by Mac
“I’m Not There”, Todd Haynes – Cotação 5/5
Os sessenta anos – completados em 2001 – abriram o coração de Bob Dylan para o mundo. Até então pouco se sabia da vida do mais importante intérprete e compositor da língua inglesa no século 20. Fofocas de amigos, boatos de bastidores, depoimentos em entrevistas, aparições na TV, tudo servia para moldar um Bob Dylan que poderia até estar longe da realidade, mas era o máximo que fãs, jornalistas e pessoas comuns conseguiam obter para tentar entender uma das personas geniais e controversas de nosso tempo. O verdadeiro Bob Dylan se escondia em algum recanto da alma de Robert Allen Zimmerman, um garoto nascido em Minnesota, neto de imigrantes judeus-russos.
Em questão de cinco anos Dylan abriu seu baú de memórias e começou a mostrar fotografias de seu passado para o grande público. Foi assim com o lançamento do livro “Down the Highway: The Life of Bob Dylan”, excelente biografia assinada por Howard Sounes, que chegou ao mercado em 2001 (no Brasil recebeu o nome de “Dylan: A Biografia”, ganhando edição pela Conrad). Na seqüência, em 2005, vieram o volume 1 de “Crônicas” (uma quase biografia escrita pelo próprio Dylan que relembra o passado em textos curtos – edição nacional da Planeta) e o imperdível documentário para a TV “No Direction Home”, de Martin Scorsese (já disponível em DVD). Por último surgiu o álbum “Modern Times” (2006), cujo fantasma da morte presente nas letras meio que justificou a abertura do baú: Dylan quer rever sua história… vivo.
“I’m Not There”, filme de Todd Haynes que funciona como uma inteligente cinebiografia, é o mais próximo que o público já chegou de Bob Dylan em todos estes anos. E é grandioso como deveria ser. O subtítulo do filme diz tudo: “Inspirado nas várias vidas de Bob Dylan”. Para isso, o diretor dividiu a persona do Dylan em seis personagens, e todos eles transitam por “I’m Not There” à vontade. Seja o Dylan dos primeiros anos interpretado por Christian Bale; seja o Dylan que mudou o mundo em 1965 interpretado por Cate Blanchett; seja o Dylan menino interpretado por Marcus Carl Franklin; seja o Dylan católico interpretado por Heath Ledger; seja o Dylan apaixonado por Rimbauld interpretado por Ben Whishaw; seja o Dylan Billy The Kid interpretado por Richard Gere. É preciso conhecer a história do compositor para entender 70% do filme (no mínimo), e esse é seu único defeito: ter sido feito especialmente para fãs.
Não que neófitos venham a desdenhar “I’m Not There”, pelo contrário, mas é que Todd Haynes pula alucinadamente de uma história para outra carregando nas citações como se estivesse fazendo um documentário, e isso faz com que muito da graça do roteiro funcione como piada interna. Quantos vão perceber que a personagem de Julianne Moore, Alice, é na verdade Joan Baez, cantora e compositora com quem Dylan se envolveu no início da carreira? Ou vão entender a genial sacada do diretor ao colocar Cate Blanchett no palco de um festival folk com uma banda que metralha a audiência enquanto toca suas canções? Ok, os fatos estão todos em livros de histórias da música pop e não dá para ficar esperando por alguma tradução – seria pedir demais para Todd Haynes fazer isso. O conselho – para neófitos – é ver, rever e juntar “I’m Not There” com “No Direction Home” e “Don’t Look Back”, de D.A. Pennebaker (1967). A diversão – garantida – pode ser ampliada e muito melhor digerida.
Tudo isso porque “I’m Not There” nos coloca diante da vida do homem que primeiro virou ídolo da esquerda norte-americana amparado em uma paixão por Woody Guthrie para em seguida eletrificar o folk, virar grande estrela do rock, persona non-grata do pessoal do folk, influenciar os Beatles (e a Tropicália), dar um grande nó na cabeça de toda uma geração, sumir do mapa após um mal explicado acidente, retornar as grandes turnês depois de oito anos distante dos palcos, render-se ao cristianismo, renegar Deus, e sobreviver a tudo isso. É mais do que cem pessoas juntas fazem em uma vida toda. Bob Dylan, assim como diversos dos poetas que admira, já leu todos os livros e descobriu que a carne é triste. Porém, mesmo com esse apanhado de informações que surgiu sobre o compositor nos últimos anos – todas com sua autorização – nada consegue penetrar sua alma. O público tem o corpo (há até uma autopsia em uma das cenas de “I’m Not There” que reforça a idéia de que mesmo vasculhando seu interior não encontramos seu espírito, aquilo que faz dele Bob Dylan), e só o corpo.
Mesmo assim os seis Dylans estão impagáveis e trazem momentos memoráveis. O jovem Marcus Carl Franklin encanta carregando seu violão que estampa a frase “essa máquina mata fascistas”; Christian Bale empresta seu rosto para a arte de algumas capas; as intervenções de Ben “Arthur Rimbauld” Whishaw são precisas, mas quem se sai melhor é Cate Blanchett, perfeita como o Dylan chapado que provoca a Inglaterra acompanhado da The Band, apresenta os Beatles à maconha, ganha a “absolvição” de Allen Ginsberg (que diz que se Dylan se vendeu para fazer música para jukeboxes não havia problema algum porque todos se beneficiavam), sarreia jornalistas em uma entrevista coletiva (para depois ler as reportagens e dizer: “Ainda bem que eu não sou eu”) e cultiva a ira de um badalado jornalista da BBC. Blanchett saiu de Veneza com o Copa Volpi de Melhor Atriz. Parece que tem indicação ao Oscar pintando por ai.
