por Marcelo Costa
“Não dá para ser esperto e amar ao mesmo tempo”, diz Bob Dylan em certo trecho do documentário “No Direction Home”. Com a frase, Dylan tentava explicar a implosão do relacionamento com a cantora Joan Baez, também entrevistada para o filme. Uma corruptela do pensamento do cantor poderia também dizer que não dá para ser genial e amado ao mesmo tempo. É parece ser isso que o diretor Martin Scorsese explicita nas três horas e meia de imagens antológicas de “No Direction Home”, que acaba de ganhar edição nacional em CD e DVD duplos.
Depois de produzir a elogiada série de filmes “The Blues”, Scorsese quis algo ainda maior: desvendar o mito Bob Dylan. “No Direction Home” foi feito exclusivamente para a televisão, é dividido em duas partes e centra foco no começo da carreira do cantor, seguindo até sua ascensão ao estrelado em 1966. Foi quando Dylan chocou seus fãs ao eletrificar o folk e abandonou gradualmente a imagem de cantor de protesto, associada ao folk singer Woody Guthrie e a canções como “Blowin’ In The Wind” e “Hard Rain”. Dylan tinha apenas 25 anos em 1966 quando saiu em turnê pelo mundo, sendo vaiado todas as noites assim que terminava o set acústico e começava o elétrico acompanhado pela The Band.
“No Direction Home” é exemplar ao acompanhar Bob Dylan em sua escalada para a fama. Dois anos separam os shows em cafés da Greenwich Village – em que o “cachê” era recebido em um cestinha de pão que passava de mão em mão pelos frequentadores da casa – das apresentações em lugares como o Madison Square Garden e o encerramento dos famosos Newport Folk Festival. Entre um e outro, um Dylan sonhador – e que se classificava como um “expedicionário da música – com muito senso de publicidade:
“Eu nasci em Dulluth, Minnesota, em 1941. Fui para Gallup, Novo México. Deste então morei em Iowa, Dakota do Sul, Kansas, Dakota do Norte, por um tempo. Comecei tocando piano em festas, quando tinha 14 anos. Arvella Grey, uma cantora de rua de Chicago, me ensinou o blues há uns quatro ou cinco anos. Conheci um cara chamado Mance Lipscomb, de Navasota, Texas. Ouvi sua música. Fui apresentado a ele por seu neto, um fã de rock and roll”. Esse era o release de apresentação de Dylan aos 19 anos. Tirando o local de nascimento é possível dizer que o resto é quase tudo mentira. Dylan sabia que precisava ter uma história, e tratou de cria-la. Sair de Minnesota e ir para o Novo México seria como ir de Porto Alegre para Manaus, duas vezes. Na época, Dylan tinha apenas 10 dólares no bolso.
O primeiro DVD enfoca o lado histórico da carreira de Dylan, suas influências, as primeiras músicas que ouviu (como a canção country “Drifting Too Far From Shore”), os primeiros cantores, gente como Hank Williams, Johnnie Ray (“Havia uma espécie de magia estranha na sua voz”), Muddy Watters, Gene Vincent & The Bluecaps, Odetta, entre outros, mas Dylan não se diz influenciado por apenas uma pessoa. “Foi o som que me influenciou. Não era propriamente quem. Era o som em si”, explica. E não só o som. Livros como “On The Road”, de Jack Keroauc, atores como James Dean e filmes como “O Selvagem”, com Marlon Brando, também moldaram o Dylan dos primeiros anos até a descoberta de Woody Guthrie.
Woody Guthrie é uma das lendas da música country norte-americana. Esquerdista e socialista, Guthrie se apresentava com um violão com a seguinte frase: “Essa máquina mata fascistas”. Lembre-se: estamos no final dos anos 50, começo dos 60 e, liderados pelo senador Joseph McCarthy, a justiça norte-americana persegue comunistas pelos EUA, seja no cinema, seja na música, no período que ficou conhecido como “caça às bruxas”. Dylan ficou fascinado por Guthrie. “Ele tinha um som bem característico. Além disso, ele dizia algo que acompanhava o som. Aquilo era bastante incomum para os meus ouvidos. Ele foi um radical. Suas músicas tinham tendência radical. Pensei: ‘É isso que quero cantar'”, diz.
No primeiro DVD, Scorsese deixa a história fluir, enxertando entre os relatos, pequenos trechos polêmicos de entrevistas com o público e de apresentações de Dylan pós 65. Já o segundo DVD é pura tensão. Dylan abandona as canções de protesto (no documentário, o músico chega a se contradizer algumas vezes sobre ser ou não um cantor de protesto), a ala folk e vai ao encontro da fama ancorado pelo sucesso do single “Like a Rolling Stone”. Neste trecho, há muitas semelhanças de “No Direction Home” com “Meeting People Easy”, documentário que flagra o Radiohead na estrada após o sucesso mundial do álbum “Ok Computer”. Além de trazer reconhecimento e dinheiro, a fama também cobra seu quinhão. No caso, os fãs de Dylan exigem o trovador dos primeiros anos, e abominam o formato de banda com que Dylan se apresenta após 65. No show, fãs gritam para que o músico volte pra casa, o chamam de traidor, Judas, e pedem: “Queremos o verdadeiro Dylan”. Exemplar são as sessões de entrevistas ao redor do mundo, com jornalistas despreparados desfilando perguntas idiotas.
Scorsese reúne material raro dos famosos Newport Folk Festival, e dezenas de imagens de backstage e shows. Fica parecendo que para onde quer que o músico fosse em 1965/1966, haveria uma câmera ligada. O diretor ainda entrevista pessoas importantes do cenário da época como os músicos Pete Seeger, Maria Muldaur e Al Kooper, a ex-namorada Suze Rotolo (fotografada ao lado de Dylan na capa de “Freewheelin”), o promotor de música folk Harold Leventhal, o cineasta DA Pennebaker (diretor do documentário “Don’t Look Back”, um dos mais famosos de Dylan) e o poeta beat Allen Ginsberg, além do próprio Bob Dylan, entre outros. O resultado é um filme histórico que começa de forma suave ao retratar os primeiros anos do compositor e termina de modo sombrio com gritos de “Judas” sendo direcionados para o músico em um show em Londres.
Entre os extras, aparições raras do cantor em apresentações de TV (destaque para o belíssimo registro de “Girl of The North Country” para uma TV canadense e Joan Baez interpretando “Love Is Just A Four Letter Word”), em shows e quartos de hotel completam o pacote de um documentário essencial para se vislumbrar a grandiosidade e a genialidade do mito Bob Dylan. O CD segue a linha das “Bootleg Series” do cantor (que já estão no número 7) e compila 28 músicas, sendo 26 versões nunca lançadas anteriormente. Gravações caseiras, versões ao vivo, takes alternativos: é tudo raridade e uma aula de rock and roll.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
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