Os dois livros de Jonathan Safran Foer

‘Tudo Se Ilumina’, de Jonathan Safran Foer
por Jonas Lopes
Texto publicado no Scream & Yell em 22/01/2006

Deveria haver mais autores como Jonathan Safran Foer – no Brasil, principalmente. Foer é jovem: tem 28 anos hoje (em 2006), tinha 24 quando lançou seu primeiro romance, “Tudo Se Ilumina” (365 páginas, tradução de Paulo Reis e Sergio Moraes Rego), lançado no Brasil pela Rocco; é bem humorado, mas não engraçadinho; tem coragem para experimentar, sem cair nos lugares-comuns da literatura pós-moderna; utiliza elementos autobiográficos sem fazer confessionalismo barato; suas referências pop (como a hilária cadela Sammy Davis, Junior, Junior) estão ali para rechear a narrativa, e não para conduzi-la sozinhas, em detrimento da densidade psicológica.

O romance é inspirado na viagem que o autor fez à Ucrânia, para tentar encontrar a mulher que salvou seu avô dos nazistas na Segunda Guerra. Foer não chegou a conhecer o avô; tinha apenas uma fotografia da tal mulher, Augustine. Não a encontrou, mas saiu de lá com uma idéia para um livro. “Tudo Se Ilumina” foi sucesso imediato nos Estados Unidos, com elogios rasgados de veículos como New York Times, Esquire e Guardian. A revista New Yorker o apontou como a grande estréia literária dos últimos anos. Houve ainda uma adaptação cinematográfica, com Elijah Wood, que chegou ao Brasil como “Uma Vida Iluminada”.

Na trama, Jonathan é recebido na Ucrânia por Alex, um jovem impagável que será seu tradutor, seu avô deprimido e que acredita estar cego e por Sammy Davis, Junior, Junior. Enquanto atravessam um país em frangalhos, descobrem que o avô de Alex pode ter uma relação muito mais próxima com Augustine do que se imaginava. O problema é que o inglês de Alex é terrível, e a comunicação entre Jonathan e os ucranianos é tétrica. Cabe aqui um elogio à tradução brasileira, pois o livro é cheio de trocadilhos, de difícil adaptação.

“Tudo Se Ilumina” utiliza uma estrutura polifônica, com três narrativas revezando-se nos capítulos. Uma delas, a jornada em busca de Augustine, é narrada por Alex (as primeiras páginas são sensacionais). A segunda narrativa é a história dos antecedentes de Jonathan, desencadeada por um acidente de carroça em 1791. Depois descobrimos que esse é o livro escrito por ele, fruto da viagem – o livro, dentro do livro. A terceira narrativa é epistolar: cartas de Alex ao amigo, depois da viagem. O ponto de vista do próprio Jonathan Safran Foer não aparece.

A reconstrução histórica que o escritor faz de uma pequena aldeia (ou shtetl) do final do século 18 é excelente. Depois do acidente com a carroça, o condutor (Trachim) desaparece no rio. Lá é encontrada uma menina. Ninguém sabe de onde o bebê surgiu. Ela é adotada por um velho abandonado pela esposa, e ganha o nome de Brod – mais tarde o nome da aldeia muda para Trachimbrod. Brod é a mãe da mãe da mãe da tataravô de Jonathan. A história avança para seu avô – já na década de quarenta do século vinte -, que, graças a um braço morto atrai as mulheres e satisfaz as viúvas da região. A narrativa vai e vem entre esses dois tempos.

É possível perceber no texto de Safran Foer traços da acidez judaica do Philip Roth da época de “O Complexo de Portnoy”, além de um surrealismo que não destoaria nas páginas de Kurt Vonnegut. Também fizeram comparações com “Laranja Mecânica”, pela criação de termos e expressões, como “disseminação de moeda-corrente” (e o estranho “Livro dos Sonhos Recorrentes”). Nada que ofusque a originalidade de Foer, que entorta a forma e o tempo todo. E é sempre uma ousadia entregar a narração a alguém com linguagem problemática.

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‘Extremamente Alto & Incrivelmente Perto’, de Jonathan Safran Foer
por Jonas Lopes
Texto publicado no Scream & Yell em  05/11/2006

Ele conseguiu de novo. Em seu segundo romance, “Extremamente Alto & Incrivelmente Perto” (Rocco, 360 páginas, tradução de Daniel Galera), Jonathan Safran Foer dá um passo à frente de “Tudo se Ilumina” e se mantém como uma das grandes promessas da literatura contemporânea. As qualidades da boa estréia continuam: o humor corrosivo, as referências que situam o romance em seu tempo (como à internet e à cultura pop), o arrojo narrativo. E Jonathan, que esteve na Feira Literária Internacional de Parati, ainda utiliza uma pedreira como tema: o 11 de setembro.

“Extremamente Alto & Incrivelmente Perto” segue também os caminhos narrativos do primeiro livro. Uma história principal envolvendo um jovem em busca de um segredo familiar, e narrativas alternadas dispostas em algum ponto do passado, elucidando alguns desses segredos. Não se trata de repetição ou acomodação: Safran Foer apenas aprimorou seus recursos, agora utilizados com muito mais domínio. “Tudo se Ilumina” ainda tinha cara de estréia – vigoroso, mas com um pouco de imaturidade e inconseqüência. O novo romance traz um Foer bem mais consistente. O equilíbrio entre o humor e a melancolia agora é maior. No primeiro o humor vencia na comparação.