Todd Haynes explora questões centrais que sempre viveram no cerne da vida de Bob Dylan: o crescimento musical que não renega o conhecimento empírico; a busca pela transformação (futuro) sem a perda dos princípios básicos (passado); e o confronto moral de praticar arte, inseri-la no mundo, e não se transformar em objeto de si mesmo. Todas essas questões estão soltas de forma conexa em “I’m Not There”. Por mais que cada um dos seis personagens tenha um espaço/tempo diferente do outro, Haynes mantém o pulso firme de forma a dar uma unidade para a obra, e o consegue com louvor. Como já escreveu um jornalista, “de uma hora para outra todas as cinebiografias ficaram ultrapassadas”. E tinha que ser Bob Dylan a inspiração disso, mesmo que ele não está ali.
Leia também: “No Direction Home”, por Marcelo Costa
“Não dá para ser esperto e amar ao mesmo tempo”, diz Bob Dylan em certo trecho do documentário No Direction Home. Com a frase, Dylan tentava explicar a implosão do relacionamento com a cantora Joan Baez, também entrevistada para o filme. Uma corruptela do pensamento do cantor poderia também dizer que não dá para ser genial e amado ao mesmo tempo”. (Continua)
by Mac
“Into The Wild”, Sean Penn – Cotação 4/5
Após anos de graduação em colégio e faculdade, o jovem Christopher Johnson McCandless, de 22 anos, está se formando, mas o gesto de arremessar o barrete (aquele boné preto sem pala que os formandos usam) significa muito mais para o rapaz: Chris está livre das obrigações de uma família infeliz e de uma sociedade capitalista cuja necessidade de consumir afasta o ser-humano de si mesmo, das outras pessoas e da natureza (selvagem). Seu plano é simples: ele “pagou” o preço para a família se dedicado aos estudos, e agora quer desaparecer no mundão de Deus sem lenço, dinheiro e documento.
Chris coloca seu plano em ação doando os 24 mil dólares que guardou na poupança durante a faculdade para uma instituição de caridade. Em seguida, junta algumas peças de roupas, pega seu velho carro e sai sem destino pelas estradas dos Estados Unidos movido a leituras ininterruptas de Tolstoi e Jack London, e pelo desejo de viver em meio à natureza selvagem do Alasca. Sozinho. Em uma desventura perde o carro, e nem se importa. Sai caminhando deixando para trás o veículo e uma fogueira com notas de dólar. Chris exercita o desapego e abandona o próprio nome: agora se chama Alexander Supertramp. O filme é dividido em capítulos que mostram o amadurecimento do personagem.
“Into The Wild”, quarto filme do ator e diretor Sean Penn, toma por base o livro do jornalista Jon Krakauer, que após fazer uma reportagem sobre a história de Chris para a Outside Magazine, decidiu aprofundar sua pesquisa e o resultado se tornou um best-seller nos Estados Unidos. A busca pela felicidade de Chris ganha contornos poéticos e sonhadores nas mãos de Sean Penn, que escorrega para o piegas em uma ou outra passagem, mas que se sai muito bem como obra fechada, comovendo o espectador com uma história verídica que bate forte no lado esquerdo de peito – auxiliada pelas boas canções de Eddie Vedder e por um excelente elenco cujo destaque é grande atuação de Emile Hirsh no papel principal.
A rigor temos aqui mais um caso de família desestruturada. A mãe de Chris se envolveu com seu pai ainda quando ele era casado com outra. Os filhos nasceram sobre a escuridão dessa mentira, e as brigas constantes do casal fizeram à vida de seus dois filhos (Chris tem uma irmã) um pequeno inferno familiar. No primeiro momento em que vê livre dos pais, Chris parte sem deixar rastro nem dar notícias. Sua companheira nesta aventura será uma mochila azul e sua vida agora se passará na estrada com os diversos – e interessantes – personagens que irão cruzar o seu caminho.
Chris não consegue se apegar as pessoas. Seu maior sonho – viver na natureza selvagem do Alasca – é muito mais importante que as relações humanas ao ponto de Chris escrever em seu diário que a felicidade pode ser encontrada no mundo ao nosso redor, na natureza, e não depende das relações entre pessoas. Completamente absorto em seu ideal, Chris parte para realizar seu sonho, vivendo em um ônibus abandonado no meio de uma floresta no Alasca. Como um eremita, ele vive do que a natureza lhe proporciona enquanto o estoque de arroz não termina.
É muito difícil falar de “Into The Wild” sem citar seu final trágico (não vou falar, não vou falar). É muito difícil não pensar em Chris como um rapaz de família abastada que opta por abandonar tudo para viver em um (sub)mundo povoado por pessoas que nunca tiveram nada. Porém, sua trajetória quase hippie é uma belíssima oportunidade de rever mensagens emocionantes que foram deixadas de lado por uma sociedade capitalista cujo “eu” ocupou o lugar do “nós”. Mais do que um “road movie” em busca da felicidade, “Into The Wild” é um filme que valoriza as relações humanas enquanto incentiva o autoconhecimento. E comove. Não será surpresa se encontramos Sean Penn no Oscar. E será merecido…
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“Into The Wild”, trilha sonora de Eddie Vedder – Cotação 4/5
Tocar por 17 anos com a mesma banda é algo que faz sua vida particular (e sua própria personalidade) ficar em segundo plano. Por mais que você consiga se expressar bem, principalmente se estiver à frente do grupo, suas idéias são a idéia da banda, e teoricamente tudo reflete o pensamento e a sonoridade da banda. Isso em uma banda comum. Agora imagine toda essa história no dia-a-dia de um músico de um grupo de mega-sucesso, ícone de toda uma geração, como o Pearl Jam. Por mais que Eddie Vedder se sinta bem representado, aquilo é o Pearl Jam, não Eddie Vedder.
