TELHADO DE VIDRO
Palpiteiros Apocalípticos e Integrados
por
Marco Antônio Bart
30/06/2007
Vivemos
numa época boa para o rock. As bandas que vêm surgindo, aos
borbotões, desde a virada do milênio não passam vergonha frente
a nenhuma geração anterior da música pop. Posso apontar, sem
muito esforço, uma longa lista de artistas bacanas que apareceram
de 2000 para cá, que me fazem afirmar sem medo de errar: o rock
00 é tão legal quanto o rock dos anos 50, 60, 70, 80 e 90. Notem
bem: "tão legal quanto" não quer dizer, de forma alguma,
"tão fundamental quanto", "tão revolucionário
quanto" nem "tão inovador quanto". (Se é que
é possível quantificar esse tipo de coisa.) Enfim, não há dado
concreto algum que possa levar à conclusão que o rock contemporâneo
seja intrinsecamente "pior" que o rock feito em outras
eras. Se algo mudou, foi para melhor. As benesses da comunicação
digital possibilitam conhecer quase no ato qualquer artista
novo que apareça - derrubando aquele delay que havia nas décadas
passadas entre a descoberta (via imprensa) de alguma novidade
e a audição efetiva dos discos. Não se trata de uma defesa apaixonada
das modernices, nem de um abraço incondicional às propaladas
maravilhas que o NME ou o Pitchforkmedia teima em apresentar
toda semana. É apenas a constatação de que há boa música sendo
feita hoje por aí e que é fácil ouví-la.
Mas, é claro, tem gente que não pensa assim.
O mundo dos palpiteiros pop é composto basicamente de sabichões
e caga-regras. Gente que se julga mais esperta que as pessoas
que os lêem e/ou assistem. Esse tipo de gente se valeu, desde
que o mundo é mundo, do acesso privilegiado que tinham à informação
para excercer seu poder. Voltemos, por um instante, aos anos
80. Os Pepes Escobares & Josés Robertos Mahrs da vida tinham
status de oráculo, pois só eles e mais uns happy few podiam
dar umas bandas pelo Primeiro Mundo, catar discos & revistas
& livros e espalhar a luz aos iletrados aqui em Bananópolis.
Hoje, como é? Todo mundo tem acesso a tudo que há para se ler
ou ouvir. Em geral, de graça. Isso deixa os pretensos Pepes
& Mahrs de nossos dias um tanto mal-humorados, rabugentos, de
mal com o mundo. Acompanhe o raciocínio (deles): "Antes
eu podia dizer que a novíssima banda X, da Escócia, era o máximo,
e as pessoas tinham de acreditar em mim. E eu levava o crédito
por ‘descobrir’ a banda. Hoje em dia meus leitores ouvem as
novíssimas bandas da Escócia ao mesmo tempo que eu - ou antes.
Isso não é justo!" É por isso que, para uma determinada
facção dos palpiteiros pop, o rock anda tão sem graça.
Muito se reclama dos deslumbrados, e pouco dos (falsamente)
desencantados. Claro, aquele rapaz que em maio já postou num
blog a lista dos 103 (!!) melhores discos de 2007 é o cúmulo
da falta de noção. Só que o outro lado da moeda, o dos colunistas,
blogueiros & quejandos que preferem pixar incondicionalmente
o rock do terceiro milênio também é de lascar. Essa tchurma
blasé se divide em dois subgrupos, classificados (por mim, d’après
Umbertão) como apocalípticos ou integrados. Os modos de operação
de cada uma das facções são diferentes, mas elas têm vários
pontos de contato. O principal: tanto os apocalípticos quanto
os integrados se esmeram em procurar "argumentos racionais"
para aconselhar seus leitores a evitar tais grupos e adotar
outros. Ou pior, arrogância das arrogâncias, para explicar (sic)
ao leitor porquê ele mesmo, o leitor, gosta de banda tal. Na
maioria das vezes, esses argumentos não levam em consideração
o "detalhe" mais importante: a própria música do artista
em questão. Esses dois tipos muito específicos de palpiteiros
não atacam apenas na mídia escrita e/ou virtual: também são
figuras fáceis em listas de discussões e sites de relacionamento.
