Lygia
Fagundes Telles
Se
eu tivesse que escolher apenas um escritor de tudo que li e amei
na vida, este escritor seria Lygia Fagundes Telles. Parte da paixão
por literatura que me tomou na infância/adolescência
surgiu com leituras divertidas da série de crônicas
"Para Gostar de Ler" (editora Ática, 1980) e dos contos
de Lygia Fagundes Telles.
Escrevendo textos no limite entre a realidade e a ficção,
Lygia narra desencontros, desejos, lembranças, solidão.
Mais. Conduz o leitor ao território do realismo fantástico
em viagens inesquecíveis.
O livro que gastei as páginas de tanto ler foi uma antologia
de contos de 1971 chamada "Seleta". Está fora de catálogo,
mas é muito fácil de se encontrar em sebos. "Seleta"
é sensacional porque além dos contos, traz prefácio
e notas da professora Nelly Novaes Coelho comentando a estrutura
narrativa e conceitual de cada conto. Os comentários mostram
a grandiosidade dos escritos de Lygia e como funciona os pensamentos
da escritora.
Entre meus preferidos ainda aparecem os romances "Ciranda de Pedra"
(1954), "As Meninas" (1973, que, inclusive, virou filme), e os
livros de contos "Antes do Baile Verde" (1970) e "A Noite Escura
e Mais Eu" (1996), todos relançados pela editora Rocco
com preços variando entre R$ 12,00 e R$ 29,00.
Uma dica bacana é a coletânea "Pomba Enamorada ou
uma História de Amor e Outros Contos Escolhidos", da série
L&PM POCKET, com alguns dos melhores contos da escritora por
um preço bastante acessível (R$ 13). São
17 contos em que se destacam a o realismo fantátisco de
"A Caçada", o retrato perfeito da dor em "As Pérolas",
a poesia sonhadora de "Lua Crescente em Amsterdã" (que
acabei adaptando para o teatro e interpretando com uma amiga em
um trabalho de faculdade) e a genialidade de "Venha Ver o Por
do Sol" e "As Formigas", os dois últimos, na seqüência
desta página.
Marcelo Costa
Editor S&Y
Venha Ver o Por do Sol
Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava,
as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria
e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento,
coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças
brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única
nota viva na quietude da tarde.
Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro,
metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos
e desalinhados, tinham um jeito jovial de estudante.
Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.
- Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro
num lugar destes. Que idéia, Ricardo, que idéia!
Tive que descer do taxi lá longe, jamais ele chegaria aqui
em cima.
Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.
- Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente
e agora me aparece nessa elegância me aparece nessa elegância...Quando
você andava comigo, usava uns sapatões de sete-léguas,
lembra?
- Foi para falar sobre isso que você me fez subir até
aqui?- perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro.-
Hem?!
- Ah, Raquel...- e ele tomou-a pelo braço rindo.
- Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns
cigarrinhos pilantras, azul e dourado...Juro que eu tinha que
ver uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então
fiz mal?
- Podia Ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara
a voz – E que é isso aí? Um cemitério?
Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar
o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.
- Cemitério abandonado, meu anjo. Vivo e mortos, desertaram
todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas
brincam sem medo – acrescentou, lançando um olhar às
crianças rodando na sua ciranda. Ela tragou lentamente.
Soprou a fumaça na cara do companheiro. Sorriu. - Ricardo
e suas idéias. E agora? Qual é o programa?
Brandamente ele a tomou pela cintura.
- Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada
aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr
do sol mais lindo do mundo.
Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça
para trás numa risada.
- Ver o pôr do sol!...Ah, meu Deus...Fabuloso, fabuloso!...Me
implora um último encontro, me atormenta dias seguidos,
me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez,
só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do
sol num cemitério...
Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado
em falta.
- Raquel minha querida, não faça assim comigo. Você
sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei
mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora
numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive
espiando pelo buraco da fechadura...
- E você acha que eu iria?
