por Renata di Modrone
“A morte em Veneza” (“Morte a Venezia”, 1971) é uma visão do Kabuki ajustado a sinfonia de Mahler. Cento e vinte oito minutos do problema e do desejo, do amor platônico entre um homem mais velho e um belo adolescente; tratada em profunda análise psicológica e em extremo requinte de estilo dentro de um rigoroso teor artístico, na adaptação do romance concebido no umbral da Primeira Guerra Mundial.
A película, dirigida por Luchino Visconti, exprime ostensivamente o caráter de adaptação e não de reprodução da novela de Thomas Mann, imprimindo um pragmatismo por vezes infiel a obra literária. Direito inquestionável nas Artes! Visconti omite as primeiras dezesseis páginas das setenta e nove páginas da obra de Thomas Mann, porque não acredita que o monólogo interior desta seção teria precisão no filme, passando imediatamente a porção da novela que emula o interesse de Aschenbach em Tadzio; usando o artifício dos flashbacks que são incorporados na narrativa para explicar a motivação atrás da atração fatal de Aschenbach. Ao contrário do livro entretanto, a película nunca busca isolar Tadzio dentro do reino de interesses apenas criativos de Aschenbach. A força de Tadzio é posta como a imagem que evoca um relacionamento mais visceral e subseqüentemente mais ambíguo entre os dois.
A caracterização dos diálogos é dada através da correspondência entre Mahler (em quem Mann baseou parcialmente o caráter de Aschenbach) e Shönberg, onde os flashbacks são tão perturbadores quanto o siroco. Tentando elevar as tormentas do artista a estas conversações, com alusões a Nietzsche e a Schopenhauer, resultam freqüentemente mais como extratos da guia das notas de um penhasco ao confronto da idéia do belo e da própria estética. Aschenbach professa uma opinião no artista como o criador da beleza. Esta proposição é ovacionada por Alfred durante as seqüências do flashback. Corte de encontro à visão do belo adolescente Tadzio, sugestionada numa simetria complementar. Esta argumentação intrusiva e taciturnica atribuem a Tadzio uma posição meramente formal na desintegração de Aschenbach. É obscurecida abaixo desta roupa filosófica uma obsessão mais física.
A beleza ideal de Tadzio é trazida à tela no corpo de treze anos do belíssimo modelo e ator Björn Andressen. É impossível determinar o quanto esta equação de pederastia tenha jogado em surdina a aceitação do discurso do desejo contido na Morte em Veneza e com qual efeito.Quando a estranheza desta película é discutida está geralmente nos termos de uma oposição binária: um ou outro Aschenbach como o artista numa obsessão estética e espiritual terminal; ou um ou outro Aschenbach arrebatado pela paixão carnal pelo púbere.
Alguns escritores foram aos grandes elogios e outros refutaram e acusaram a homossexualidade salientada na película, responsabilizando a permissividade sexual por uma má interpretação dos sentimentos de Aschenbach para com Tadzio. Visconti salienta que a referência é muito mais ao platonismo em si do que a mera homossexualidade. Mesmo a obra literária de Thomas Mann, com todo o domínio do estilo e a finura da análise dos sentimentos não conseguiu escapar ilesa aos severos julgamentos, o escritor Per Hallström atacou: “A admiração sem limites que esta empresa temerária provocou um pouco em toda parte é, entre muitos outros, um fato comprometedor, que diz bastante da decadência espiritual da Europa no umbral da guerra de 1914”.
A rapsódia sobre a atração pelo belo adolescente Tadzio é posta de forma efusiva e ao mesmo tempo platônica. Poderia-se dissecar o artifício cinematográfico atrás das superfícies projetadas, mas seria uma extravagância. Andressen reflete uma beleza óbvia, beleza que descreve uma perspectiva do desejo.Meditações ilusórias que puderam atear fogo à palavra escrita, plano da queda antes de sua imagem.
Não importa comprovar o correto discurso filosófico da película; não importa o quanto velho é o homem; não importa que seja menor a beleza do sexo na tela; esta é uma película que não pode ser negada no seu modo. Não é tão existencial, nem simplesmente escabroso como julgam os detratores, mas é ao contrário mais inclinado ao erotismo lânguido, envolventemente espiritual e tensamente sensual.