Oskar Schell tem nove anos e perdeu seu pai há dois, na tragédia do World Trade Center. Os dois tinham uma relação muito próxima e intelectualizada (procuravam erros no New York Times, como hobby). Agora Oskar vive com a mãe, a quem culpa por tentar fazer a vida seguir sem o marido morto, e a avó, abandonada pelo marido décadas antes e que criou seu único filho, o pai de Oskar, sozinha. Dedica seu tempo a uma série de atividades, ahn, curiosas: aulas de francês, invenções, elaboração de jóias, coleções de borboletas e moedas raras, um pandeiro, envio diário de cartas a Stephen Hawking.

Uma noite, irritado porque a mãe ria com um amigo na sala, Oskar vai ao closet do pai, encontra um vaso azul e, dentro dele, um envelope com a palavra “black” escrita nele e uma chave dentro. Depois de testar, sem sucesso, a chave em todas as fechaduras de sua casa, decide procurar pessoalmente todas as pessoas com o sobrenome Black de Nova York. Para acompanhá-lo na feérica odisséia, escala um vizinho idoso, ex-jornalista e corresponde de guerra.

Na narrativa alternativa, o avô de Oskar relembra o bombardeio americano em Dresden, da qual foi sobrevivente, a paixão por uma adolescente que morreu no desastre, a migração para os Estados Unidos e o casamento com outra mulher, irmã de sua paixão de infância e futura avó de Oskar. Ele a abandona quando descobre que está grávida. Passa as quatro décadas seguintes, escrevendo uma carta por dia ao filho que deixou, e nunca as envia.

A busca de Oskar é por algo mais complexo que uma simples fechadura. O que ela pode abrir, afinal? Seu pai não pode ser trazido de volta. Alguma revelação inédita? Difícil. O que ele procura – embora sequer saiba disso – é uma forma de exorcizar a tragédia. A inteligência fora do comum do garoto o ajudou menos do que ele se ele fosse uma criança “normal”, por assim dizer, já que a sua precocidade acabou por revestir sua dor, como se Oskar se sentisse obrigado a ser tão maduro quanto é inteligente. No fatídico dia dos atentados, ele ainda teve tempo de ouvir e gravar ligações de seu pai durante os ataques. Oskar nunca as mostrou as gravações à mãe, por medo de deixá-la deprimida. O que é absurdo: ele tem nove anos, e é quem deveria estar sendo poupado.

Além de exorcizar a dor, o que Oskar consegue é atar o fio geracional que se perdeu quando o avô abandonou seu pai. Sem saber, os dois estão espiritualmente ligados por terem vivenciado (e sobrevivido a) grandes tragédias (Dresden e o 11/09). E o abandono de décadas antes pode ser uma das razões da proximidade entre Oskar e o pai e a subseqüente solidão que a perda traz ao garoto. Natural que o avô seja a primeira pessoa a quem ele finalmente mostra as gravações, mesmo sem saber ainda quem ele é.

Uma grande vantagem de Jonathan Safran Foer em relação a outros escritores que se propõem a fazer o tal pós-modernismo é não se limitar aos truques de linguagem, jogos de espelho e contrapontos temporais. Foer, como Don DeLillo, mantém os pés fincados em seu país, na história e em fatos importantes. E aqui me refiro não só ao 11 de setembro, mas à reconstrução do atual espírito norte-americano em cada personagem, mesmo que secundário. Um espírito paranóico, evidentemente, e também derrotado, desnudo. Patriótico? Não diria. Pelo menos não mais do que o normal (que é alto); os americanos estão tão cambaleantes que se Bush tivesse invadido Saturno, ao invés do Iraque, ninguém teria estranhado.

E Foer domina um outro problema literário comum: a personalização de pontos de vista. Muitos autores dividem seus romances em várias narrações, todas elas iguais, como se a personalidade, a forma de falar, agir e pensar de cada personagem fossem as mesmas. Em “Tudo se Ilumina” já havia as diferenças de linguagem e abordagem entre cada personagem, e isso continua em “Extremamente Alto & Incrivelmente Perto”. Outra coisa interessante é a forma como ele utiliza as possibilidades gráficas: fotos, desenhos, diálogos espalhados, páginas apenas com números ou com apenas uma frase, centralizada, ou sem nada.

A coragem de Safran Foer está não apenas em almejar uma linguagem própria, um estilo que começa a tomar formas cada vez mais reconhecíveis, mas em encarar um assunto como o 11 de setembro tão pouco tempo depois. É muito mais fácil explorar grandes eventos depois de um longo período, quando já o entendemos melhor – e aqui não se trata de um evento qualquer, mas o mais marcante dos últimos anos. Caso mantenha a qualidade nos próximos livros, Foer será, dentre os jovens autores, aquele com maior chance de se tornar um futuro clássico.

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Jonas Lopes é jornalista da Veja São Paulo e assina o blog Gymnopedies

Foer lê trechos do ainda inédito “Eating Animals”, na Shakespeare and Co, Paris

Foto: Marcelo Costa

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