O “verdadeiro” Eddie Vedder pode ser confrontado agora com o lançamento de seu primeiro álbum solo, “Into The Wild”, trilha sonora do filme homônimo dirigido pelo ator e cineasta Sean Penn. Uma lida no resumo do filme já diz muita coisa. “Into The Wild” conta a história real de Christopher McCandless, um jovem que largou tudo (carreira, família, dinheiro) depois de conseguir seu diploma colegial e partiu rumo ao Alasca para viver em meio à natureza. Se as letras de Vedder carregavam um hippiesmo politicamente correto desde a estréia do Pearl Jam, “Into The Wild” amplia o foco e dá mais liberdade para o cantor e compositor soltar as asas e voar.
Em entrevista a Entertainment Weekly, Vedder conta que teve toda liberdade possível para compor a trilha. “Faça o que você achar que deve fazer”, disse Sean Penn. E o que Vedder queria fazer era um álbum essencialmente acústico, nos moldes de “Nebraska”, clássico de Bruce Springsteen, e Neil Young (influência confessa). São onze músicas em pouco mais de 30 minutos de puro Eddie Vedder. Fãs já vão gostar do disco antes mesmo de ouvi-lo. Uma boa parcela do público, no entanto, já se encheu da voz de Vedder. O Pearl Jam tocou (e ainda toca) muito, e a exposição sempre trabalha contra a banda. Porém, conceda o beneficio da dúvida para este álbum antes de torcer o nariz, e a chance de ser surpreendido é enorme.
As cinco primeiras faixas de “Into The Wild” juntas quase não ultrapassam os dez minutos. Eddie Vedder toca tudo no álbum (com exceção de um violão acústico extra em “Society” tocado pelo autor da música, Jerry Hannan, e o backing vocal da Sleater-Kinney Corin Tucker em “Hard Sun”, as duas únicas músicas não compostas por Vedder no disco), de bateria a violão passando por banjo até um ukalele. O som é essencialmente folk, mas a levada pop de “Selling Forth” poderia facilmente galgar a parada de sucessos. “No Celling” traz um interessante trabalho musical, com uma guitarra duelando com o violão nas pontuações do bom arranjo. “Far Behind” segue a linha da anterior, mas é mais roqueira. “Rise” destaca o banjo enquanto “Long Nights” surge dramática.
“Tuolumne” e “The Wolf” são as duas únicas faixas essencialmente instrumentais do álbum, descontando “End Of the Road”, em que o vocalista canta apenas no primeiro trecho, e a versão “Humming Version” da última faixa, “Guaranteed”, que surge como coda após alguns minutos de silêncio. “Hard Sun” é o primeiro single, e é um cover do artista canadense Índio, codinome do compositor Gord Peterson. É também a canção mais longa do disco, ultrapassando os cinco minutos (a versão single é mais curta), mas é grandiosa. Eddie Vedder canta magnificamente bem, e o apoio de Corin Tucker no refrão é plenamente justificável. “Into The Wild” é um belíssimo trabalho solo, um grande disco que serve para lançar um novo olhar sobre um dos grandes vocalistas e songwriters dos anos 90. Eddie Vedder merece a sua atenção.
by Mac
“Onde os Fracos Não Têm Vez”, Joel e Ethan Coen – Cotação 5/5
Os geniais irmãos Coen retornam ao universo da criminalidade (que rendeu a obra-prima “Fargo”, de 1996) neste que é o melhor filme da dupla desde “O Homem Que Não Estava Lá”, de 2001. Adaptado do livro “Onde os Velhos Não Tem Vez”, de Corman McCarthy, “Onde os Fracos Não Têm Vez” traz todos os elementos de um bom filme dos Coen: é denso, violento, mas com ótimas passagens de humor em meio a tempestade de drama. Se passa no oeste norte-americano, perto da fronteira com o México, mas não é um western. É mais um retrato desiludido da sociedade moderna travestido de filme de ação. Apesar do xerife, apesar da caçada de gato e rato, apesar das manchas de sangue no tapete.
Um ex-combatente do Vietnã encontra um cenário surpreendente no meio do deserto: várias camionetes paradas e chumbadas de balas de diversos calibres, corpos por todos os lados, e um carregamento de cocaína abandonado. Apenas uma pessoa viva (por poucas horas) que só sabe pedir água… em mexicano. Poucos metros dali, um morto com uma maleta com 2 milhões de dólares. Ele leva a maleta, mas sabe que o dono virá atrás. O dono não vem, mas manda alguém: Anton Chigurh (em uma atuação que tem que render uma indicação ao Oscar para Javier Bardem; nota atualizada do editor: rendeu a indicação e vai lhe render o Oscar) é um assassino psicótico sem senso de humor, sem piedade, sem o mínimo de dúvida sobre sua missão: matar. Quando surge em cena, Chigurh faz o espectador tremer.
