Esses Você Precisa Ver:
“Noivo Neurótico, Noiva Nervosa” (“Annie Hall”)
“Manhattan”
‘Hannah e Suas Irmãs’ (“Hannah and Her Sisters”)
por Marcelo Costa
Toda vez que assisto a um filme de Woody Allen fico pensando o quanto meus amigos, meus vizinhos, a população da minha cidade (uns 18 milhões na última contagem), meu país, o mundo precisavam assistir a estes mesmos filmes. É uma bobagem, eu sei, mas toda vez que declamo minha paixão pelo cinema de Woody Allen, sinto que alguma coisa se desloca no espaço gravitacional ao meu redor. Às vezes acho que Allen parece culto demais para quem gosta de filmes populares e popular demais para quem gosta de cinema artístico. Entre uma vertente e outra, Allen sobrevive lançando religiosamente um filme por ano.
Mais do que o público, uma parcela da crítica parece ranhetizar o diretor. As desculpas são sempre as mesmas: Allen se repete, não tem mais graça, não tem mais a mesma inspiração de outros tempos. Para começo de conversa, a repetição é um efeito básico da obra de qualquer grande artista. E nem pode ser chamada de repetição. Cada artista tem a sua maneira de construir a sua arte, e Woody Allen filma como Woody Allen. É claro que o cinema do diretor deu uma bela caída nos anos 2000, principalmente na tríade composta por “O Escorpião de Jade” (diálogos cortantes, argumento tolo), “Dirigindo no Escuro” (filme de uma piada só, a última, muuuuuito boa) e “Igual a Tudo na Vida” (o ponto mais baixo da carreira do diretor), mas o velho ditado se confirma: “um filme mediano de Woody Allen é melhor do que 90% do que se vê em cartaz”.
“Qual a graça que existe em um filme de Woody Allen?”, você deve estar se perguntando. Woody filma o mundo real, tão violento quanto terno, trágico porém belo, tanto cruel quanto esperançoso. É preciso tato para encontrar beleza em uma rotina tão maluca quanto a que vivemos. Alguns cineastas se perdem afundando no lodo da pieguice ou da violência. Allen não. Ele se mantém na linha tênue que separa o caos da diversão. Ele não disfarça a verdade, no entanto a mostra por um prisma que chega a beirar o lirismo, quando não faz rir muito. Seu texto é, na grande maioria das vezes, impagável. Mestre em roteiros (já foi indicado ao Oscar em 15 oportunidades – ganhou em três), Allen costura histórias como ninguém e é o terror dos tradutores, que precisam condensar em algumas linhas na tela o ritmo alucinado dos personagens do cineasta, que muitas vezes sobrepõe vozes (como em diversas cenas em mesa), isso quando não disparam a falar.
Em um texto sobre Allen escrito para o UOL, o colunista João Pereira Coutinho cita o crítico norte-americano Peter Biskind, da revista Vanity Fair, que escreveu que todos os grandes cineastas de todos os tempos deixaram, no máximo, três ou quatro filmes clássicos que fizeram história e fama. Woody Allen não deixou dois. Não deixou três. Biskind arrisca 10: “Annie Hall”, “Manhattan”, “A Rosa Púrpura do Cairo”, “Broadway Danny Rose”, “Zelig”, “Hannah & Suas Irmãs”, “Crimes & Pecados”, “Maridos & Esposas”, “Tiros na Broadway” e “Desconstruindo Harry”. João Pereira Coutinho arrisca 12: todos esses dez e ainda “A Última Noite de Boris Grushenko” e “A Outra”. Eu arrisco 15 incluindo na lista “Match Point”, “Vicky Cristina Barcelona” e “Poderosa Afrodite” . Por fim, falo de três em especial. Três filmes para se assistir e procurar todos os outros filmes do diretor.
“Noivo Neurótico, Noiva Nervosa” (“Annie Hall”) – 1977
Começa de forma simples, com uma cena que vivo citando quando quero explicar o prazer de se estar vivo. Allen sozinho encara a câmera: “É uma antiga piada: duas velhinhas em um hotel fazenda. Uma diz: ‘A comida aqui é um horror’. A outra diz: ‘Eu sei, porções minúsculas’. É assim que eu vejo a vida: cheia de solidão, miséria, sofrimento e tristeza, e acaba rápido demais”. Com essa entrada cômica, lírica e primorosa, o humorista Alvy Singer (Allen) nos conta que seu relacionamento com Annie Hall (Diane Keaton) está caindo aos pedaços, e ele não sabe como isso aconteceu. O filme é uma reconstrução da história do casal.
