texto de Danielle Consolino
Imaginem um cidadão com uma vida ordinariamente comum. Ele é deprimido, trabalha em um hospital como arquivista, passou por casamentos frustrados e em seu tempo livre percorre inúmeros brechós atrás de discos de jazz, quadrinhos e livros. Até aí, o máximo que se pode imaginar é que estamos falando de algum loser qualquer a vagar por uma grande cidade; se não estivéssemos falando do excêntrico Harvey Pekar.
Natural de Cleveland, Ohio, nos Estados Unidos, Harvey Pekar se consagrou como o criador das histórias em quadrinhos “American Splendor”, uma espécie de autobiografia do próprio Pekar publicada anualmente desde os idos 1976. Mais do que somente retratar o cotidiano de Pekar, “American Splendor” primou por ser a expressão humana e sincera de um obsessivo-compulsivo trabalhador de classe média baixa, em que cenas as quais testemunhava nas ruas, no hospital em que trabalhava ou em casa eram mescladas a divagações sobre as mais diversas questões de cunho político, existencial ou filosófico. Com uma boa dose de humor ácido, os quadrinhos foram pioneiros no gênero autobiográfico. Seu gosto por jazz e literatura, ainda, lhe rendeu inúmeras críticas publicadas em jornais e revistas.
No filme “Anti-herói Americano” (2003), de Shari Springer Berman e Robert Pulcini, é interessante notar a maneira como se combinaram ficção, histórias em quadrinhos e o gênero documental. Belamente ilustrado por Gary Leib e John Kuramoto, da produtora nova-iorquina Twinkle, a animação bem como as inserções do próprio Harvey criam um verdadeiro jogo de construção de personagens. Nele, o personagem Harvey dos quadrinhos, o homem Harvey, a ilustração Harvey e o protagonista Harvey (interpretado pelo ótimo Paul Giamatti, que ganhou grande destaque em 2004 por sua atuação em “Sideways – Entre Umas e Outras”) parecem se fundir para contarem uma história única, assim como ocorria com os próprios quadrinhos ilustrados a cada edição por um cartunista diferente (como o famoso Robert Crumb, de “Fritz The Cat”), dando assim facetas diferentes a esse anti-herói rabugento.
Aproveitando-se dessa fusão de gêneros, a versão cinematográfica nos coloca em contato com algumas pessoas de fundamental importância na vida de Pekar, como a esposa Joyce Brabner (interpretada por Hope Davis) e seus colegas de trabalho do hospital, como o nerd de carteirinha Toby Radloff (Judah Friedlander).
Outro ponto alto do filme é sua trilha sonora, marcada por várias lendas do jazz como Dizzy Gillespie e Jay McShann, e standarts como “My Favorite Things”, de John Coltrane e “Ain’t That Peculiar”, de Marvin Gaye, canção incluída no filme a pedido do próprio Pekar. Já a fotografia foi pensada a fim de que a parte narrativa lembrasse o naturalismo dos quadrinhos e de que a parte documental fosse construída a partir de composições plasticamente simples dentro de ambientes artificiais.
No fim das contas, “Anti-herói Americano” não será considerado um clássico daqui a alguns anos, nem um épico a contar a saga de uma personalidade fundamental da história americana… aliás, nem se proporia a sê-lo! Como relato sincero e criativo, o filme cumpre seu papel de mostrar-nos a vida – ou melhor, uma pequena parte dela – de um sujeito aparentemente banal tratada com muito humor e certo lirismo. Levou o Grande Prêmio do juri em Sundance e teve seu roteiro indicado ao Oscar. Diversão garantida.