Começa, então, uma perseguição que deixará um rastro de corpos para trás enquanto disserta sobre a loucura que virou a vida no mundo moderno. Um xerife, em certo momento, comenta com outro: “Eu nunca achei que fosse estar vivo para ver meninos com cabelos azuis e argolas no nariz”. O outro (interpretado por Tommy Lee Jones), mais experiente, apenas meneia a cabeça. Mais tarde irá comentar com seu ajudante enquanto lê o jornal de manhã: “Dois homens alugavam quartos para velhos. Eles matavam os velhinhos e enterravam no próprio quintal. Antes, torturavam. Os vizinhos só foram perceber algo diferente qual um velhinho conseguiu fugir com uma coleira de cachorro para a rua. Só por isso. Matar e enterrar no quintal não chamava a atenção”. O ajudante ri da história (e leva todo o cinema a fazer o mesmo), mas pede desculpas em seguida. O xerife completa: “Tudo bem, eu também dou as minhas risadas”. Que mundo é esse que vivemos mesmo, caro leitor?
Essa terra de ninguém filmada pelos irmãos Coen ganha proporções assustadoras em uma cena capital de “Onde os Fracos Não Têm Vez”: no balcão de um posto de gasolina, nosso matador frio, inconseqüente e sem o mínimo de pudores quanto a apertar o gatilho de uma espingarda calibre doze com silenciador (ou de sua “companheira” pouco usual) pergunta ao velho dono do estabelecimento qual o total de sua conta. O velho faz um gracejo, mas não se faz um gracejo com Chigurh. Porém, como ele iria saber?
Como podemos saber se a pessoa que se senta ao nosso lado no ônibus é um assassino, a nossa metade ou sei lá o que? Como podemos saber se o cara que nos ameaçou no trânsito após uma barbeiragem ou aquele que encanou que você cantou a namorada dele tem uma pistola 9 milímetros em seu porta-luvas? Como saber o limite da loucura humana quando jovens atacam em bando e matam uma pessoa por não terem conseguido um desconto de 20 centavos? Não temos como saber. E isso é tremendamente assustador, vamos combinar.
“Onde os Fracos Não Têm Vez” recoloca os irmãos Coen na linha após uma série de filmes medianos que estavam maculando uma carreira prodigiosa. De mensagem pessimista, este ensaio sobre a criminalidade, violência gratuita e a natureza humana ilumina – com uma lanterna – uma pequena centelha da vastidão do universo, e não podemos esperar mais do que isso de uma obra cinematográfica. Poucos conseguem fazer rir enquanto destroços do mundo caem sobre nossos ombros. Poucos conseguem contar uma história tão bem contada e tão cheia de detalhes. Os irmãos Coen jogam pás de cal sobre a fé do público no mundo moderno num filme em que o desamassar do papel laminado de um bombom causa calafrios. Sensacional.
by Mac
“À Prova de Morte”, Quentin Tarantino – Cotação 4,5/5
“Planeta Terror”, Robert Rodriguez – Cotação 4/5
Apresentar a dobradinha “Grindhouse” em seqüência foi uma das melhores coisas que a Mostra de São Paulo apresentou neste ano. Tarantino e Rodriguez sujam as mãos com ketchup enquanto divertem o espectador com dois filmes b de altíssima qualidade num exercício de estilo que faz rir enquanto assusta. “Planeta Terror” é trash elevado à décima potência. Já “À Prova de Morte” é Quentin Tarantino dos bons, com diálogos longos e certeiros sobre um roteiro preguiçoso que brinca de enganar o espectador enquanto faz dezenas de citações de cultura pop.
“Planeta Terror” é divertidíssimo. Robert Rodriguez faz uma paródia de filmes de terror contando a história de uma cidade que é tomada por zumbis canibais que foram infectados por um gás tóxico que o exército dos Estados Unidos utilizou indiscriminadamente em sua invasão no Oriente Médio. Nada pode ser levado a sério aqui, e a intenção não é mesmo essa. O intuito de Rodriguez é fazer cinema pipoca e reviver uma época de sua infância perdida na memória.
Temos uma dançarina go-go que perde a perna (devorada por um zumbi), e no meio da onda de terror precisa correr, mas como? Simples: com uma perna de cadeira no lugar em que deveria estar uma perna mecânica (a cena de sexo entre ela – com a perna de pau – e o “namorado” é impagável). Mais pra frente teremos, no lugar da perna de pau, uma metralhadora. Na melhor tirada do filme, um dos personagens descobre que o ingrediente que deu o toque final mágico ao seu molho barbecue foi… seu próprio sangue: “Sangue é salgado”.
“À Prova de Morte” não carrega na caricatura como “Planeta Terror”, mas é tão divertido quanto, embora demore um pouco a engatar. São duas histórias distintas que se cruzam (se você ainda não viu o trailer, não veja: ele estraga metade da surpresa ao relatar o final da história final) no volante de Stuntman Mike (Kurt Russel, excelente), um dublê que pilota um carro à prova de morte. Stuntman Mike participa ativamente das duas histórias, mas não espere o óbvio. Tarantino prega uma pequena peça no espectador ao som de sua própria Jukebox.
Na primeira história, três garotas partem para um bar onde enchem a cara enquanto falam mil e uma bobagens (que trazem centenas de referências). Na hora de ir embora, as três acabam cruzando Stuntman Mike em uma estrada escura e… bummmm. Corte. Quatro garotas são vistas em um posto de gasolina. Uma delas está aficionada por um Dodge Challenge 1970 que viu numa propaganda de um jornal, e que é igual ao carro de Kowalski, o personagem do cult “Vanishing Point”. “Que filme é esse?”, pergunta uma das meninas. “Você era muito nova para ter visto”, comenta uma enquanto outra emenda: “Você só conhece John Hughes e “Pretty in Pink””. Como qualquer bom Tarantino, “À Prova de Morte” é recheado de citações assim, e muito de seu desfrute vai de se entender as piadas internas.
