por Marcelo Costa
No começo deste ano publiquei uma coluna que listava (sob a minha ótica) os 13 discos mais influentes de todos os tempos (leia aqui). Mais de 100 pessoas comentaram a coluna cobrando na lista a presença de Smiths, Deep Purple, Cure, Van Morrison, Talking Heads, Television, entre muitos outros. Com pequenas concessões, um ou outro artista citado pelos leitores merecia realmente um lugar na lista (o desafio era quem tirar dos 13 escolhidos para a entrada do desejado pelo leitor), porém, a grande ausência/omissão foi percebida apenas pela minha namorada: “Kind of Blue”, o álbum de jazz mais vendido de todos os tempos, um dos mais importantes de Miles Davis, do próprio jazz e da música mundial. Deu um nó no peito quando ela perguntou se “Kind of Blue” não poderia/deveria estar na lista. Não só deveria: era obrigatório!
Um sentimento de débito pessoal com o disco fez casa nos meus pensamentos sobre música (e eu penso em música quase todo o tempo), e aumentou significadamente a cada audição do álbum nos últimos três meses. Chegou a hora de pagar a dívida: acaba de chegar ao país, via Editora Barracuda, “Kind of Blue – A História da Obra Prima de Miles Davis”, do jornalista Ashley Kahn (tradução de Marcelo Orozco e Patricia de Cia), livro que narra a trajetória de Miles Davis, acompanhando o trompetista desde seu início no bebop até sua incursão pelo jazz modal – estilo que caracteriza “Kind of Blue” – culminando na produção e lançamento do álbum em agosto de 1959 e seguindo até sua transformação em marco cultural.
“Kind of Blue”, o disco, não abalou as estruturas do jazz quando foi lançado, mas serviu para mostrar um novo caminho a seguir (algo comum na carreira de Miles). “Não abalar as estruturas” não quer dizer, de forma alguma, que o álbum foi recebido de forma fria por músicos, crítica e público. Muitos instrumentistas só foram realmente entender a simplicidade do álbum quando se dispuseram a tocar alguma das cinco canções que o compõe, e ficaram abobalhados com a nova forma de tocar música proposta por Miles e seu sexteto.
A crítica, por sua vez, foi amplamente favorável, tomando como exemplo a revista Down Beat, bíblia do jazz: “Este é um álbum fora do comum. Fazendo uso de recursos muito simples, mas eficientes, Miles construiu um álbum de extrema beleza e sensibilidade”. Já o público… bem, “Kind of Blue” é o terceiro álbum mais vendido dos anos 50, e o disco de jazz mais vendido de todos os tempos, com a impressionante marca de 5 milhões de cópias no mundo todo. Importante: esses números aumentaram muito depois do álbum ser lançado. Em três anos (1959 a 1962), “Kind of Blue” atingiu a marca de 87 mil cópias. Ele só veio alcançar sua primeira marca de platina (500 mil cópias) em 1993. E de lá pra cá, com uma média anual que beira as 400 mil cópias vendidas, o disco já ultrapassou a marca de 5 milhões.
Em “Kind of Blue – A História da Obra Prima de Miles Davis”, Ashley Kahn “passeia” pela história de Miles Davis sem fechar os olhos para a história do jazz. Dessa forma, o leitor irá esbarrar no livro com nomes como Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Duke Ellington, Louis Armstrong, Chet Baker, Dave Brubeck, Ornette Coleman, Charles Mingus, e muitos outros. O sexteto que acompanhou Miles na criação do álbum ganha destaque especial na narrativa (a saber: Cannonball Adderley, Paul Chambers, Jimmy Cobb, John Coltrane, Bill Evans e Wynton Kelly), mas a grande estrela do livro é realmente “Kind of Blue”, o disco.
