por Rodrigo Damasceno
Quando começou a trabalhar em “Ada Ou Ardor, Crônica de uma Família”, vertido para o português por Jorio Dauster e lançado no Brasil pela Companhia das Letras, Vladimir Nabokov já era apontado como um dos autores mais importantes da segunda metade do século XX, escritor genial em duas línguas (russo, seu primeiro idioma, e inglês) e autor de pelo menos dois livros obrigatórios (“Lolita” e “Fogo Pálido”).
Enganado pela popularidade e “aparente” banalização de sua personagem ninfeta, é bem comum que o leitor se surpreenda ao decidir enfrentar um livro de Nabokov. Densidade, referências praticamente infusas, vocabulário rico e exagerado, temas sutis e, para a surpresa de alguns, orações um tanto longas. Essas, segundo os intelectuais espalham por aí – entre eles mesmos, é claro -, são as características principais das obras de Nabokov.
“Ada Ou Ardor”, vale dizer, é o romance em que tudo isso se potencializa. O tema, mais uma vez, é tabu. A narrativa, por outro lado, se destaca por encetar, de uma só vez, ficção científica, dramalhão familiar, literatura erótica, tratado filosófico, paródia moderna de romances clássicos (Flaubert e Tolstoi são reverenciados enquanto gente como Thomas Mann se afoga na acidez brutal do narrador) e um realismo desconcertante (talvez pelo fato de que seja possível considerar realista uma história que se passa num lugar chamado Antiterra e no qual os telefones – dorofones, na verdade – são movidos a água). O que se passa, resumidamente, são várias décadas de desencontros amorosos entre dois irmãos: Ada e Van Veen, apaixonados e dependentes um do outro sentimental e sexualmente desde que ele tinha 14 e ela 12 anos, quando passaram um verão juntos na mansão de Ardis, um local magistralmente descrito por Nabokov como o mais idílico e propício possível para a relação entre os dois primos (grau de parentesco que eles acreditavam ter, na época).
À primeira vista, a profusão de personages e vozes (a história é narrada por Van, já com 90 anos, em forma de memórias, ora em primeira, ora em terceira pessoa e, vez ou outra, ainda surgindo mais um narrador, que é a própria Ada comentando o texto de Van) torna o romance quase que impenetrável, mas a partir de certo momento o leitor encontra-se envolvido pelo teor labiríntico do texto, pelas metáforas intrincadas e imagens lúbricas criadas por Nabokov, um mestre nessas três belas formas de enganação e encantamento.
Ada e Van são crianças inteligentes, poliglotas, conhecedoras de arte e literatura, precoces em suas carreiras e seus amores. Por outro lado, são também indulgentes, egocêntricas e ambíguas. Assumindo o risco de que o leitor leve em consideração apenas a bela história de amor entre os dois irmãos, Nabokov pontua o livro com trechos que denotam todas as falhas e atrocidades cometidas pelos dois em nome desse amor, cuja maior vítima é Lucette, meia-irmã deles. De certa forma, a armadilha parece funcionar: muitas das críticas feitas ao livro partem do princípio de que a obra é por demais irreal, distante e indiferente quando, na verdade, o destaque é a linha tênue que demarca limite entre a paixão e a cegueira, a lascívia e a entrega indolente, a dedicação ao parceiro e a alienação, o amor completo dos primeiros momentos e a relação despedaçada e amarga na qual este amor se transforma após as primeiras decepções. A linha que o autor traça é hialina, mas de forma alguma imperceptível: pode até não ser vista, mas em algum momento tropeçamos nela.
Preocupações a respeito da “textura do tempo” são constantes ao longo de todo o romance. Van, polêmico filósofo, medita a respeito do binômio tempo-espaço, seja em forma de tratado filosófico, seja através de memórias embaraçadas e recorrentes ao longo da narrativa “convencional”. Já nonagenário, Van nota ter esquecido de tratar a respeito de um outro binômio: tempo-dor, o mais poderoso e incontornável, aquele que alcança incestuosos, intelectuais brilhantes, resenhistas e leitores.