texto de Marcelo Costa
“Você vai se meter naquela roubada?”, questionou uma amiga, carioca. “Cuidado, esse show tem cara de Altamont 2”, recomendou um amigo jornalista, paulista. Na manhã de sábado, no Rio de Janeiro, jornais de todo país destacavam o possível “maior show de rock da história” com manchetes que iam de Luciana Gimenez exibindo o “cofrinho” na piscina do Hotel Copacabana Palace tanto quanto a opção da prefeitura carioca em deslocar os 1800 policiais do Core (Coordenadoria de Recursos Especiais) para a área do show, relembrando uma velha piada: “se todo mundo estava em Copacabana, quem estava tomando conta da lojinha? Ou melhor, da Rocinha?” Segundo expectativas, o show dos Rolling Stones na praia de Copacabana tinha tudo para ser um caos, mas deu tudo incrivelmente certo. No fim, o fiasco mesmo foi da transmissão da Rede Globo, mas confesse: alguém esperava algo diferente?
Logo que o Rio de Janeiro acordou no sábado, com os braços do Cristo Redentor abertos acolhendo milhares de ônibus vindos de toda parte do país, o dia era dos Stones. Vendedores ambulantes tinham de tudo: fitinhas, adesivos, placas de carro, bandanas, tatuagens e vários ziriguiduns e badulaques tendo os Stones como tema. Nas mãos de camelôs, camisetas “Eu Fui” saiam por R$ 15. Já na barraca oficial, era possível comprar uma camiseta da “Big Bang Tour 2006” por R$ 35. Enquanto quase todos os bares da Orla vendiam chopp Brahma, a cerveja oficial da festa stoniana era a Skol, talvez pelo prefixo do nome, um ótimo estandarte para o sotaque carioquês: “Trêssssssss sssssssssssssssssskol por cinco reaissssssssssssssss”, pregava a promoção ambulante. Durante o dia, um sol comportado de 32° respeitou a pele da turistada que embalava a torre de babel copacabanesca, misturando sotaque espanhol com inglês mais russo e francês e paulista e gaúcho e qualquer outro que você consiga imaginar.
Ao final da segunda meia-noite (era uma vez mais um horário de verão), a Policia Militar estimava um público de 1,3 milhões de pessoas. A organização tratou de colocar mais 700 mil na avenida Atlântica e na orla de Copa, arredondando o público presente para 2 milhões de pessoas. Se pensarmos que no mesmo momento em que o rock exaltava o barulho das guitarras em Copacabana, o bloco “Simpatia é Quase Amor” arrastava uma multidão em Ipanema – guiadas por um sensacional boteco trailer ambulante (a cerveja tem que ir aonde o povo está), brincava um folião – ao som de batuques, tamborins e gritos de carnaval, daria para dizer que naquele círculo de menos de 5 mil quilômetros havia, ao menos, uns 3 milhões de seres humanos (mais meio milhão de poodles). Quer saber: “O Rio de Janeiro continua lindo, o Rio de Janeiro continua sendo”…
Na parte que nos cabe, o palco montado nas areias de Copacabana, em frente ao badalado Copacabana Palace, com uma funcional passarela criada especialmente para que a banda saísse do hotel para o show, exibia dois pequenos telões laterais (esqueçam os outros seis telões alardeados pela prefeitura carioca, papo para gringo – não – ver), um enorme telão central de 13 metros de altura (só usado no show principal) e um som extremamente potente, cristalino. Após as apresentações do DJ Marcelo Janot e do grupo AfroReggae, os paulistas do Titãs entraram no palco dispostos a mostrar que no Brasil também se faz rock’n’roll. Para tanto, a banda se apoiou em hits antigos como “Sonífera Ilha”, “Família”, “Homem Primata”, “Bichos Escrotos”, “Lugar Nenhum”, “Polícia”, “Flores”, “Aa-Uu” e “Domingo”, e canções mais recentes como a bela balada “Epitáfio”, a cover “Aluga-se” (Raul Seixas) e “Vossa Excelência”, música de trabalho do álbum “MTV Ao Vivo”, lançado em 2005. Em uma apresentação de 40 minutos, o Titãs contou com um coro de 1 milhão de pessoas em uma boa apresentação de clássicos, mas que sente falta de boas canções novas.
Já os Stones pisaram no palco para apresentar a “A Bigger Bang Tour”, que divulga o álbum mais recente dos ingleses, o melhor disco deles em mais de duas décadas, cronologicamente, deste “Tattoo You”, de 1981. “A Bigger Bang’ foi representado por quatro canções das vinte que fizeram parte do repertório do show em Copacabana, e que irá virar um DVD, único registro da tour, até o meio do ano. Para se ter uma ideia, apenas os álbuns clássicos “Let it Bleed” (1969), “Sticky Fingers” (1971) e “Exile on Main St.” (1972) cederam duas músicas (cada um) para o show, sendo o restante do repertório variado entre discos de 1965 (“Get Off Of My Cloud”, do álbum “December’s Children”) até 1994 (“You Got Me Rocking”, do ótimo “Voodoo Lounge”). Entre os dois vértices, uma sucessão de hits e clássicos stonianos para lavar a alma do público, em um show que muitos consideram o último da banda em terras brasileiras.