“À Prova de Morte” é um exercício de estilo que funciona para o bem e cujo único intuito é divertir o espectador sentado na sala de cinema, sem cabecismos ou segundas intenções cinematográficas. É quase um filme sobre nada, muito embora as duas histórias possam render análises pseudo-filosóficas. Ali pelo meio, depois de vinte minutos de diálogos que vão de lugar nenhum para nenhum lugar, o filme dá uma bela caída, e quando você pensa que Tarantino perdeu a mão para o negócio todo, ele leva você para um racha emocionante que terminará de uma maneira improvável. A trilha foi escolhida a dedo pelo cineasta, que assume a posição de barman dono do boteco fim de mundo em que as meninas da primeira história enchem a cara enquanto gastam fichas e fichas na jukebox. Aliás, ele também está em “Planeta Terror”, em uma cena divertidíssima que junta sua sede de sexo, seus olhos famintos e a perna de madeira da senhorita lá do primeiro parágrafo. Impagável. Cinema também é diversão, entende.
“Paranoid Park”, Gus Van Sant – Cotação 1/5
Exercício de estilo pode ser algo muito interessante. Quando você muito a mesma coisa é inevitável que traços iguais apareçam em todas elas. É meio estranho quando reclamam que Woody Allen está se repetindo quando, na verdade, ele está filmando a Woddy Allen, exercitando seu próprio estilo. Porém, exercício comumente é usado para mascarar uma idéia que era para ser algo grandioso, mas que acabou não funcionando. O certo seria parar tudo, reescrever, mexer em detalhes e se isso não adiantasse desistir do projeto. Mas há muita grana em jogo quando se está fazendo um filme. Então entra o exercício de estilo para “encher lingüiça”. “Paranoid Park”, de Gus Van Sant, é mais ou menos isso.
Há uma história, interessante até, em “Paranoid Park”. Um vigia de uma linha de trens aparece morto e os freqüentadores de um parque de skatistas são convocados para averiguações. A chance da polícia chegar no culpado é praticamente inexistente, então o caso policial é deixado de lado para entrarmos no drama pessoal do jovem Alex, filho de pais recém-separados e já marcado por esse fato: não quer transar com a namorada, de quem não gosta tanto assim, porque não quer se envolver e acabar como seus pais. “Paranoid Park” aprofunda a análise psicológica como se fosse um “Crime e Castigo” moderno, mas perde força pelas longas tomadas em 8mm de skatistas e pelo exagero na sustentação de algumas cenas de mensagem óbvia.
Krystof Kieslowiski, nos extras de seu filme “A Liberdade é Azul”, explica uma cena em que um cubo de açúcar é molhado no café, e tomado pelo líquido. A idéia da cena era demonstrar para o espectador o quanto à personagem (Juliette Binoche) estava mais interessada no cubo de açúcar tomado pelo café do que na declaração de amor do homem a sua frente. E o diretor conta que sustenta o foco no cubo de açúcar por cinco segundos, e que a equipe precisou encontrar um cubo de açúcar que demorasse cinco segundos para ser tomado pelo café, pois o espectador não precisava mais do que isso para entender a cena, e mais tempo seria uma agressão. Em vários momentos de “Paranoid Park” Gus Van Sant agride o espectador.
Quando não sustenta a cena em excesso, Gus Van Sant usa a trilha sonora para dar ao espectador a resposta que ele precisa para não se perder na trama óbvia de “Paranoid Park”. Exemplo desse expediente é o trecho que marca o rompimento de Alex com a namorada. Sai o áudio dos atores, entra uma canção de amor, e pelo semblante da namorada percebemos que o inevitável aconteceu. Há certa beleza na cena, que se não se passasse em câmera lenta talvez tivesse um resultado melhor, mas bastaria para tirar o filme do buraco de tédio em que ele se encontra desde seus primeiros segundos até o seu final arrastado. Na falta de um bom filme, Gus Van Sant exercita seu estilo com “Paranoid Park”. Porém, poucos diretores no mundo fazem o filme do nada, apenas com seu estilo, e conseguem um resultado arrebatador. Van Sant não é um deles.
by Mac
“One + One”, Jean-Luc Godard – Cotação 4/5
“Sympathy for the Devil”, Jean-Luc Godard – Cotação 3/5
“One + One” é cria de Godard; “Sympathy for the Devil” é a montagem que os produtores fizeram insatisfeitos com o material original do cineasta, à sua revelia. A rigor, é o mesmíssimo filme com a diferença que o primeiro traz a visão de Godard sobre a obra fechada e o segundo é a visão dos produtores que, claramente, não entendiam muito tudo o que o cineasta estava filmando e dizendo. Desta forma, alteraram a seqüência de esquetes (e anularam o crescendo que o roteiro de “One + One” explora de forma convincente), alongaram uma ou outra cena (o que não acrescenta nada) e colocaram mais Rolling Stones (o que acaba enchendo mais o saco, afinal até um mesmo um clássico como “Sympathy for the Devil” enche a paciência sendo ouvido a exaustão). Dentre as duas versões, a de Godard é claramente melhor, o que não quer dizer muita coisa: ambos os filmes trazem o mesmo conteúdo panfletário que faz muita falta nos dias de hoje, mas são para pouquíssimos ouvidos, olhos e coração.