O jornalista abre seu texto de forma emocionante, contando como foi ouvir a integra das fitas masters originais do álbum, gravadas 40 anos antes (a audição foi feita em 1999), em um estúdio da Sony Music. “A fita começou a passar pelo cabeçote e pude ouvir as vozes de Miles Davis e de seu produtor Irving Townsend, o som imediatamente reconhecível do trompete de Miles, do tenor de John Coltrane, do alto de Cannonball Adderley, e os outros músicos. Escutei a harmonia dos riffs começar e parar e fui me aclimatando ao ritmo do processo de gravação. Alguns engenheiros de som que ficaram sabendo que as masters seriam tocadas naquele dia apareceram e silenciosamente puxaram algumas cadeiras ou se acomodaram pelos cantos para ouvir. “ Como se fosse uma missa, um momento especial em que o tempo praticamente pára. Talvez não fosse por acaso que o disco tenha sido gravado em uma igreja convertida em estúdio no coração de Manhattan…
Kahn segue a narrativa desvendando o caminho trilhado por Miles até a formação do sexteto que iria gravar “Kind of Blue”. Histórias de bastidores, trocas de músicos, shows, confusões motivadas pelo vício em drogas, e um imperdível relato take a take tornam o livro imperdível para os apaixonados – não só pelo álbum em questão mas – pela música. Em alguns momentos, o uso dos termos técnicos ameaça o entendimento dos neófitos em jazz, mas basta um pouco de paciência (e principalmente, vontade de explorar este território novo e encantador) para prosseguir a leitura e esbarrar em passagens antológicas (são várias).
Numa de suas páginas, o autor propõe ao ouvinte que ele tente se lembrar de quando ouviu “Kind of Blue” pela primeira vez. Fiz o teste, e não lembro ao certo. Acho que foi no começo dos anos 90. Um amigo estava deixando o país, e de tanto me falar da extensa coleção de discos de seu pai, combinou de me apresentar a ela numa tarde qualquer, antes de ir embora. Marcamos. Até hoje me arrepio ao lembrar aquela coleção. Tinha TUDO ali, original da época. E os vinis pareciam que tinham saído da prateleira da loja naquela manhã, tamanho o cuidado que o dono tinha.
Escolhi alguns para ouvir enquanto conversávamos, e “Kind of Blue” foi um dos álbuns que passou pela agulha do som naquela tarde. Fui comprar o CD uns três anos depois, e como o vento frio das tardes de outono, ele sempre volta em determinada época do ano, e aluga o aparelho de som pedindo atenção. Nos últimos três meses ele sempre chegou aos meus ouvidos pedindo uma explicação por sua ausência na listinha citada na abertura deste texto. E não há explicação além da justificativa do esquecimento. Porém, com “Kind of Blue – A História da Obra Prima de Miles Davis”, o álbum ganha um emocionado retrato literário (quantos discos você conhece, caro leitor, que já ganharam uma biografia?) que transforma a audição do disco em algo ainda mais especial. E também ganha esse texto reverente, pequeno-quase-imperceptível diante de sua grandiosidade musical, mas completamente entregue e apaixonado por sua qualidade atemporal.
Três perguntas para Marcelo Orozco, um dos tradutores do livro.
Como funcionou a tradução? Você e a Patricia encontraram dificuldades?
Traduzimos revezando, até de acordo com o que outros afazeres nos permitia quanto ao tempo. Um traduzia um capítulo ou dois, o outro fazia a “sintonia fina” e vice-versa. Depois ainda teve a revisão na preparação e mais uma leitura nossa sobre essa revisão para todos chegarmos à versão publicada. Quanto a dificuldades, acho que os termos técnicos da música (nomes de escalas etc) exigiram uma preocupação maior, ainda mais porque são termos que um leitor leigo pode não entender nem ter saco de tentar entender. E, como a descrição das gravações tinha muita transcrição de díalogos no estúdio, também houve a preocupação de chegar a uma tradução que fosse fiel ao conteúdo e que mantivesse, em português, o ritmo e o jeito de linguagem falada. Afinal, eles eram jazzistas que falavam gíria ou que tinham seu código próprio para se fazerem entender por seus pares falando uma ou duas palavras em vez de uma frase completa.