Primeiro ponto importante: não há noivo nem noiva em Annie Hall. Ao se conhecerem, Alvy está saindo de seu segundo casamento, e logo opta (por pressão de Annie) por um apartamento maior, dividindo a casa com a nova namorada. A história dos dois personagens rende algumas das melhores cenas cômicas do cinema em todos os tempos. Em uma, após relembrar que beijou uma menina na sala de aula aos seis anos, Alvy questiona: “Às vezes me pergunto que fim deram meus colegas?”. Nisso, cada aluno de seis anos da sala responde: “Sou presidente da Encanadora Pinkus”, diz um menininho. “Era viciado em heroína, agora sou em metadona”, diz um garoto fofo. “Sou chegada em couro”, comenta uma garotinha de óculos. A força visual torna a piada irrepreensível. Imagine você mesmoa) aos seis anos e depois em hoje em dia.
Em “Annie Hall”, no entanto, existem mais umas 15 piadas sensacionais, todas elas inseridas com genialidade na trama. Só mesmo Woody Allen poderia resgatar o pensador Marshall McLuhan (interpretando a si mesmo) para desmascarar um falastrão em uma fila de cinema. “Se a vida fosse assim”, completa Alvy na cena clássica. Em seus curtos 94 minutos, “Annie Hall” analisa com sublime olhar o relacionamento do humorista Alvy com a jovem cantora Annie. Na verdade, Allen analisa praticamente todos os relacionamentos, do flerte à paixão, do casamento (no filme, simplificado por um “vamos morar juntos”) à desilusão romântica amparada em Groucho Marx e Freud: “Não quero ser sócio de nenhum clube que aceite alguém como eu de sócio”. Como acreditar em uma mulher que nos aceita como namorado? Pior: que nos aceita como marido!
“Annie Hall” foi indicado a cinco Oscars, tendo levado quatro: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Atriz (Diane Keaton) e Melhor Roteiro Original. Allen não foi receber as estatuetas pessoalmente, alegando que o compromisso que tem às segundas-feiras no Michael’s Pub (depois, Café Carlyle) de Nova York, como clarinetista de um conjunto de jazz tradicional, o impedia de comparecer ao evento. Além do Woody Allen e Diane Keaton, o elenco de “Annie Hall” conta com Paul Simon (Tony Lacey), Shelley Duvall (Pam), Christopher Walken (Duane Hall) e Jeff Goldblum. Para se transformar na comédia romântica perfeita, Allen soube segurar o freio e não ceder a um final casual romântico. A vida é bela, meu amigo, mas não é perfeita.
“Manhattan” – 1979
Filmado em preto e branco, “Manhattan” não é só uma declaração de amor de Allen à Nova York. É, também, uma declaração de amor ao próprio desamor. Allen é Isaac Davis, um escritor divorciado que, aos 42 anos, namora Tracy (Mariel Hemingway), uma jovem de 17. “Namoro uma garota que faz tarefa de casa”, diz ele bêbado e incomodado com a situação em uma mesa de bar, ao lado da jovem namorada e de um casal de amigos. Em uma cena capital, Tracy consegue provar por a + b que tudo está bem entre eles, mas mesmo assim Isaac não concorda: “Você é muito jovem para ser tão esperta desse jeito”, diz ele, contrariado.
Isaac passa o tempo renegando a paixão que Tracy sente por ele. “É charmoso e erótico, principalmente se a polícia não aparecer por aqui, mas você não deve fazer isso. Não é bom”, aconselha o escritor, que depois promete leva-la ao cinema no dia seguinte, recomendando que ela deve ir embora para casa: “Senão você fica um dia, no dia seguinte, e quando vê já está morando aqui”. A garota comenta: “Não seria uma má ideia”. Mesmo assim, Isaac despista e prefere dormir sozinho. “Sou uma pessoa difícil de conviver”, define.
A história de “Manhattan” acaba se transformando quando o escritor se apaixona pela amante de seu melhor amigo, Yale (Michael Murphy), que é casado. Em um primeiro momento, Mary Wilke (Diane Keaton) e Isaac se detestam. “Ela foi pedante”, diz ele para Tracy após o casal encontrar Mary e Yale em uma galeria de arte. “Se ela tivesse feito algum comentário sobre Bergman eu teria arrancando suas lentes de contato”, garante o escritor.