Godard faz um elogio ao comunismo enquanto dispara frases certeiras contra os Estados Unidos, dá espaço para que os Panteras Negras dissertem seus ideais em passagens antológicas, lê e relê os conceitos de Mao e, na melhor passagem do filme, entrevista uma dama chamada Eve Democracy que defende a desculturalização. Para ela, “para se ser um intelectual revolucionário, é preciso deixar de ser intelectual”. A participação dos Stones é apenas para aficionados. Godard filma a banda gravando “Sympathy for the Devil”, mostra que Bill Wyman era um enfeite (a melhor linha de baixo do filme é feita por Keith Richards), que Brian Jones já estava em outra dimensão e que Mick Jagger centraliza as atenções. Mas é só a banda gravando. Em “One + One” as cenas são vistas em uma ordem coerente, que exibe o crescimento do arranjo, mas mesmo assim são dispensáveis. Os Stones, em 1968, eram um gancho para Godard discursar para a juventude. Visto hoje em dia, tanto “One + One” quanto “Sympathy for the Devil” são obras de museu, retratos de um tempo que se foi. Melhor do que chorar sobre as cinzas do baseado fumado é acordar e entender o mundo como é hoje. Há muito que fazer. Godard fez a parte dele…
“Lust, Caution”, Ang Lee – Cotação 4/5
O primeiro filme de Ang Lee pós-sucesso de “Brokeback Mountain” se passa na Xangai dos anos 40, é falado em chinês, mas trata do mesmo tema: o amor proibido. Se em “Brokeback Mountain” o diretor chocava ao retratar de forma tocante uma história sobre “o amor que não ousa dizer o nome”, em “Lust, Caution” o romance choca por carregar nas tintas do sexo explícito, mas também conta uma belíssima história de um amor impossível. As cenas de sexo são fortes, mas o melhor é se concentrar no drama da jovem revolucionária Wang Chiah-Chih que se apaixona pelo homem que devia matar. Em um país tão apolítico – e carnal – quanto o Brasil talvez este novo drama de Ang Lee não bata tanto quanto “Brokeback Mountain”, mas não se engane: é arte da mesma estirpe.
“Control”, Anton Corbijn – Cotação 3,5/5
Em sua estréia em longas, o badalado fotógrafo fez um belo filme sobre a história de Ian Curtis, vocalista e letrista do Joy Division, que se suicidou em 1980. O ator Sam Riley convence no papel principal, as partes em que a banda está em cena (que são poucas) são excelentes e as imagens de Manchester são belíssimas. Baseado no livro escrito pela mulher de Ian, Deborah, o filme só peca em valorizar as dúvidas amorosas do vocalista enquanto não aprofunda seus dramas e fantasmas pessoais. Como uma fotografia, “Control” exibe uma belíssima imagem, mas carece de alma. Isso não desmerece de forma alguma o filme, mas é uma maneira copo meio vazio entender que Ian se matou por não conseguir lidar com suas mulheres (e ai se inclui a filha Natalie). Ou queremos esperar de nosso herói algo mais do que ele talvez tenha sido.
“About a Son”, AJ Schnack – Cotação 1/5
Kurt Cobain merecia muito mais do que este falso documentário travestido de imagens de luxo de um karaokê sobre Seattle e Aberdeen. “About a Son” apresenta cerca de uma hora e meia de áudio de entrevistas feitas pelo jornalista Michael Azerrad que não trazem nada de novo nem explicam ou conseguem aprofundar a dimensão do mito. Ao contrário, “About a Son” é constrangedor. Algo está errado quando a melhor parte de um filme sobre um gênio do rock surge quando ele explica sua paixão por tartarugas. Kurt está certo: jornalistas são uns bastardos filhos da puta. Só isso explica como um cara usa um material tão bacana de áudio de uma forma tão tosca e canhestra. De péssimo gosto.
by Mac
São 2h52 da madrugada e acabo de chegar anestesiado da sessão dupla de “Grindhouse” na Mostra de Cinema de São Paulo. E preciso escrever isso para dormir bem: fazia muito tempo – muito mesmo – que eu não me divertia tanto em uma sessão de cinema. Me despedi do casal de amigos com que assisti aos dois filmes e desci a Rua Augusta rindo e completamente satisfeito com o cinema de Quentin Tarantino. Com o de Robert Rodriguez também, mas mais com Tarantino. Explico isso melhor depois. Por enquanto, basta saber que ambos os filmes são fodaços. E durmo feliz.
by Mac
Começa nesta sexta-feira a 31ª Mostra de Cinema de São Paulo. São 461 filmes e a vontade de cinéfilo era de ver ao menos uns 100, mas a minha lista inicial de fundamentais neste ano começa apenas com 11 títulos. No ano que mais vi filmes na Mostra, acho que 2002 ou 2003, assisti a quase 40 filmes. Confesso que chega uma hora que você começa a misturar a trama da comédia italiana que você viu depois do almoço com o o roteiro do drama norueguês que assistiu no dia anterior, mas mesmo assim vale. Abaixo minha lista inicial, que deve ser acrescida de mais uns quatro títulos:
“Control”, Anton Corbijn – Cotação 4/5
“Sympathy for the Devil”, Jean-Luc Godard – Cotação 4/5
“Lust, Caution”, Ang Lee – Cotação 4/5
“About a Son”, AJ Schnack – Cotação 1/5
“Planeta Terror”, Robert Rodriguez – Cotação 4/5
“À Prova de Morte”, Quentin Tarantino – Cotação 4/5
“I’m Not There”, Todd Haynes – perdi
“Across The Universe”. Julie Taymor – perdi
“One + One”, Jean-Luc Godard – vou ver
“Onde os Fracos não Têm Vez”, Joel e Ethan Coen – vou ver
Ps. Queria muito ver o David Lynch, mas como estréia dia 02/11, vou esperar. Ok, ao menos vou tentar esperar, não me culpe se eu ver antes…
by Mac
Assisti, ontem no HSBC Belas Artes, a “Repulsa ao Sexo”, clássico de Roman Polanski com Catherine Deneuve interpretando uma manicure com sérios distúrbios de sexualidade, que acabam rendendo cenas impressionantes e interessantes.