Para que público você acredita que este livro se destina?
Espero que para quem gosta e/ou tem interesse de conhecer boa música e saber mais sobre como ela foi feita, seja jazz ou não (no caso, é jazz). Ou que queira saber mais sobre Miles Davis, um grande criador de música popular. Não só de jazz. E, apesar de uma ou outra consideração mais técnica que existe ali, creio que é um livro fácil mesmo para quem não é músico ou não tem familiaridade com termos técnicos.
Para você, pessoalmente, qual o valor de “Kind of Blue”? Você se lembra a primeira vez que o ouviu?
É um disco que, volta e meia, boto de novo para ouvir. Gosto do “ambiente” do ao vivo no estúdio, da presença da instrumentação acústica, de como a banda é ótima e consegue fazer as coisas que toca parecerem até simples (quando não são). A música flui e dá até para cantarolar uns temas e solos. Ouvi pra valer na fase em que mergulhei no jazz porque estava meio empapuçado de pop/rock. Finalmente achei que meu ouvido já estava no ponto de absorver aquilo. De todas as coisas que conheci de jazz e de Miles, “Kind of Blue” é um dos que ouço de novo com maior frequência.
Marcelo Orozco é jornalista. É autor do livro “Kurt Cobain: Fragmentos De Uma Autobiografia”, lançado pela Conrad Editora, e tem uma carreira de bons serviços prestados ao jornalismo em publicações como Showbizz, Trip, General, 89 FM, Notícias Populares, Vip e da Folha de S.Paulo.
Leia também: John Coltrane é que é rock and roll, por Marcelo Orozco
O disco já começa bem pelo nome, não é? Este foi o primeiro CD da minha pequena coleção de jazz. Um amigo que entendia de sons disse que se eu fosse começar ouvir jazz, deveria iniciar por Miles Davis. Não tinha lido muito à respeito. E peguei o “Kind of Blue” na loja ao ler o selo que contava um pouco da importância do disco. Logo na sequência, assisti um filme em que o disco aparecia. Vi que fiz a escolha certa. Isso foi em 2000. Comprei outros jazzistas e por um tempo pensei em jogar fora todos meus discos do pop/rock. Mas o pop sempre volta, e acho que Miles Davis é pop. Mesmo que seja super breve, gosto da aparição dele no DVD Gimme Some Truth, do Lennon.
Kind of great!!!!!!!!!!!!!!!
Aos que nunca ouviram o disco, há neste blog… entre outros disco de jazz e blues: http://blaucomunicaciones.com/blogs/discosocultos/
Nunca é tarde pra falar do Kind of Blue.Parabens pela materia.
preciso ouvir e conhecer jazz. percebi isso há tempos. certa vez encontrei um site com uns ‘trocentos’ discos do miles davis pra baixar. não baixei nenhum por puro medo de ouvir um disco ‘difícil’ e nunca mais querer saber do jazz. bom, achei o disco a ser baixado. falta só um link. hehehe
Enquanto fazia a leitura desse livro, resolvi me arriscar (melhor, me jogar) na audição de “Kind Of Blue”. Assim como o Orozco, vez ou outra me flagro assoviando algum dos temas. Disco %!@$&@# livro %!@$&@# matéria %!@$&@#
“Kind Of Blue” faz parte do imaginário de muito boa gente. Não sendo um fã de jazz, reconheço que este disco é uma obra-prima e um autêntico mar de serenidade para os ouvidos. Julgo que o álbum encontra Miles Davis na sua melhor fase clássica e daí a sedução que causou em diferentes segmentos musicais. Mais do que tudo, “Kind Of Blue” é património da humanidade.
Legal, vou ter que ir atrás deste livro. Sei que tem um sobre a produção de “A Love Supreme” do Coltrane também. Eu tinha um pouco de medo dessas obras literárias, mas não tinha lido nada a respeito também, só visto nas livrarias. É tempo de me redimir.