“A morte em Veneza” é o escritório dianteiro de Tadzio querendo dos irmãos da Warner uma nomeação para o Oscar expurgado por não adaptarem a figura do menino para o papel de uma menina (“Lolita” diz ESTÁ BEM a hetero-pedofilia). O único toque compartilhado está na fantasia, a única declaração da afeição é mantida além do alcance da voz. Não fiador do olhar; Tadzio no jogo; na bandeja lenta da câmera, “A Morte em Veneza” é bordos do tecnicolor de Dirk Bogarde.
Uma evocação rica do amor que ousa não falar seu nome, do desejo e do seu gêmeo terminal, “Morte em Veneza” fala como o silêncio (= morte). Uma vez que Aschenbach arrepende-se em sua tentativa de fugir de Veneza e abandonar seu fascínio por Tadzio, o colapso do amacilamento do homem anuncia a presença da praga. As ruas se esvaziam e logo os turistas desaparecem, funcionando preferivelmente como pretexto para desinfetar no fumo de seus fogos o pútrido. Os estragos da cólera asiática avançam de modo devastador assim como a obsessão de Aschenbach que como a pestilência já não tem remédio, vaga perdida…
O carretel e a cara finais de Aschenbach estão nas ruínas, uma destruição que mascarada com a beleza recorda a seqüência da abertura com sua tímida parodia de uma rainha dandy do envelhecimento. Um reacionário reflexo, um mimesis, dando a voz ao mito do homossexual destrutivo do self (infringindo) o Sodom novo, uma tragédia velha. Duramente, vai esvaindo-se no momento que considera estas ligações que estão sendo desenhadas entre o sexo e a morte, sem pensar na epidemia da nossa própria era. Isto é, antes que estas incursões estivessem ascendentes, quebrando, para caírem afastadas antes do jogo claro da memória de Tadzio, balançando o alicerce das colunas.
O escritor alemão e autor da novela “A Morte em Veneza”, Thomas Mann:
Thomas Mann, grande e complexo escritor alemão, Prêmio Nobel de Literatura em 1929 por “Os Buddenbrook” (1901) e mentor de numerosos clássicos da literatura mundial (“A Montanha Mágica”, “A Morte em Veneza”, “O Doutor Fausto”, “Felix Krull” e outros). Nasceu em 6 de junho de 1874 na cidade de Lubeck, Alemanha.
Seu pai foi um rico importador e senador de origem alemã e a mãe possuía ascendência brasileira, provocando em Mann um choque entre a herança latina vibrátil materna e o racionalismo conferido pela fria autodisciplina paterna.
Seu pai morre subitamente no outono de 1891, à parte da herança concebida para Thomas não o obrigam a ganhar a vida por um bom tempo. Desposa a filha de um rico e famoso professor universitário, Kátia Pringesheim, companheira ideal (ensaísta e tradutora) que poupava Mann das preocupações cotidianas.
Em 1933, com a ascensão de Hitler e do Nazismo na Alemanha, Mann parte com a família para o exílio na Suíça, enquanto imigrante, é naturalizado cidadão tcheco, indo pouco tempo depois lecionar na Universidade de Princeton, nos EUA.Volta a Suíça, onde falece em 1955.
Quanto aos filhos de Thomas Mann, destaque para os ativistas gays, Érika Mann e Klaus Mann (contista e ensaísta respeitado na critica literária contemporânea) e também para Golo Mann (historiador apreciável, professor em Stuttgart).
Confissões póstumas de pendores homossexuais
Escreveu ele na sua autobiografia: “no elevador, quantas vezes quando entravam belos meninos eu tinha que esconder minha excitação física…” Esta citação reascendeu as discussões e os julgamentos quanto à obra mais polêmica e conhecida pelos leitores de Mann, “A Morte em Veneza (1912)”.
Objeto de desejo de um escritor no livro – e de um compositor no filme -, Tadzio, descobriu-se, teria realmente existido e inspirado Mann, que tinha pendores homossexuais. O seu nome real seria Wladyslaw Moes, de origem polonesa, e ele teriam estado em Veneza, de fato, no início do século, na mesma época em que Mann visitou o local. Moes leu o romance e identificou várias passagens com situações vividas por ele durante a viagem – inclusive a saída de sua família da cidade em virtude do surto de cólera. A história foi confirmada pelo tradutor de Mann para o polonês, Andrej Doegowski, na revista Twen. Em “Morte em Veneza”, como em outros romances de Mann, o “heroísmo da fraqueza” corre paralelo à “sedução pelo declínio” e consiste em resistir, pela disciplina, a tudo o que é “desmedido” e “caótico”.