por Diego Fernandes
Hoje em dia é difícil apontar bandas que soem genuínas. Não me refiro a bandas que possuam um estilo 100% autêntico e inovador – isso é virtualmente impossível. O universo pop deriva necessariamente da maneira interligada e, até certo ponto, derivativa que envolve sua criação e difusão, e portanto música derivativa obviamente é a norma. Isso não é propriamente um defeito – como tenho míseros 21 anos, só posso supor a respeito de certas coisas, e uma das minhas suposições diz que, afora o fenômeno de massa e a transformação social ocasionada por Beatles, e, em menor escala, Rolling Stones e Stooges, as bandas nunca foram consideradas inteiramente originais em sua sonoridade.
Mesmo que sua criação musical se desse por vezes surrupiando linhas de baixo de obscuros bluesmen, ou mesmo harmonias vocais ‘emprestadas’ de grupos rhytm’n’blues e rockabilly, esses grupos criaram músicas tão memoráveis e influentes que ninguém que vive no mundo ocidental passa impune à sua influência. Nada é original como se possa imaginar, e nada está livre de se tornar uma cópia vendida com uma capa desbotada a 5 reais num camelô que desconhece Frank Zappa (“Aquele da ‘New York’?”).
Isto posto, o que nos leva a apontar uma banda como sendo do caralho?
Até onde eu sei, arte é algo extremamente subjetivo, e seus critérios de avaliação são ainda mais subjetivos. Música tem o poder de mudar sua vida – mas, até aí, comida integral, um colchão ortopédico e uma fita pornô também têm: basta que se permita. Padre Marcelo Rossi pode mudar sua vida. Supla. Mas que merda, até o Faustão pode mudar sua vida. O que realmente intriga é o fato de certos artistas se tornarem um marco e outros uma nota de rodapé.
De qualquer forma, essa introdução enfadonha toda é para chegar a dois irmãos esquisitos de Detroit, estado de Michigan (EUA), que, de algum modo bizarro e não inteiramente livre de controvérsia, conseguiram sintonizar o espírito do Led Zeppelin através da abordagem lo-fi do Pavement. Meg White (espancamento de bateria) e Jack White (guitarra burra, vocais desesperados e teclados tocados, aparentemente, com os cotovelos), os irmãos singelamente conhecidos como White Stripes. Existe um procedimento simples para se detectar uma banda como memorável ou não, que é basicamente:
1) Colocar o troço para tocar.
2) Esperar entre um e dois segundos até que a música comece (NOTA: se não for necessário esperar, você colocou no aparelho algum CD de emocore; pressione STOP e tente novamente com outro CD)
3) Observar os efeitos, que, em linhas gerais, podem ser:
a) tédio mortal,
b) raiva,
c) náusea,
d) pés marcando timidamente o ritmo,
e) luxúria,
f) “como esses caras fazem isso?”,
g) movimentos de mão emulando baquetas,
h) “como foi que eu nunca pensei em fazer isso?”.
Ao ouvir os três CDs que constituem a discografia dos irmãos White, recentemente lançados no Brasil pela Sum Records, é bem provável que o leitor sinta , em conjunção ou alternadamente, dos tópicos d) a f).
É algo a ser respeitado. Ou melhor, respeitado não: reverência é justamente a última coisa de que o rock precisa – algo a ser louvado. E como. Desta forma, o Scream & Yell oferece a você o (rufem os malditos tambores) o: GUIA FACILITADO PARA O BARULHO DOS WHITE STRIPES
White Stripes – WHITE STRIPES (1999)
Esse é a tosqueira primeva. A gênese. Onde tudo começou, etc. Tu pegou a ideia. Ótima, Ótima estréia. Primeiro contato do mundo com a pouco ortodoxa formação guitarra-bateria-e-não-mais-que-isso dos White Stripes. O vocal de Jack aqui se encontra em seu estado mais áspero e caricato, o que só vem a combinar com a produção crua do álbum. Existem ecos de toda comunidade indie americana aqui, e é inevitável uma certa comparação com os primeiros trabalhos da Jon Spencer Blues Explosion. Os irmãos White destrincham o blues-rock até o osso, deixando só o essencial: ritmo rudimentar, marcação simplória, lirismo falando sobre o amor perdido e um estilo de vida miserável. Adicione-se a isso doses cavalares de garagem (bateria ressonante de tontons e bumbos, camadas e mais camadas de distorção barata), e uma gana por soarem barulhentos que simplesmente não te deixam desgrudar o ouvido das caixas – o tal aspecto genuíno de que falei no começo. Em “Sugar Never Tasted So Good”, o vocal de Jack e o ritmo desacelerado entregam pela primeira vez uma grande fixação presente no som dos Stripes: Led Zeppelin, Yeah! Tivesse sido lançado na mesma época de “Slanted And Enchanted”, do Pavement (fixação óbvia em Velvet Underground) e de “Extra Width”, o segundo disco de Jon Spencer (fixação em Stones), seria considerado um álbum histórico e de igual influência. Aposto. Melhores momentos: “The Big Three Killed My Baby”, “Jimmy The Exploder”, e as covers bem situadas de Dylan e Robert Johnson, “One More Cup Of Coffee” e “Stop Breaking Down”, respectivamente.
