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Quando a música incendiou a sociedade
por Gabriel Innocentini
É uma tarefa difícil, mas Nick Tosches a aceitou: tentar definir o que é o rock-and-roll. De quebra, legou uma aula aos seus leitores. Primeiro, de jornalismo: checagem e apuração não fazem mal a ninguém. Segundo, de história da música: se você deseja saber qual o significado da expressão “honky-tonk” e onde ela surgiu, “Criaturas Flamejantes” é leitura obrigatória. E ainda há anedotas edificantes sobre a vida de Jerry Lee Lewis ou sobre o surgimento da histórica gravadora Sun Records, de Sam Phillips.
Fartamente documentado, incluindo até um parágrafo de pura listagem, como o relativo à primeira vez em que a metáfora “rock-and-roll” foi usada em canções populares, o livro de Nick Tosches exibe uma pesquisa completa, que cobre até mesmo o uso bíblico da expressão: “O oitavo versículo do Salmo 22 diz ‘Confiou no Senhor’. Mas a palavra hebraica que foi traduzida como ‘confiou’ é originalmente gahlahl, que não quer dizer confiança. A Bíblia de Gênova de 1560 traduziu o verso literalmente: ‘Aquele que rolou com o Senhor”.
Uma pista para entender esse fenômeno da cultura norte-americana chamado rock-and-roll é a citação do antropólogo Richard Wallaschek: “A característica mais surpreendente em todas as canções selvagens é a ocorrência constante de palavras que não têm nenhum significado”.
“Tutti Frutti”, de Little Richard, é sempre uma referência quando se trata de avaliar o impacto do rock-and-roll na vida de grandes músicos, como Bob Dylan ou Lou Reed. O líder do Velvet Underground disse sobre a canção: “Quando eu a ouvi no rádio, ela possuía tudo o que faltava no meu mundo”. Quem conhece a música, sabe que o refrão, malicioso, consistia em “palavras sem nenhum significado”: “Tutti frutti all rootie, awopbopaloobop, alopbamboom”. Era a música que explodia em hormônios, feita para adolescentes, no ritmo da rebeldia que começava a surgir nos EUA.
Tosches sequer cita Little Richard, preferindo se concentrar em duas figuras emblemáticas – e brancas: Elvis Presley e Jerry Lee Lewis. O rei do rock é desenhado como um grande mistério “numa era carente de magia”. De onde vinha seu poder, sua força? Tosches acredita que nem o ex-caminhoneiro da Crown Eletric Company sabia. Elvis é considerado por ele como o responsável, juntamente com Sam Phillips, Scotty Moore e Bill Black, pela existência do rock-and-roll. Tudo por causa da gravação de “Blue Moon of Kentucky”, numa sagrada segunda-feira, 5 de julho de 1954.
Em questão de meses, a gravação daria luz a um novo estilo musical – o rockabilly, uma mistura de rock-and-roll com hillbilly, o rock caipira. Mas com uma distinção importante, segundo Tosches: a alma desse estilo era branca, vinha da roça. Assim, o rockabilly não seria um roubo da música negra pelos brancos como alegam alguns.
Se o rockabilly era inovador, era mais por causa de seu temperamento – insano, demoníaco – do que por suas supostas inovações técnicas, já incorporadas, de uma maneira ou de outra, pela música country, como o contrabaixo slap ou o efeito de eco (delay) da Sun.
Sob esse ponto de vista, Jerry Lee Lewis é a figura que concentra todo o poder dionisíaco do rockabilly, capaz de inflamar o público com suas atitudes autodestrutivas e transgressoras. Tosches, que é autor de uma biografia sobre ele (“Hellfire”, ainda sem tradução no Brasil), o considera “o último selvagem americano, “homo agrestis americanus ultimus”. Ele é comparado a ninguém menos do que William Faulkner, ganhador do prêmio Nobel de Literatura de 1949, por sua personalidade indomável.
Lançado no Brasil pela editora Conrad na coleção Iê Iê Iê, que também inclui obras de Lester Bangs, Greil Marcus e Simon Reynolds (todos obrigatórios), “Criaturas Flamejantes” parece uma conversa, com Nick Tosches compartilhando suas teorias sem soar chato, apontando aqui e ali quais os fatos críticos que alteraram o rumo da história, dando carne, osso e ritmo aos personagens principais. Isso inclui a percepção de que para entender aquele período, é preferível desenhar um esboço do que ocorria nos diversos lugares do que pretender conferir uma ordem acabada a todos os eventos que deram origem ao rock-and-roll.
Ou como ele mesmo diz: “A verdade é que Jerry Lee Lewis soube que o fim está próximo, deve estar próximo, e que o fim-está-próximo é o coração de tudo; sem isso não existiria rock-and-roll, nem epifanias de jukebox, apenas pessoas pálidas e frágeis olhando pela janela. Sem a obsessão ou a febre ou o medo do fim próximo, tudo é sensato e simples”. Como discordar?
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– Gabriel Innocentini cursa jornalismo na Unesp de Bauru e assina o blog Eurogol
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Leia também:
– “Disparos do Front da Cultura Pop”, de Tony Parsons, por Marcelo Costa (aqui)
esse livrinho é ótimo; mesmo sendo, se eu não me engano, só um pedaço do original (que não saiu no brasil). aliás, toda a série é muito bacana, apesar de serem livros “compactados”. a conrad podia lançar coisas do gênero em versões integrais!