A apresentação começou pontualmente às 21h45 com as velhuscas e empolgantes “Jumpin’ Jack Flash” e “It’s Only Rock ‘n’ Roll”. Emendou com a forte “You Got Me Rocking”, a balada bluezy “Tumbling Dice” e a primeira das novas canções, a ótima “Oh No, Not You Again”, com letra que sacaneia Luciana Giminez (“Oh não, você de novo / Fodendo com minha vida / Foi ruim da primeira vez / Melhor seguir meu próprio conselho / Tudo está perfeito / Mas eu sou alérgico / Ao seu olhar Mercenário”, diz a letra). Neste primeiro quarto do show já foi possível sacar a real da banda: Mick Jagger é mesmo o centro das atenções. Ele dança, corre, rebola e canta, mas canta muito. Têm controle total da plateia. Keith Richards posa de excessos, um cabra marcado para morrer, jogado em um canto do palco. Em muitas canções, Keith acaba obscurecido por Ron Wood, que solou muito, e bem. Já o baterista Charlie Watts é um gentleman, um lorde que bate nas peles de sua bateria como se estivesse fazendo um carinho no rosto de uma menina.
Na primeira troca de roupas da noite, Jagger volta com uma camisa azul sobre uma malha preta, e canta a linda “Wild Horses”, com Keith no violão e ótimos solos de Ron Wood. O momento de calma é sacudido pela funkeada “Rain Fall Down”, uma das melhores canções de “A Bigger Bang”, com Jagger na terceira guitarra auxiliando o riff forte da música, e o baixista Darryl Jones dando um show particular. Após o agito, o improviso de “Midnight Ramber”, com Jagger desta vez empunhando uma harmônica, e arrasando em 12 minutos de blues. A seqüência não poderia ser mais apropriada: “Nightime’s the Right Time”, cover homenagem para Ray Charles, que só foi tocada três vezes na “A Bigger Bang Tour”, e destacou o vozeirão e as belas pernas da backing vocal Lisa Fischer. O segundo quarto do show terminou com o momento “solo” de Keith Richards, emendando com seu vocal rouco a nova – e sixtie – “This Place Is Empty” (do deliciosamente constrangedor verso: “ora, vamos, docinho, desnude seus melões e me faça sentir em casa novamente”) com o sucesso “Happy”, esta última destacando um arrasador solo na slide guitar de Ron Wood.
“Miss You” fez a festa do público e serviu de cama para que a banda entrasse em seu mini palco, deixasse para trás a área vip (com 2400 convidados e 300 jornalistas) e chegasse na beira do gargarejo para tocar a potente “Rough Justice” (outra das canções novas), e as antigas “Get Off Of My Cloud” e “Honky Tonk Women”, esta última, segundo Bob Dylan, responsável pela levada de bateria mais fodaça da história do rock’n’roll. De volta ao superpalco, e com uma nova troca de roupa no script, Jagger se apresenta vestido de Demônio, com chapéu e capa, e canta, para alegria dos fãs, a canção mais brasileira de todo repertório stoniano: “Sympathy For The Devil”. Para o final do show, dois hits arrasa-quarteirão: “Start Me Up” e “Brown Sugar”. No bis, Mick Jagger exibiu uma camiseta com a bandeira do Brasil, estilo camelô, e conduziu o público em outro longo improviso, desta vez ao som da ótima “You Can’t Always Get What You Want”. O circo rock’n’roll se fechou, como era esperado, ao som de “(I Can’t Get No) Satisfaction”, com 1 milhão e 300 mil pessoas cantando e gritanto “Hey hey hey, that’s what I say”, um fecho de ouro para uma apresentação irretocável.
No fim das contas, não foi uma roubada, não morreu ninguém, e na hora do show, com os tênis enfiados na areia de Copacabana, foi possível assistir – e principalmente ouvir com perfeição – a maior banda de rock da história desfilar um repertório de exatos 40 anos de música (“Satisfaction” é de 1965, “Rough Justice” de 2005). Desconfio que até os traficantes da Rocinha (que dias antes estouraram a bala todas as caixas de luz de vários bairros periféricos, deixando milhares de pessoas na escuridão e sem energia elétrica) abriram uma exceção e respeitaram os ingleses, porque se há uma banda nessa história toda de rock’n’roll que merece respeito, essa banda é o Stones. Eles poderiam cuspir no monumento, mas, durante 120 minutos, se entregaram de corpo e alma para o público. Com quase todos os integrantes na casa dos 60 e poucos anos, fica difícil prever – e esperar – uma nova turnê mundial da banda. Se for assim, quem viu, viu. Quem não viu… pode se contentar com o DVD, mas ele deverá transmitir apenas uma partícula do que foi a emoção de se presenciar a história do rock sendo escrita na sua frente. E, melhor, fazer parte disso. Um show histórico, com pinta de “gran finalle”, como deveria ser.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.