por Marcelo Costa
Texto publicado na revista Rock Press em junho de 2002
Uma história dos tempos modernos
ou
Música, internet e autonomia artistica
ou
“Você precisa aprender a morrer se quiser continuar vivo”
A maioria já leu aqui, antes, mas custa nada rememorar. O Wilco, uma das melhores bandas dos últimos anos, gravou “Yankee Hotel Foxtrot” no primeiro semestre de 2001, sob encomenda da gravadora Reprise, subsidiária da poderosa AOL Time Warner. Álbum entregue, álbum recusado, contrato quebrado.
O bafafá correu tablóides, revistas especializadas chegando até a e-zines e discussões de mesa de bar. Defendendo sua cria, a banda abriu mão do apadrinhamento AOL Time Warner, pegou as gravações, liberou-as na web e a história se fez. Três milhões e meio de streamings depois e 200 mil visitantes acessando a página da banda na Web em setembro de 2001 para ouvir o álbum e, sabe-se lá como, ele foi parar no Audiogalaxy, para festa geral dos fãs e queda de cabelos da Reprise.
O resultado? Mesmo sem ter sido lançado em 2001, “Yankee Hotel Foxtrot” apareceu em várias listas de melhores do ano. Jeff Tweedy e banda saíram em tour logo em seguida e não demorou muito para que a gravadora que meses antes havia recusado “Yankee” fizesse uma contraproposta que, como era de se esperar, foi recusada pelo Wilco. Isso se chama autonomia artística. Quem ri por último sempre irá rir melhor.
Com o álbum debaixo dos braços, o Wilco chegou até a Nonesuch, um pequeno selo nova-iorquino cuja fama é proporcionalmente inversa ao seu tamanho, visto que é lar de gente como Emmylou Harris, Magnetic Fields, João Gilberto e Buena Vista Social Club. A fama do selo diz que seu presidente, Robert Hurwitz, só lança aquilo que gosta, ou seja, boa música. Vá lá entender, a Nonesuch é subsidiada pela AOL Time Warner.
Todo o caminho tortuoso enfrentado pelo Wilco valeu a pena. “Yankee” chega às prateleiras mundiais (no Brasil, ainda sem previsão de lançamento) do jeito que foi apresentado para os chefões da Reprise, em julho de 2001. E, por mais que todo mundo já tenha falado, inclusive nós mesmos, muita gente ainda quer saber: “Yankee” é tudo isso que comentam? Sim, caro leitor. É tudo isso e mais um pouco. Tem um sabor pop, mas não é popularesco. É exótico, mas não é extravagante. É poético, mas não é piegas. É dolorido, mas não é suicida. É sentimento e não mercadoria. E é amor e não paixão.
E é conceitual até o último segundo.
“Yankee Hotel Foxtrot”, ou simplesmente “YHF”, são denominadas as estações de rádio da agência de inteligência de Israel. Através de ondas acima do tráfego das estações de rádio comuns, Israel divulga os seus interesses aos seus agentes. A voz, sempre feminina, discursa em códigos, o que resulta em distorções de quem recebe as mensagens desconhecendo a combinação. Tweedy ampara-se nesta metáfora para dissertar todas as suas dúvidas acerca do tema central do álbum: a comunicação nos relacionamentos. Viver sempre falando em códigos com as pessoas que nos cercam é a acusação. Alguém discorda? Quase todas as canções carregam barulhos de rádios não sintonizadas. O álbum funciona como uma suíte dividida em 11 canções. Pela rádio YHF, Tweedy passa a sua visão dos códigos do amor, enquanto o zumbido de microfonia de rádio marca presença. Estática como uma tv fora do ar. Como um relacionamento terminado. Alguém consegue adivinhar o que o próximo está pensando? Não. Então por que tentamos? Ruídos.
Nos tempos modernos, em que o direcionamento de um trabalho artístico passa pela sala do marketing antes mesmo de ser composto, não deixa de ser tocante que uma banda defenda sua música com todas as armas que tem, no caso, com a pompa e a liberdade que a Internet possue. Sem dúvida, vivemos uma nova era. O mundo com nós o conhecíamos, acabou. Artigos antes impreteríveis como honestidade e esperança agora são raros. No mundo capitalista, o que manda é o que vende. Bem vindo ao novo mundo.
Mas, desculpe desapontar os felizes com a nova ordem, aqui e ali, vozes se erguem contra tudo isso. Vozes como a de Jeff Tweedy e seu Wilco. “I’ve got reservations / ‘Bout so many things but not about you” canta Tweedy na faixa que encerra um dos melhores álbuns desde sempre. Basta saber quem é você e de que lado você está.
I am trying to break your heart
Psicodelia pura. Efeitos e mais efeitos – guitarra e teclados – revezam-se com pratos de bateria na abertura da canção. O som vai morrendo quando uma batida de violão escudada pelo som de uma guitarra zumbindo toma à frente. A bateria entra, faz umas viradas e desaparece. O piano surge. A voz de Tweedy é melancólica e cansada. Ele assume ser um assassino na parte baixa da avenida, aceita quando ela o chama de bêbado e conclui no refrão: “I am trying to break your heart”. A abertura não poderia ser tão perfeita e tão anti-pop. E termina cheia de microfonias, como uma rádio não sintonizada (uma YHF?). Um épico de pouco mais de sete minutos.