- Não se zangue, sei que eu iria, você está
sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos
conversar um instante numa rua afastada...- disse ele, aproximando-se
mais. Acariciou-lhe o braço com s pontas dos dedos. Ficou
sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se
formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques
de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não
era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo
sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio.
Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento –Você
fez bem em vir.
- Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar
alguma coisa num bar?
- Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.
- Mas eu pago.
- Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio
porque é de graça e muito decente, não pode
haver passeio mais decente, não concorda comigo? Até
romântico.
Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.
- Foi um risco enorme Ricardo. Ele é ciumentíssimo.
Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos,
então sim, quero ver se alguma das suas fabulosas idéias
vai me consertar a vida.
- Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero
que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais
discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente
abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos
gonzos gemeram. – Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá
que estivemos aqui.
- É um risco enorme, já disse . Não insista
nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não
suporto enterros.
- Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir
a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é
enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem
comigo, pode me dar o braço, não tenha medo...
O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de Ter-se
alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrando-se
ávido pelos rachões dos mármores, invadira
alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com a
sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos
vestígios da morte. Foram andando vagarosamente pela longa
alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como
uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas
sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir
como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade
por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões
de retratos esmaltados.
- É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi
um cemitério mais miserável, é deprimente
– exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção
de um anjinho de cabeça decepada.- Vamos embora, Ricardo,
chega.
- Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê?
Não sei onde foi que eu li, a beleza não está
nem na luz da manhã nem na sombra da tarde, está
no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade.
Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você
se queixa.
- Não gosto de cemitério, já disse. E ainda
mais cemitério pobre.
Delicadamente ele beijou-lhe a mão.
- Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.
- É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas
não quero me arriscar mais.
- Ele é tão rico assim?
- Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até
o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até
o Oriente, meu caro...
Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina
rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A
fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu,
envelhecida. Mas logo o sorrisso reapareceu e as rugazinhas sumiram.
- Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?
Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.
- Sabe Ricardo, acho que você é mesmo tantã...Mas,
apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que
ano aquele! Palavra que, quando penso, não entendo até
hoje como agüentei tanto, imagine um ano...
- É que você tinha lido A dama das Camélias,
ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que
romance você está lendo agora. Hem?
- Nenhum- respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se
para ler a inscrição de uma laje despedaçada:
- A minha querida esposa, eternas saudades- leu em voz baixa.
Fez um muxoxo.- Pois sim. Durou pouco essa eternidade.
Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.
Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não
se encontra mais a menor intervenção dos vivos,
a estúpida intervenção dos vivos. Veja- disse,
apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita
de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra.
Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois
as folhas...Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade,
nem o nome sequer. Nem isso.
Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.
- Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti
muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo
um cara como você podia me fazer divertir assim – Deu-lhe
um rápido beijo na face.- Chega Ricardo, quero ir embora.
- Mais alguns passos...
- Mas este cemitério não acaba mais, já andamos
quilômetros! – Olhou para atrás. – Nunca andei tanto,
Ricardo, vou ficar exausta.
- A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio – lamentou
ele, impelindo-a para frente. – Dobrando esta alameda, fica o
jazigo da minha gente, é de lá que se vê o
pôr do sol. – E, tomando-a pela cintura: - Sabe, Raquel,
andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima.
Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha
mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde
já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos
com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas,
fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.
- Sua prima também?
- Também. Morreu quando completou quinze anos. Não
era propriamente bonita, mas tinha uns olhos...Eram assim verdes
como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel,
extraordinário como vocês duas...Penso agora que
toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos,
como os seus.
- Vocês se amaram?
- Ela me amou. Foi a única criatura que...- Fez um gesto.
– Enfim não tem importância.
Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o
- Eu gostei de você, Ricardo.
- E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?
Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.
- Esfriou, não? Vamos embora.
- Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.
Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma
trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço
de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a
abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes
enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro
do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma
toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina
ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços
da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já
rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém
colocara sobre os ombro do Cristo. Na parede lateral, à
direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma
escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba.
Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo
de leve naqueles restos da capelinha.
- Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve
aqui?
Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico.
- Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores
nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo?
- Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério
é precisamente esse abandono, esta solidão. As pontes
com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total.
Absoluta.
Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras
de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões
se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito
retângulo cinzento.
- E lá embaixo?
- Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas
raízes. Pó, meu anjo, pó- murmurou ele. Abriu
a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no
centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como
se fosse puxá-la. – A cômoda de pedra. Não
é grandiosa?
Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.
- Todas estas gavetas estão cheias?
- Cheias?...- Sorriu.- Só as que tem o retrato e a inscrição,
está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe,
aqui ficou minha mãe- prosseguiu ele, tocando com as pontas
dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da
gaveta.
Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor
na voz.
- Vamos, Ricardo, vamos.
- Você está com medo?
- Claro que não estou é com frio. Suba e vamos embora,
estou com frio!
Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões
na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para
o medalhão frouxamente iluminado:
- A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia
em que tirou esse retrato. Foi umas duas semanas antes de morrer...
Prendeu os cabelos com uma fita azul e vejo se exibir, estou bonita?
Estou bonita?...- Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente.-
Não, não é que fosse bonita, mas os olhos...Venha
ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos
seus.
Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em
nada.
- Que frio que faz aqui. E que escuro, não estou enxergando...
Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.
- Pegue, dá para ver muito bem...- Afastou-se para o lado.-
Repare nos olhos.
- Mas estão tão desbotados, mal se vê que
é uma moça...- Antes da chama se apagar, aproximou-a
da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente.-
Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil oitocentos
e falecida...- Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel
– Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há
mais de cem anos! Seu menti...
Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou
em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a
escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola
fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso.
- Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso?
Brincadeira mais cretina! – exclamou ela, subindo rapidamente
a escada. – Não tem graça nenhuma, ouviu?
Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola
de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a
da fechadura e saltou para trás.
- Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou,
torcendo o trinco.- Detesto esse tipo de brincadeira, você
sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça
de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!
- Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem
uma frincha na porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem
devagarinho. Você terá o pôr do sol mais belo
do mundo.
Ela sacudia a portinhola.
- Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente,
imediatamente!- Sacudiu a portinhola com mais força ainda,
agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante,
os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso.- Ouça,
meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir
mesmo, vamos, abra...
Ele já não sorria. Estava sério, os olhos
diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas
abertas em leque.
- Boa noite, Raquel.
- Chega, Ricardo! Você vai me pagar!...- gritou ela, estendendo
os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo.-
Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos!- exigiu,
examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades
cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo
o olhar até a chave que ele balançava pela argola,
como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face
sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi
escorregando.
- Não, não...
Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu
os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas.
- Boa noite, meu anjo.
Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles
houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão
embrutecida.
- Não...
Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido.
No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando
úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho,
inumano:
- Não!
Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram,
semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois,
os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem
das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do
cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço.
Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado.
Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao
longe brincavam de roda.
As
formigas
Quando
minha prima e eu descemos do táxi, já era quase
noite. Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas
ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma
pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço
da prima.
- É sinistro.
Ela me impeliu na direção da porta. Tínhamos
outra escolha? Nenhuma pensão nas redondezas oferecia
um preço melhor a duas pobres estudantes com liberdade
de usar o fogareiro no quarto, a dona nos avisara por telefone
que podíamos fazer refeições ligeiras com
a condição de não provocar incêndio.
Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina.
- Pelo menos não vi sinal de barata - disse minha prima.
A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa
da graúna. Vestia um desbotado pijama de seda japonesa
e tinha as unhas aduncas recobertas por uma crosta de esmalte
vermelho-escuro, descascado nas pontas encardidas. Acendeu um
charutinho.
- É você que estuda medicina? - perguntou soprando
a fumaça na minha direção.
