texto por Marcelo Costa
“Minha paixão é a língua portuguesa”, disse Caetano Veloso para o público que lotou a terceira noite (sexta/28) do show “A Foreign Sound” no Tom Brasil Nações Unidas, em São Paulo. A frase surgiu no meio do show, após Caetano cantar uma longa seqüência de músicas em inglês e se preparar para apresentar a única música inédita do repertório do show, o sambinha “Diferentemente”. Porém, se a língua pátria é a paixão, “o inglês é o poder”, diz o músico logo depois. Balizado por estas duas hastes – a paixão e o poder -, Caetano apresentou seu novo projeto aos paulistanos, uma ode aos Estados Unidos via repertório do cancioneiro norte-americano.
“A Foreign Sound”, o show, é um passeio pelo disco com a inteligente inclusão de canções que usam a contradição como objeto de reforço. Não espere, então, ouvir sucessos de carreira, canções para se cantar e bater palmas. O repertório (ao mesmo tempo) inibe e convida a admiração. A platéia, lotada, saboreia o inusitado. Assim, “Não Tem Tradução”, canção de Noel Rosa de 1933 que abre o show, prega que “as rimas do samba não são i love you” e traz, na seqüência, “Baby”, que termina curiosamente com “leia na minha camisa: Baby, baby, i love you”. E “Baby” surge emendada, como um medley, com “Diana”, de Paul Anka, explicitando uma citação que Caetano havia usado de backing vocal ao final da versão da música cantada por Gal Costa no clássico disco “Tropicália”, de 1967.
Mesmo com as duas canções de quase domínio público vertidas em medley, a platéia mais observa que participa. Seguem-se, reverentes, “So in Love” (Cole Porter), “I Only Have Eyes For You” (Harry Warrens) e “Body and Soul” (conhecida na voz de Louis Armstrong), destacando o acompanhamento luxuoso de 21 membros da Orquestra Sinfônica de São Paulo regidos por Jaques Morelenbaum (completam o grupo o violão de Lula Galvão, o baixo de Jorge Helder, a percussão de Léo Reis, a guitarra de Pedro Sá e a bateria de Carlos Bala). Surge então Bob Dylan. De óculos e letra em punho, Caetano praticamente declama “It’s Alright, Ma (I’m Only Bleeding)”, de 1965, desconstruindo a melodia, optando pela estranheza em um arranjo que soa exagerado, mas ganha brilho com um forte (e arrebatador) riff de guitarra que Pedro Sá deixa flutuando pela atmosfera em um bom e estranho momento do show.
Após o dilúvio, a suavidade volta a marcar presença com “The Man I Love” de George & Ira Gershwin. Minutos de devoção depois, o público assovia e dá sinais de participação pela primeira vez na noite. É “Come As You Are”, um dos sucessos do álbum “Nevermind”, do Nirvana, o disco mais famoso do movimento – norte-americano – grunge. Pedro Sá conduz a balada fazendo na guitarra o que no Nirvana era contrabaixo. O público canta, tímido, mas canta. Ao quase final da música, Caetano levanta do banquinho pela primeira vez no show (e já era a oitava canção), simulando atirar no público com a arma imaginária que Kurt Cobain dizia não ter na letra da música. A performance arranca aplausos do público, que ovaciona, também, a mais paulista que americana “Feelings”, de Morris Albert.
Caetano, então, apresenta a sua única música inédita do repertório, um sambinha pra lá de bacana que explica que seu autor, “diferentemente de Osama e Condolezza”, não acredita em Deus. O passeio pela língua pátria rende uma declaração de amor a Nova York (via leitura de um trecho de seu livro “Verdade Tropical”, páginas 504/505: …’É completamente estimulante sentir-se a vontade na capital saxã do Império Mundial’…) e serve para relembrar Carmen Miranda (a primeira a cantar em língua portuguesa e conquistar os States, como não), em uma triste versão de “Adeus Batucada”. Com a benção de João Gilberto – “que tudo sabe e tudo ensina a todos” – surge uma versão da canção que Assis Valente compôs especialmente para Carmen Miranda cantar, mas ela não ousou gravar, deixando a batucada para os jovens Novos Baianos: Brasil Pandeiro (sintomático que em um show de canções norte-americanas, uma canção brasileira ateste que “o Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada”).
Em um exímio exercício de bate/assopra, Caetano brinca com suas dúvidas, em frente ao público, divertindo, entretendo e criando a sua arte. O exercício faz o músico explicar que é impossível acreditar que um disco de Caetano Veloso cantando standarts norte-americanos tenha chance nas paradas dos Estados Unidos, assim como “Fina Estampa” (seu disco em espanhol) não podia competir em vendagens com Christina Aguilera. A deixa permite análises: “Eu sou um cara oblíquo”, avalia Caetano, contando que quando gravou em espanhol, apenas quis ampliar o alcance de suas interpretações, mas sabia que não tinha como competir no mercado hispânico. Porém, os caminhos tortos fizeram o oblíquo Caetano encontrar o oblíquo cineasta Pedro Almodóvar. E dá-lhe “Cucurucucu Paloma”, irrepreensível.
O show caminha para o final, mas Caetano ainda exercita suas ligações oblíquas, unindo a No Wave (movimento novaiorquino do fim dos anos setenta) de uma ex-banda de Arto Lindsay (na minimalista e curtinha Detached) com o Caetano “Estrangeiro” produzido pelo próprio Arto, vertendo opiniões de famosos como Cole Porter, Paul Gauguin e Claude Levis-Strauss sobre o Rio de Janeiro, a cidade que o interlocutor “menos a conhecera, mais a amara, e é cego de tanto vê-la”, perfeito modo de validar seu modo de olhar ‘estrangeiro’ ao admirar o cancioneiro gringo. O golpe final com “The Carioca” (o Brasil visto – pelos gringos – e dançado por Ginger Rogers e Fred Astaire) não serve para arrematar a noite. Caetano ainda volta, emociona com uma bela versão de “Love Me Tender” (eternizada na voz de Elvis Presley) e ‘ameaça’, para alegria do público, uma sessão de “standarts brasileiros”, descendo as cortinas ao som de “Mamãe Eu Quero” (que chegou a ser gravada por um trio vocal norte-americano nos anos 50, as The Andrews Sisters).
Do embate entre a paixão pela língua portuguesa e o poder da língua inglesa surge “A Foreign Sound”, um show que não reúne sucessos como os de “Noites do Sertão Ao Vivo” (2001) (que trazia, entre outras, “Tropicália”, “Meia Lua Inteira” e “Menino do Rio”) ou “Prenda Minha” (1998) (que ultrapassou a marca de 1 milhão de cópias, sustentado pelo sucesso de “Sozinho”), mas que consegue brilho na estranheza de ver (e ouvir) standarts norte-americanos em arranjos à la Caetano, oblíquos, porém, bastante pessoais. É um show atípico, como é, alias, o próprio disco (segundo o próprio Caetano), mas bonito, muito bonito. Entre a paixão e o poder, sobrevive a musicalidade de Caetano Veloso, já não tão brasileira, nem americana, nem espanhola, mas mundial.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.