte do público) por causa da inegável qualidade de suas obras, da forte presença de metais e percussão e da intensidade com que ele expressa temas como paixão e morte.
O austríaco também é um favorito dos cineastas, que utilizam sua música para pontuar momentos de dramaticidade. O italiano Luchino Visconti escolheu o Adagietto da Quinta Sinfonia para traduzir a paixão arrebatadora de Gustav von Aschenbach, o compositor de “Morte em Veneza”. Mahler também é utilizado para o mal: o vilão de “The Killer Inside Me”, de Michael Winterbottom, espanca e mata mulheres ao som de suas obras e da ópera Norma, de Bellini.
O culto às composições de Mahler deverá aumentar nos próximos dois anos, quando serão lembrados os 150 anos de seu nascimento e o centenário de sua morte. No Brasil, pelo menos seis orquestras de grande e médio porte vão tocar suas peças. O projeto mais ambicioso é o da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), que vai apresentar todas as sinfonias e ciclos de canções de Mahler. A estreia foi em março (mas outras apresentações estão agendadas até outubro e, ainda, 2011 – veja aqui) quando a Osesp interpretou a Quarta Sinfonia, regida pelo inglês Justin Brown, com solos da soprano Gabriella Pace. “Foi a primeira sinfonia que regi na vida. Nela, Mahler capturou a visão do paraíso sob os olhos de uma criança e a transformou em música com uma precisão infalível”, disse Brown.
O talento de Mahler não se limitou à composição. Ele foi também um regente do primeiro escalão, tendo assumido a direção artística da Ópera de Viena e da Filarmônica de Nova York. Judeu de nascimento, ele se converteu ao catolicismo para se candidatar ao cargo em Viena (mas não escapou de críticas por parte de anti-semitas). No posto, foi temido e respeitado por exigir o máximo dos instrumentistas e por empreender mudanças que até hoje são seguidas à risca pelas casas de ópera. Pedia que a iluminação fosse reduzida durante os espetáculos e proibia a entrada de espectadores após o início da récita.
Mahler, o maestro, era também celebrado pelas leituras revolucionárias que fazia das obras de clássicos como Mozart e Beethoven. O fato de conhecer a fundo as engrenagens de uma orquestra fez com que ele criasse novas técnicas de composição: em suas sinfonias, a melodia pode ser dividida de instrumento para instrumento – o tema começa nas cordas, passa para o clarinete e termina no trompete. “Um concerto com obras de Mahler equivale a uma boa peça de teatro. O público assiste ao desenrolar de uma trama, na qual os instrumentos assumem o papel dos atores”, escreveu o dramaturgo escocês Armando Iannucci.
Mahler não mexeu na estrutura das sinfonias. Mas aumentou sua duração, volume e densidade, e introduziu nelas instrumentos e gêneros musicais alheios ao mundo sinfônico. O terceiro movimento da Primeira Sinfonia traz uma música folclórica judaica. Um martelo gigante é utilizado no momento crucial da Sexta Sinfonia, e a Sétima Sinfonia traz um mandolim. O compositor mudou também uma pequena regra do período clássico. Nela, a sinfonia deveria começar e terminar na mesma tonalidade. Mahler aboliu a convenção.
Para um leigo, tais mudanças podem soar pequenas; mas inspirados nelas é que compositores como Schoen-berg, Webern e Berg viriam a criar movimentos como o atonalismo. O compositor austríaco foi banido das salas de concerto durante o nazismo e, a exemplo de outros autores judeus, quase terminou relegado ao esquecimento. A obra de Mahler reviveu quando, na década de 60, o regente americano Leonard Bernstein resgatou suas sinfonias e canções e defendeu sua genialidade em palestras em universidades e nas apresentações especiais que fazia para o público jovem.
Hoje, as peças de Mahler são parte indispensável do cânone de qualquer maestro que se dê ao respeito (exigem do regente pulso forte para não perder o ritmo, como lembra o ex-diretor da Osesp John Neschling). Mahler é utilizado também para grandes celebrações. Simon Rattle estreou como diretor artístico da Filarmônica de Berlim, em 2000, com a Quinta Sinfonia; o venezuelano Gustavo Dudamel regeu a Primeira Sinfonia na sua estreia em Los Angeles, em outubro de 2009. A profecia feita pelo austríaco há mais de um século foi, afinal, cumprida.
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O melhor do melhor
Quais são as gravações mais inspiradas de cada uma das principais obras de Mahler
– Primeira Sinfonia: Bruno Walter e Columbia Symphony Orchestra
Walter foi um dos discípulos mais aplicados de Mahler. “Poucas pessoas me entendem tão bem”, escreveu o compositor – e esta versão respeita a obra como nenhuma outra.
– Segunda Sinfonia: Simon Rattle, City of Birmingham Symphony Orchestra
O regente inglês Rattle tira da Birmingham Symphony uma performance visceral. E poucas vezes a soprano Janet Baker brilhou como aqui.
– Terceira Sinfonia: Riccardo Chailly, Royal Concertgebouw Orchestra
A Cocertgebouw nasceu para tocar Mahler. E, nas mãos de um grande regente, como o italiano Chailly, suas versões das obras do compositor são obrigatórias.
– Quarta Sinfonia: Michael Tilson Thomas, Sinfônica de São Francisco
Thomas entende os flertes com o movimento romântico presentes na sinfonia, ao mesmo tempo em que respeita a modernidade de Mahler.
– Quinta Sinfonia: Leonard Bernstein e Filarmônica de Viena
O regente americano achava que às vezes a alma de Mahler “baixava” nele. Com essa orquestra, que tantas vezes foi regida pelo próprio compositor, ele atinge uma performance explosiva.
– Sexta Sinfonia: Ivan Fischer, Budapest Festival Orchestra
Mahler estava gravemente doente quando compôs essa sinfonia lúgubre. Sob um regente de mão pesada, ela pode se tornar um enfado – mas o húngaro Fischer confere a ela leveza incomum.
– Sétima Sinfonia: Claudio Abbado, Filarmônica de Berlim
Abbado é um mahleriano de alta patente, e esta aqui é, disparado, a melhor versão da Sétima, já que nela o regente dissipa a densidade excessiva dessa obra dificílima.
– Oitava Sinfonia: Georg Solti e Sinfônica de Chicago
Os metais da orquestra americana estão entre os melhores do mundo e, junto com o brilhantismo com que Solti regia Mahler, fazem toda a diferença.
– Nona Sinfonia: Herbert von Karajan, Filarmônica de Berlim
Mahler compôs a Nona à morte, e fez nela um retrospecto de sua vida. O austríaco Karajan nunca foi um especialista em Mahler, mas entendeu a mensagem da obra e arrancou de seu conjunto uma interpretação sem rival.
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Sérgio Martins é jornalista, assina o blog Tudo Que Sobra e apresenta o programa Veja Música
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