- Estudo direito. Medicina é ela.
A mulher nos examinou com indiferença. Devia estar pensando
em outra coisa quando soltou uma baforada tão densa que
precisei desviar a cara. A saleta era escura, atulhada de móveis
velhos, desparelhados. No sofá de palhinha furada no
assento, duas almofadas que pareciam ter sido feitas com os
restos de um antigo vestido, os bordados salpicados de vidrilho.
Vou mostrar o quarto, fica no sótão - disse ela
em meio a um acesso de tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos.
- O inquilino antes de vocês também estudava medicina,
tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui, estava sempre
mexendo neles.
Minha prima voltou-se:
- Um caixote de ossos?
A mulher não respondeu, concentrada no esforço
de subir a estreita escada de caracol que ia dar no quarto.
Acendeu a luz. O quarto não podia ser menor, com o teto
em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos
que entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma
cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde
o teto quase se encontrava com o assoalho, estava um caixotinho
coberto com um pedaço de plástico. Minha prima
largou a mala e, pondo-se de joelhos, puxou o caixotinho pela
alça de corda. Levantou o plástico. Parecia fascinada.
- Mas que ossos tão miudinhos! São de criança?
- Ele disse que eram de adulto. De um anão.
- De um anão? é mesmo, a gente vê que já
estão formados... Mas que maravilha, é raro a
beça esqueleto de anão. E tão limpo, olha
aí - admirou-se ela. Trouxe na ponta dos dedos um pequeno
crânio de uma brancura de cal. - Tão perfeito,
todos os dentinhos!
- Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode
ficar com ele. O banheiro é aqui ao lado, só vocês
é que vão usar, tenho o meu lá embaixo.
Banho quente extra. Telefone também. Café das
sete às nove, deixo a mesa posta na cozinha com a garrafa
térmica, fechem bem a garrafa recomendou coçando
a cabeça. A peruca se deslocou ligeiramente. Soltou uma
baforada final: - Não deixem a porta aberta senão
meu gato foge.
Ficamos nos olhando e rindo enquanto ouvíamos o barulho
dos seus chinelos de salto na escada. E a tosse encatarrada.
Esvaziei a mala, dependurei a blusa amarrotada num cabide que
enfiei num vão da veneziana, prendi na parede, com durex,
uma gravura de Grassman e sentei meu urso de pelúcia
em cima do travesseiro. Fiquei vendo minha prima subir na cadeira,
desatarraxar a lâmpada fraquíssima que pendia de
um fio solitário no meio do teto e no lugar atarraxar
uma lâmpada de duzentas velas que tirou da sacola. O quarto
ficou mais alegre. Em compensação, agora a gente
podia ver que a roupa de cama não era tão alva
assim, alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro
do caixotinho. Examinou- a. Tirou uma vértebra e olhou
pelo buraco tão reduzido como o aro de um anel. Guardou-as
com a delicadeza com que se amontoam ovos numa caixa.
- Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não
falta nenhum ossinho, vou trazer as ligaduras, quero ver se
no fim da semana começo a montar ele.
Abrimos uma lata de sardinha que comemos com pão, minha
prima tinha sempre alguma lata escondida, costumava estudar
até de madrugada e depois fazia sua ceia. Quando acabou
o pão, abriu um pacote de bolacha Maria.
- De onde vem esse cheiro? - perguntei farejando. Fui até
o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. - Você não
está sentindo um cheiro meio ardido?
- É de bolor. A casa inteira cheira assim - ela disse.
E puxou o caixotinho para debaixo da cama.
No sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido
no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama
da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou muito sério,
vendo-a dormir. Eu quis gritar, tem um anão no quarto!
mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada no chão,
ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto do assoalho.
- Que é que você está fazendo aí?
- perguntei.
- Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas.
Tão decididas, está vendo?
Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam
em trilha espessa pela fresta debaixo da porta, atravessavam
o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e desembocavam
lá dentro, disciplinadas como um exército em marcha
exemplar.