A seguir, deslindarei algumas características particulares dos
dois tipos de palpiteiros do contra.
O palpiteiro apocalíptico (ou o reacionário)
Silogismos favoritos:
"A internet está matando o rock."
"Pra quê ouvir a banda nova X, se a banda antiga Y já fazia
isso há 20 anos?"
"O rock não começou com os Arctic Monkeys (ou com o Arcade
Fire, ou com o Bloc Party, ou com os Strokes…). Ouçam aqui como
as coisas eram no meu tempo…"
O palpiteiro apocalíptico anseia, a suspirar, pela volta de
tempos mais simples. Ele se angustia com os novos tempos - tempos
nos quais a informação é descentralizada, democrática… excessiva?
Excessiva demais para que eu dê conta dela? Para este tipo de
palpiteiro pop, a música pop era boa quando era previsível.
Quando havia poucos canais de divulgação, quando poucas gravadoras
controlavam a produção dos discos, quando tinhamos de esperar
um ano, ano-e-meio pelo "evento" que era o lançamento
de um novo disco de uma banda "importante". O apocalíptico
não notou que hoje em dia dia tudo é diferente. Ele não percebeu
que as coisas andam mais rápidas. Na verdade, ele percebeu,
mas não dá o braço a torcer.
Uma das paranóias do apocalíptico é a "facilidade"
com que as bandas novas chegam ao público nos tempos atuais.
Perceba como o raciocínio é lapidar seguindo o exemplo:
"Os Beatles, a maior banda de todos os tempos, levaram
seis anos (1957-1963) para estourar mundialmente. Os Strokes
- desculpe, mas é uma banda muito inferior, não é mesmo? - levaram
menos de dois anos para estourar. Eis o sintoma de que há algo
muito errado com a música pop em nossos dias! Uma época em que
coisas tão medíocres se propagam tão rápido, etc.".
O apocalíptico não apenas culpa a internet pelo "lamentável"
estado de coisas atual. Ele também taxa automaticamente de "descartável"
qualquer artista que utilize a web e/ou recursos paralelos para
divulgar sua obra. Para ele, só é válido o artista que segue
o "caminho natural" das coisas: dois ou três anos
de ensaio, muitos shows, um suado contrato com uma gravadora,
e enfim o lançamento de um CD. Só assim, segundo ele, uma banda
pode realmente tocar os corações de seus ouvintes. Quem parte
para o caminho alternativo só pode ser um artista menor, que
prefere se escorar no hype a tentar uma comunicação real, palpável,
pé no chão, com seu público. Tal e qual Luiz Felipe Scolari,
o apocalíptico acredita que bom caráter, trabalho duro e honestidade
são preferíveis ao talento. Ele bestifica-se com a sucessão
de bandas "vazias" e "irrelevantes" indicadas
pelos modernetes de plantão a cada semana. Entretanto, o apocalíptico
não se dá ao trabalho de ouvir qualquer uma dessas "melhores-bandas-de-todos-os-tempos";
ele apenas verifica de onde partiu a proclamação e dá de ombros,
como quem diz "Ah, é só mais um hype". O apocalíptico
é um equivocado, que confunde o meio (a internet) com a mensagem
(a música). Só que ele não entende as possibilidades do meio
e ignora, olimpicamente, a mensagem.
Quando alguém que realmente escutou o grupo ousa corroborar
pessoalmente a opinião vigente, o apocalíptico se melindra e
invoca o santo nome da autenticidade em vão. O argumento preferido
do apocalíptico para desancar o rock 00 é a falta de originalidade.
"Tudo o que se faz no pop hoje", diz ele em tom solene,
"já foi feito antes, e melhor". Ora, isso é tão óbvio
quanto irrelevante. Pop é reciclagem. Se levarmos esse argumento
do "antes-e-melhor" às últimas conseqüências, daqui
em breve estaremos todos no Congo, ouvindo batuques tribais.
Não foi de lá que saiu a música negra primitiva dos escravos
transplantados para a América, que deu origem ao blues, que
deu origem ao rhythm’n'blues…? O apocalíptico não concebe a
possibilidade de ouvir o antigo e o novo, sem que um substitua
o outro. Aliás, essa possibilidade mesmo (a de conjugar velharias
e modernidades) é uma das coisas mais fascinantes da era do
MP3.