Agora, e sei que não devia dizer isso, mas a Catherine não me impressionou não, viu. Seu personagem é pálido, o que está perfeitamente inserido no contexto do filme, mas mesmo ela parece tãooo normalzinha (uma loirinha bonitinha, só isso). Femme fatale? Sei não.
Na verdade, acho que estou muito influenciado por “Sabrina”, de Billy Wilder (estou escrevendo aliás um textinho “rápido” sobre três filmes dele que revi nesta semana), que vi na sexta, em casa. Principalmente por Audrey Hepburn, que tomou meu coração de sonhador, e está brincando com ele. Na boa, entre ela e Deneuve, escolho a Audrey. Ih…
by Mac
Há muita coisa para falar sobre “Tropa de Elite” sem necessariamente falar de cinema. O fato (inédito para uma produção nacional) de o filme ter vazado antes da estréia tornando-se um sucesso nas mãos de camelôs (estima-se que mais de 1 milhão de cópias piratas do filme já foram vendidas em todo o País); a sua “derrota” unânime (0×6) frente a “O Ano Em Que Meus Pais Saíram de Férias” como filme representante do Brasil no Oscar 2008; a patrulha ideológica que está crucificando seu diretor, José Padilha; entre muitas outras coisas. No entanto, o cinema vem antes. Vamos seguir a cronologia.
Se José Padilha tivesse dirigido apenas o documentário “Ônibus 174? sua vida cinematográfica já teria valido a pena. “Ônibus 174? ganhou diversos prêmios ao redor do globo e elogios merecidos de toda a crítica. Porém, esses prêmios agora vão parecer menores frente a carreira que “Tropa de Elite” iniciou nos cinemas no primeiro fim de semana de outubro. Menores porque tudo em “Tropa de Elite” é hiperbolizado, de sua violência desmedida as reações que vem causando; da narrativa impactante aos protestos da Polícia, de cineastas, da classe média. A vida de José Padilha se divide em antes e depois de “Tropa de Elite”.
O sucesso do filme em camelôs ameaçava sua escalada nos cinemas, acredita Padilha. Grande bobagem. Do mesmo jeito que o filme circulou no boca-a-boca Brasil afora, agora vai circular de cinema em cinema. Quem viu o DVD e viu no cinema irá encher o peito para dizer: no cinema é ainda melhor. E esse blá blá blá vai deixar o público curioso, principalmente aquele público que não costuma visitar a sala escura. Será esse público que fará a diferença, no final. E ele irá ao cinema mesmo sabendo que as diferenças são microscópicas porque ninguém resiste a própria curiosidade.
A rigor, as mudanças (roteiro, edição) são praticamente imperceptíveis, mas o impacto do som, das imagens em alta escala e da sensação claustrofóbica de uma sala escura tendem a dar ao filme ainda mais força do que a que ele mostrou nos aparelhos de televisão por ai. São duas experiências completamente diferentes que funcionam para valorizar a obra acabada em seu lugar de desfile: o cinema. Neste lugar, “Tropa de Elite” é violento, devastador, impactante e inebriante. Os tiros ouvidos (e vistos) na tela tem endereço certo: o estômago do freguês.
Wagner Moura dá vida ao Capitão Nascimento de tal maneira que é impossível não admirar o trabalho do ator, embora seu personagem seja quase um animal de caça. Sua atuação é inquestionavelmente impressionante, ganhando força até mesmo quando ele pontua a narração com um “amigo” (repetido várias vezes) em finais de frase. Os personagens secundários também brilham, mas é o Capitão Nascimento que coloca ordem na casa auxiliado pelo roteiro esperto e pela edição vertiginosa, duas grandes qualidades de seu filme primo, “Cidade de Deus”, que “emprestou” Daniel Rezende (edição) e Bráulio Mantovani (que assina o roteiro a seis mãos com José Padilha e Rodrigo Pimentel).
A comparação com “Cidade de Deus” seria dispensável, mas ajuda (e muito) a entender o fenômeno “Tropa de Elite”: Por que o primeiro virou um marco do cinema nacional, chegando ao Oscar com quatro indicações (igualando a façanha de “O Beijo do Mulher Aranha”) e ganhado elogios rasgados da imprensa internacional, e o segundo nasce sobre a égide da polêmica, incitando acalorados debates que, quase sempre, apontam o filme como fascista? Qual a diferença entre Buscapé e Capitão Nascimento? O que fez de um filme queridinho da crítica e público enquanto o outro nasce massacrado por boa parte da imprensa? Várias coisas, caro leitor, várias coisas.
A primeira que surge é a aparição de um personagem forte que veste farda e se diz incorruptível. A imagem que a maioria do povo brasileiro tem da polícia é aquela retratada na faixa clássica que encerra o primeiro álbum do Capital Inicial, de 1986, e que fez com que o álbum levasse um carimbo de “venda proibida para menores de 18 anos”. A letra, assinada por Renato Russo, questionava: “Porque pobre quando nasce com espírito assassino / Sabe o que vai ser quando crescer desde menino / Ladrão para roubar, marginal para matar / Papai eu quero ser um policial quando eu crescer”, e seguia contando a história de “assassinos armados, uniformizados”. “Tropa de Elite” é o rascunho quase perfeito desta letra, mas há uma glamourização na forma com que este rascunho é desenhado que muita gente deixa o cinema fã dos soldados do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro, o Bope.