- São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não
tem trilha de volta, só de ida - estranhei.
- Só de ida.
Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama.
- Está debaixo dela - disse minha prima e puxou para
fora o caixotinho. Levantou o plástico. - Preto de formiga.
Me dá o vidro de álcool.
- Deve ter sobrado alguma coisa aí nesses ossos e elas
descobriram, formiga descobre tudo. Se eu fosse você,
levava isso lá pra fora.
- Mas os ossos estão completamente limpos, eu já
disse. Não ficou nem um fiapo de cartilagem, limpíssimos.
Queria saber o que essas bandidas vem fuçar aqui.
Respingou fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida,
calçou os sapatos e como uma equilibrista andando no
fio de arame, foi pisando firme, um pé diante do outro
na trilha de formigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o cigarro.
Puxou a cadeira. E ficou olhando dentro do caixotinho.
- Esquisito. Muito esquisito.
- O quê?
- Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro
que até calcei ele com as omoplatas para não rolar.
E agora ele está aí no chão do caixote,
com uma omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui?
- Deus me livre, tenho nojo de osso. Ainda mais de anão.
Ela cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com
o pé e levou o fogareiro para a mesa, era a hora do seu
chá. No chão, a trilha de formigas mortas era
agora uma fita escura que encolheu. Uma formiguinha que escapou
da matança passou perto do meu pé, já ia
esmagá-la quando vi que levava as mãos a cabeça,
como uma pessoa desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do assoalho.
Voltei a sonhar aflitivamente mas dessa vez foi o antigo pesadelo
em torno dos exames, o professor fazendo uma pergunta atrás
da outra e eu muda diante do único ponto que não
tinha estudado. Às seis horas o despertador disparou
veementemente. Travei a campainha. Minha prima dormia com a
cabeça coberta. No banheiro, olhei com atenção
para as paredes, para o chão de cimento, a procura delas.
Não vi nenhuma. Voltei pisando na ponta dos pés
e então entreabri as folhas da veneziana. O cheiro suspeito
da noite tinha desaparecido. Olhei para o chão: desaparecera
também a trilha do exército massacrado. Espiei
debaixo da cama e não vi o menor movimento de formigas
no caixotinho coberto.
Quando cheguei por volta das sete da noite, minha prima já
estava no quarto. Achei-a tão abatida que carreguei no
sal da omelete, tinha a pressão baixa. Comemos num silêncio
voraz. Então me lembrei:
- E as formigas?
- Até agora, nenhuma.
- Você varreu as mortas?
Ela ficou me olhando.
- Não varri nada, estava exausta. Não foi você
que varreu?
- Eu?! Quando acordei, não tinha nem sinal de formiga
nesse chão, estava certa que antes de deitar você
juntou tudo... Mas então quem?!
Ela apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica
quando se preocupava.
- Muito esquisito mesmo. Esquisitíssimo.
Fui buscar o tablete de chocolate e perto da porta senti de
novo o cheiro, mas seria bolor? Não me parecia um cheiro
assim inocente, quis chamar a atenção da minha
prima para esse aspecto mas estava tão deprimida que
achei melhor ficar quieta. Espargi água-de-colônia
flor de maçã por todo o quarto (e se ele cheirasse
como um pomar?) e fui deitar cedo. Tive o segundo tipo de sonho
que competia nas repetições com o sonho da prova
oral: nele, eu marcava encontro com dois namorados ao mesmo
tempo. E no mesmo lugar. Chegava o primeiro e minha aflição
era levá-lo embora dali antes que chegasse o segundo.
O segundo, desta vez, era o anão. Quando só restou
o oco de silêncio e sombra, a voz da minha prima me fisgou
e me trouxe para a superfície. Abri os olhos com esforço.
Ela estava sentada na beira da minha cama, de pijama e completamente
estrábica.
- Elas voltaram.
- Quem?
- As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada.
Estão todas aí de novo.