Kamera
Batida leve a lá Big Star de “Third/Sisters Lovers” e o R.E.M. de “Out Of Time” em clima que também remete a “SummerTeeth”, o álbum anterior. No meio da canção, um tecladinho começa a rodear a melodia. A voz de Tweedy continua impregnada de melancolia, apesar da batida ‘happy’ do violão. A letra escancara. “For my family, tell I’m lost on the sidewalk”. No fim, o piano acompanha a melodia e Kamera serviria muito bem como primeiro single. “I’ve driven in the dark / With echoes in my heart / For my family, tell em I’m lost, yeah, I’m lost / You know it’s not okay”.
Radio Cure
Lenta, arrastada e cheia de efeitos, aqui e ali. Um piano tenta chamar a atenção no refrão. Jeff Tweedy canta como se o ar lhe incomodasse nos pulmões. A voz sai arrastada com cheiro de uísque. “Cheer up / honey I hope you can / there is something wrong with me / my mind is filled with silvery stars.
War on War
As guitarras acústicas voltam a acelerar a melodia, mas a voz de Tweedy continua escorrendo tristeza. Um riff perturbado de guitarra passeia pela canção, saturado, cheio de efeitos. O piano retorna doce, e o contraste ilumina esta guerra. O recado: “You have to learn how to die / If you wanna wanna be alive”. Acaba com alguém puxando o fio da aparelhagem e desligando tudo. Também lembra R.E.M.
Jesus, Etc.
Remete, de início, a “How To Fight Loneliness”, canção do álbum anterior. Violino e cravo embelezam o sublime arranjo que também remete aos galeses do Gorky’s Zygotic Mynci. Também tem potencial de single, bem… “Jesus don’t cry / you can rely on me honey / you can combine / anything you want”…
Ashes of American Flags
Outra canção que se arrasta em um arranjo pouco convencional. A bateria é lenta e pesada. A guitarra cheia de efeitos é distante. E a letra é simples e bela. Soa como um desabafo (cínico, claro) de quem caminha muito, mas sabe que “I can spend 3 dollars and 63 cents / On diet Coca Cola and unlit cigarettes” porque “All my lies are only wishes / I know I would die if I could come back new”. Final à la Pink Floyd “Wish You Were Here”.
Heavy Metal Drummer
Clima de boteco, com a bateria à frente (claro), afinal, “She fell in love with the drummer”. A letra é cínica e deliciosa. “I miss the innocence I’ve known / Playing Kiss covers beautiful and stoned / She lifted up her shirt at the battle of the bands / He twirled his sticks, she helped him to his van / She fell in love with the drummer”. É toda cadenciada com o violão conduzindo e um teclado que remete à Crystal Lake do Grandaddy encaminha a canção para o final.
I’m The Man Who Loves You
Clima à la Neil Young safra 72, com algo de “I Can’t Stand It”, do álbum anterior. A guitarra começa à frente, saturada em um riff nervoso. O violão vem por trás das microfonias e Jeff Tweedy tenta convencer a garota de que o amor que ele sente é tão simples que só de segurar a mão dela, seria compreendido. “I wanted when I started writing this letter to you / If I could you know I would just hold your hand and you’d understand / I’m the man that loves you”.
Pot Kettle Black
Mais microfonia na abertura, contrastando com a levada limpa da guitarra acústica (sim, os Stones de “Exile on Main Street”). Tweedy canta baixo e bem. Os efeitos só surgem no meio da música, assim como uma guitarra solo distante na mixagem. Um quase break morrendo em efeitos no meio da canção é o perfeito resumo do álbum. “Every songs is a comeback / every moments a litle bit later”.
Poor Places
Longa introdução com vocal e efeitos nos leva ao passado. É ali, remexendo seu baú de memórias, que o vocalista busca inspiração. “There’s bourbon on the breath of the singer you love so much / He takes all his words from the books you don’t read anyway”. Remete à Sargeant Peppers dos Beatles. Uma voz feminina ao fundo, perdida em meio ao barulho, sussura “Yankee Hotel Foxtrot” como código ao infinito, ou até onde as microfonias conseguirem chegar (Será que alguém distinguiu a codificação?).
Reservations
“Yankee Hotel Foxtrot” termina do mesmo jeito que começa. Uma faixa longa (outro épico de sete minutos), desconstruída, climática, melancólica, cheia de efeitos e de colagens, mas, também, arrebatadora e sublime. Piano a frente, e a voz de Jeff Tweedy escorrendo melancolia nas duas primeiras estrofes, para, com o voz em dobro, gritar o refrão desesperado:
How can I convince you it’s me I don’t like?
And not be so indifferent to the look in your eyes.
When I’ve always been distant, and I’ve always told lies for love
I’m bound by the choices so hard to make
Bound by these feelings so easy to fake
But none of this is real enough to take me from you
I’ve got reservations
‘Bout so many things but not about you
I know this wasn’t what you were wantin’ me to say
How can I get closer and be further away?
And the truth? It proves it’s beautiful to lie
I’ve got reservations
‘Bout so many things but not about you
Após três minutos e meio de melodia de deixar aqueles que amam com o coração em pedaços, a canção quase acaba, e uma coda surge e segue mais três minutos até morrer e encerrar o melhor álbum de 2001, 2002 e desde sempre. Se Jeff Tweedy estava tentando partir corações com suas dúvidas sobre as relações humanas, conseguiu.
– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
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– “Sky Blue Sky Tour Edition”, Wilco, por Marcelo Costa (aqui)
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– “Wilco (the album)”, Wilco: Jeff Tweedy conquista e ao mesmo tempo desaponta (aqui)
– “Once Around”, Autumn Defense, projeto de John Stirratt e Pat Sansone (aqui)
– Melhores da Década 00: “Yankee Hotel Foxtrot”, Wilco, no segundo lugar (aqui)
– “The Autumn Defense”, The Autumn Defense: música calma para corações roqueiros (aqui)