White Stipes – DE STIJL (2000)
Até agora, o momento definitivo da dupla. A produção mais bem-cuidada tira parte da maldade embutida no disco de estréia, mas o som sai privilegiado. Os riffs aqui estão mais ganchudos e discerníveis, o que inevitavelmente põe a banda lado a lado com grandes nomes como Sebadoh e Soundgarden, que possuem em comum uma rara habilidade: fazer música que soa familiar sem parecer manjada. As credenciais da banda impressionam – harmonias vocais à la Beatles em algumas faixas, fúria pré-punk em outras, e, ainda, “Little Bird”, que é simplesmente a melhor canção calcada em slide de guitarra desde “In My Time Of Dying”, do grande Led Zep. Os momentos destinados a partir seu coração não desapontam, e, inacreditavelmente, partem seu coração (“Apple Blossom”, “Sister, Do You Know My Name?”, e, principalmente, “I’m Bound To Pack It Up’, uma canção acústica que parece extraída do terceiro disco de Page, Plant e cia.). Há um certo humor pueril/misógino na canção de abertura, “You’re Pretty Good Looking (For A Girl)”, o que só vem a conferir um charme adicional ao disco. Tente esquecer os riffs de “Death Letter” e “Hello Operator” e terá uma tarefa árdua pela frente. Boogie envenenado e injustamente ignorado – pelo menos até agora. Trecho de “Why Can’t You Be Nicer To Me?”, a melhor do disco: “Bem, o vento está soprando / Onde estou indo? / Pra fora de uma ponte e despencando / Ninguém me procura / No chão, agonizando / Ninguém reza por mim”.
Agora, isso sim é que é blues.
White Stripes – WHITE BLOOD CELLS (2001)
A aclamação definitiva. Embora seja um disco de qualidade supeiror a, digamos, qualquer outra coisa lançada no ano passado, ainda assim fica a sensação de que a inclusão do disco nas listas de melhores do ano em diversas publicações foi mais um meio de corrigir a enorme cagada que foi ignorar “De Stijl”. Não quero perder meu tempo pichando outras bandas, mas, após ouvir esse disco, é possível que você olhe para “Is This It“, dos Strokes, e pense “Acho que vou ter que tocar isso daqui fora. Simplesmente não tem propósito. Oh, que tolo(a) eu fui! Oh!”. Pra começo de conversa, é o disco mais experimental da dupla. Mas calma, não espere nenhuma incursão pelo pós-rock ou pela música cubana de raiz. De qualquer forma, aquela levada só voz-e-bateria que se houve em “Little Room” e “The Union Forever” é algo inédito na (curta) história dos Stripes. Aliás, nessa última, o vocal de Jack atinge um grau de crueza e fúria adolescente como não se ouvia desde que Kurt Cobain concebeu “In Utero“, em vias de se suicidar e no limiar de se perder completamente. Existem várias baladas, oscilando entre o folk (“We’re Going To Be Friends”), a beatlemania (“I’m Finding It Harder To Be A Gentleman”, “The Same Boy You’ve Always Known”) e uma verve setentista indefinível (“Offend In Every Way”, “I Can’t Wait”). E, claro, existem as porradas às quais o sujeito que gosta de ouvir os Stripes se habituou a ouvir e simplesmente não passa sem (“Dead Leaves And The Dirty Ground”, que abre o disco majestosamente, “I Think I Smell A Rat”, aterradora, “Expecting”, travadaça, “Aluminum”, que beira o metal bluesy do Sabbath, “Now Mary”, meio Pixies, só que com acento country, e “Hotel Yorba”, a mais alegre). O final, “This Protector”, fosse cantado em dueto por Lennon e McCartney, seria uma das grandes canções dos Beatles, recheada de pianos. Sem exageros. No geral, pode-se dizer, que, enquanto o disco de estréia aponta para a podreira como alvo principal, e o segundo para uma sucessão de riffs cabulosos e inesquecíveis, “White Blood Cells” procura acertar a medida com um refinamento que passa quilômetros distante de parecer bunda-mole. Me arrisco a dizer: brilhante.
Os irmãos White são excêntricos – só se apresentam vestidos em três cores (a saber: branco, vermelho e preto). Sua música – o que realmente importa – , todavia, está longe de ser bidimensional ou restrita como sua opção de vestiário. É policromática, vívida, berrante, até. O suficiente para encagaçar o consumidor indie médio. As fichas estão aí, aposte em quem achar mais conveniente – eu aposto nos Stripes.