A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo
percurso da porta até o caixotinho de ossos por onde
subia na mesma formação até desformigar
lá dentro. Sem caminho de volta.
- E os ossos?
Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo.
Aí é que está o mistério. Aconteceu
uma coisa, não entendo mais nada! Acordei pra fazer pipi,
devia ser umas três horas. Na volta senti que no quarto
tinha algo mais, está me entendendo? Olhei pro chão
e vi a fila dura de formiga, você lembra? não tinha
nenhuma quando chegamos. Fui ver o caixotinho, todas trançando
lá dentro, lógico, mas não foi isso o que
quase me fez cair pra trás, tem uma coisa mais grave:
é que os ossos estão mesmo mudando de posição,
eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a pouco
eles estão... estão se organizando.
- Como, organizando?
Ela ficou pensativa. Comecei a tremer de frio, peguei uma ponta
do seu cobertor. Cobri meu urso com o lençol.
- Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não
deixei ele assim. Agora é a coluna vertebral que já
está quase formada, uma vértebra atrás
da outra, cada ossinho tomando seu lugar, alguém do ramo
está montando o esqueleto, mais um pouco e... Venha ver!
- Credo, não quero ver nada. Estão colando o anão,
é isso?
Ficamos olhando a trilha rapidíssima, tão apertada
que nela não caberia sequer um grão de poeira.
Pulei-a com o maior cuidado quando fui esquentar o chá.
Uma formiguinha desgarrada (a mesma daquela noite?) sacudia
a cabeça entre as mãos. Comecei a rir e tanto
que se o chão não estivesse ocupado, rolaria por
ali de tanto rir. Dormimos juntas na minha cama. Ela dormia
ainda quando saí para a primeira aula. No chão,
nem sombra de formiga, mortas e vivas, desapareciam com a luz
do dia.
Voltei tarde essa noite, um colega tinha se casado e teve festa.
Vim animada, com vontade de cantar, passei da conta. Só
na escada é que me lembrei: o anão. Minha prima
arrastara a mesa para a porta e estudava com o bule fumegando
no fogareiro.
- Hoje não vou dormir, quero ficar de vigia - ela avisou.
O assoalho ainda estava limpo. Me abracei ao urso.
- Estou com medo.
Ela foi buscar uma pílula para atenuar minha ressaca,
me fez engolir a pílula com um gole de chá e ajudou
a me despir.
- Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por enquanto não
apareceu nenhuma, não está na hora delas, é
daqui a pouco que começa. Examinei com a lupa debaixo
da porta, sabe que não consigo descobrir de onde brotam?
Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo da escada o anão
me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto,
acorda, acorda! Demorei para reconhecer minha prima que me segurava
pelos cotovelos. Estava lívida. E vesga.
- Voltaram - ela disse.
Apertei entre as mãos a cabeça dolorida.
- Estão aí?
Ela falava num tom miúdo como se uma formiguinha falasse
com sua voz.
- Acabei dormindo em cima da mesa, estava exausta. Quando acordei,
a trilha já estava em plena. Então fui ver o caixotinho,
aconteceu o que eu esperava...
- Que foi? Fala depressa, o que foi?
Ela firmou o olhar oblíquo no caixotinho debaixo da cama.
- Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende? O
esqueleto está inteiro, só falta o fêmur.
E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante.
Vamos embora daqui.
- Você está falando sério?
- Vamos embora, já arrumei as malas.
A mesa estava limpa e vazios os armários escancarados.
- Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim?
- Imediatamente, melhor não esperar que a bruxa acorde.
Vamos, levanta.
- E para onde a gente vai?
- Não interessa, depois a gente vê. Vamos, vista
isto, temos que sair antes que o anão fique pronto.
Olhei de longe a trilha: nunca elas me pareceram tão
rápidas. Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede,
enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas
pelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto, deixamos
a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito?
No
céu, as últimas estrelas já empalideciam.
Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o
outro olho era penumbra.
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