O palpiteiro integrado (ou o cínico)
Silogismos favoritos:
"Don’t believe the hype, except my own"
"O mundinho indie não é tão grande como parece. Eu sei,
eu estive lá"
"Já ouviu aquela rádio online californiana incrível que
eu indiquei?"
O palpiteiro integrado é mais malandro que o apocalíptico. E,
óbvio, mais filhadaputa também. A nostalgia reacionária do apocalíptico
é sincera. A postura blasé do integrado mistura, em iguais doses,
despeito, pretensão e exibicionismo. Ele sabe muito bem como
usar as molezas da vida digital para se informar. Apóia integralmente
o file-sharing, os NMEs, as Tramas Virtuais e os MySpaces da
vida - afinal, através disso tudo é que ele se mantém bem informado.
Entretanto, o integrado prefere ficar em cima do muro. Ele sabe
que não pode ser "o" sabichão-mor. Então ele se divide
entre indicar as bandecas mais obscuras do mundo, aquelas que
nem chegaram no Soulseek, e sacanear os atuais darlings da molecada
indie. "Sacumé", diria ele, enquanto passeia pelas
prateleiras de sua lojinha de CDs favorita (no sudoeste dos
EUA, claro), "enquanto eu digo que a banda é legal, a banda
é legal. Depois que todo mundo passa a achar que é legal, eu
digo que não é legal. Ou que já foi legal. Ou que nunca foi
legal. Sacumé?"
O esporte favorito do integrado é explanar, timtim por timtim,
porque as pessoas apreciam (ou desgostam de, ou deveriam apreciar
ou desgostar de) determinadas bandas ou estilos. Na cabeça deles,
tudo se resume a uma questão de tiração de onda. Sigam o exemplo:
"O Cansei de Ser Sexy só ficou famoso no Brasil depois
de estourar lá fora. Você, brasileiro colonizado e complexado,
passou a gostar deles quando achou que eles viraram a sensação
indie na Inglaterra. Só que eles não ficaram famosos de verdade
aqui, nem estouraram de verdade lá fora; tudo se resume a um
buchicho no mundinho alternativo, e só. Agora que eu já provei
por A + B a razão de você gostar da banda, posso chochá-los
à vontade, pois eu sei como as coisas funcionam no mundinho
alternativo lá fora, etc."
Ao mesmo tempo, o integrado se diverte ao desencavar indicações
obscuríssimas dos confins do pop alternativo mundial, contrapondo-as
ao que está na crista da onda por aqui. Não serve a bandinha
que está no rodapé na quarta capa do NME. "Essa todo mundo
já conhece", pensa o integrado. Só vale aquela coletânea
de rock psicodélico aborígene das Filipinas (comprada naquela
lojinha do sudeste dos EUA, claro).
A contradição subjacente a este tipo de palpiteiro é que ele
não é contrário à construção dos hypes. Ele só não suporta a
idéia de não tê-los construído antes de todo mundo. É hilário
testemunhar seus ataques contra tal colunista ou tal website,
que "plantam idéias" na cabeça das pessoas. Suas próprias
sugestões de audições ou leituras, por outro lado, não são hype;
são apenas isso, sugestões. Siga quem quiser. Mas lembre-se,
daqui a duas semanas eu vou esculachar quem caiu no hype do
colunista concorrente em vez de embarcar na minha onda… Ele
só não imagina que existe uma coisinha chamada gosto pessoal,
que suplanta qualquer hype. Ou seja, se o ouvinte não gostar
da música, não há formador de opinião que o convença do contrário.
E vice-versa. Supor que seu leitor é burro o suficiente para
gostar de um grupo só porque sustentar tal opinião é "moderno"
é subestimar criminosamente o critério pessoal de cada um.
O integrado, no fundo, também é um nostálgico. Só que sua nostalgia
não é pelos "bons tempos" da música à moda antiga.
Ele anseia pela volta daqueles dias em que poucos privilegiados
tiravam onda com suas revistas importadas e seus vinis comprados
na Virgin Megastore. Ainda bem que esses tempos não voltam mais.
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