No meio da trama, Allen insere suas piadas mordazes: “Uma sátira mordaz é sempre melhor do que a força física”, diz uma mulher ao comentar um encontro de nazistas em Nova Jersey. “Força física é melhor com nazistas, pois é difícil satirizar um cara com botas brilhantes”, responde Isaac, irrepreensível. Isso tudo sem contar a ironia da ex-esposa de Isaac o ter ‘trocado’ por uma mulher. Lembre-se: estamos em 1979.
Após se reencontrarem em uma festa, e saírem caminhando e conversando por “Manhattan”, Mary e Isaac se apaixonam. O começo do romance é a desculpa para que Isaac rompa finalmente o romance com Tracy. E então Allen volta a analisar com sublime leveza, ironia e genialidade os relacionamentos humanos. Do “vamos morar juntos” ao “vamos nos separar”, o diretor exprime com maestria os percursos desastrados do amor. E o final clássico do filme é uma beleza trágico-romântica banhada em acaso e arrependimento.
“Hannah e Suas Irmãs” (“Hannah and Her Sisters”) – 1986
Tendo como pano de fundo a história de três irmãs, Allen volta a misturar romance com comédia alcançando um resultado genial. Os conflitos amorosos e existências de Hannah (Mia Farrow), Lee (Barbara Hershey) e Holly (Dianne Wiest) permitem ao diretor passear com maestria por desencontros românticos, desastres profissionais, desentendimentos familiares e, apesar de todos estes “des”, fazer o espectador rir ao final. Máximo da obra de Allen: a vida é uma droga, mas passa rápido demais. Anote.
Elliot, em interpretação que rendeu um Oscar para Michael Caine, é casado com Hannah, mas está perdidamente apaixonado por Lee, sua cunhada. Ele tenta se conter, mas a paixão é muito mais forte. Lee, por sua vez, é casada com Frederick, um professor de arte que tem o dobro de sua idade, e já percebeu que o marido de sua irmã a está “azarando”. “Elliot é louco por você. Ele sempre recomenda livros ou filmes e está interessado em você”, diz o maridão. O desenrolar dessa história é um dos pontos altos do filme.
Paralelamente, a terceira irmã, Holly, a caçula da família, está se curando de um vicio em drogas, e tentando descobrir algo para fazer na vida. “Hannah, você pode me emprestar US$ 2 mil para eu começar um novo negócio?”, pede ela para a irmã, que é dramaturga e está fazendo muito sucesso com sua última peça. “Não é para cocaína?”, pergunta, querendo saber se o destino do dinheiro será nariz adentro. Das três irmãs, a personalidade de April é a mais instável, algo que deve ter puxado um pouco da própria mãe das meninas, uma atriz que mesmo aos 70 e poucos anos se recusa a descartar a bebida e a cinta-liga.
E ainda temos Mickey (Woody Allen), que é diretor de um programa de TV, ex-marido de Hannah, e, sobretudo, um hipocondríaco nato. Ao fazer a sua visita semanal ao médico da família, Mickey descobre que pode estar ficando surdo. Mais: que pode ter um tumor no cérebro. Após passar duas semanas trágicas, e quase um ano buscando o sentido da vida (suas tentativas frustradas de ser católico ou hare-krishna são impagáveis), Mickey é “salvo” em uma sessão de cinema, durante a exibição de um filme dos irmãos Marx. A história toda, até chegar a este clímax, é de um lirismo que raramente se encontra em roteiros por ai.
“Hannah & Suas Irmãs” foi premiado com três Oscars, de Melhor Ator Coadjuvante (Michael Caine), Melhor Atriz Coadjuvante (Dianne Wiest) e Melhor Roteiro Original. Foi ainda indicado em outras 4 categorias: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Direção de Arte e Melhor Edição. Traz citações de e. e. Cummings (“Não sei o que você tem que me abre e me fecha / Somente algo em mim entende que a voz de seus olhos é mais profunda do que todas as rosas / Ninguém, nem me mesmo a chuva tem mãos tão pequenas”) e Tolstoi (“A única certeza absoluta que o homem tem é que a vida não tem sentido”). É um filme poético sem ser piegas, cômico e engraçado sem ser pastelão, inteligente sem soar culto demais. Uma obra prima para ser vista e revista várias vezes. Bem, da listinha de 15 da abertura deste texto, aqui estão três que você precisa ver. Se após estes três filmes você não estiver apaixonado (a) pelo cinema de Woody Allen, eu vou entender que, realmente, a vida não tem sentido. Mas tudo bem, você continua sendo meu amigo (a).
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
Leia também:
– Sobre todos os filmes de Woody Allen de 0 a 10, por Marcelo Costa (aqui)