A culpa não é só do filme muito menos de seu diretor. A culpa também é do público (na verdade a culpa é do Estado, mas esse é o ponto final da discussão, local para o qual todas as análises deveriam convergir). E o público é culpado por se deixar levar pela espetacularização da história e acreditar (e isso sim é assustador) que tudo aquilo que acontece na tela é realmente o que tem que acontecer na sociedade que vive. Dai a pecha de fascista que lhe imprimem alguns analistas, mais preocupados com o blá blá blá extra filme do que com o que acontece na tela. Para estes, “Tropa de Elite” glorifica a violência, a tortura, a morte sem julgamento; e o Bope nada mais é do que um braço de nossas forças armadas, a mesma instituição que encarcerou o País em uma ditadura repressiva e direitista durante anos. José Padilha permite essa leitura, mas é um lado “copo meio vazio” de se ver as coisas (da mesma forma que seria acusar o filme “Clube da Luta” de responsável por um jovem maluco que entra em um cinema atirando em todo mundo).
Outra maneira de olhar “Tropa de Elite” é entendê-lo como um reflexo de uma sociedade que vem empurrando durante anos e anos com sua imensa barriga assuntos delicados como descriminalização, corrupção e abuso de poder. O mundo em que o Capitão Nascimento vive deixou de ser um mundo comum para se transformar em um campo de guerra com o agravante de a batalha estar acontecendo 24 horas por dia ao nosso lado. “O que fazer para consertar tudo isso” deveria ser a grande questão suscitada pelo filme, mas tudo na tela parece desvalorizar essa premissa, pois “Tropa de Elite” não permite a presença do público: somos meros espectadores observando a carnificina desumana praticada tanto por mocinhos (oficiais do Bope) quanto por bandidos (a máfia da droga). O filme pede a todo o momento para que você escolha o lado dos mocinhos (a narrativa em primeira pessoa pesa nessa decisão), e erra tanto quanto acerta por exagerar na forma e no conteúdo. Ou seja, o que faz de “Tropa de Elite” um filme excelente é a mesma coisa que o diminui: seu ritmo vertiginoso e acachapante não abre espaço para reflexões nem críticas.
Essa avaliação de forma alguma faz do filme uma bandeira fascista como alguns tolos e/ou preocupados querem pichar tanto quanto não o transforma no melhor filme já apresentado nos cinemas brasileiros desde o Tratado de Tordesilhas. Ele apenas opta por jogar luz sobre um ponto de vista raramente visto no cinema nacional: o da polícia. A primeira mensagem do filme surge antes mesmo das imagens: uma citação do psicólogo Stanley Milgram, que diz que o comportamento do indivíduo é determinado pelas circunstâncias, algo que pelo filtro do roteiro justifica uma outra famosa citação, essa muito mais em sintonia com a proposta, aquela de Jean-Jacques Rousseau em “O Contrato Social”, que diz que “O homem nasce bom e a sociedade o corrompe”.
Capitão Nascimento e seus soldados foram corrompidos pela idéia de estarem praticando o bem com base nas circunstâncias de uma sociedade que fecha os olhos para a corrupção enquanto acredita dormir o sono dos justos. Assim, ao lado de uma das falas do Capitão Nascimento (notadamente aquela que diz que muitos jovens precisam morrer na favela para um playboy enrolar um baseado) é preciso colocar outra: é a omissão da sociedade que faz o Bope apertar o gatilho. Existe alguém que não seja culpado nessa história toda, cara pálida? Não, somos todos culpados. Porém, pouca gente vai vestir a carapuça. E da-lhe camisetas do Bope bombando em camelôs. A moda a serviço da filosofia. Rimos ou choramos?
“Tropa de Elite”, intenso enquanto cinema, instável como mensagem, um quase grande filme.
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– “Se há alguma pecha negativa a se colar em Tropa de Elite é o fato, inegável, de sua mensagem ser reacionária”, por Marco Antonio Bart
by Mac
Tributos ao R.E.M. (15 anos do maravilhoso “Automatic For The People”) e aos Beatles (40 anos de “Sgt Peppers) gratuitos para download e mais a coletânea latino-americana “Porque Este Océano Es El Tuyo, Es El Mio” no site.
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Ontem à noite, quando passava pela padaria Bela Paulista para comprar pão (e, sim, é possível comprar várias outras coisas na Bela Paulista além de pão, antes que alguém banque o engracadinho), da fila pude observar na estante de revistas a nova edição da Vip com Guilhermina Guinle na capa. Lili, meu amor, me desculpe, mas fiquei sem ar. A capa assim como o ensaio são de tirar o fôlego…
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“Tropa de Elite” estréia, enfim, na sexta-feira, apenas no Rio de Janeiro e em São Paulo. Não concordo com o privilégio a estas duas praças, mas entendo a preocupação da produtora em não deixar a poeira baixar. Assisto ao filme no fim de semana, comparo com a edição em DVD pirata que tenho em casa, e comento tudo em um texto especial na segunda-feira, prometo (ih). Enquanto isso, o compadre Inagaki (que não viu o filme) se diverte com as estripulias que o BOPE está rendendo por ai. Além, a querida Re Honorato publicou uma nota em seu Game Girl sobre um possível jogo inspirado no filme. Leia abaixo:
– Capitão Nascimento matou a Taís e foi ao cinema, por Alexandre Inagaki
– Tropa de Elite in Game, por Renata Honorato
Off Topic: Dez razões para amar Jack White, pelas Garotas Que Dizem Ni
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Além da discotecagem em Curitiba, está pintando uma em Ribeirão Preto