A armadilha de uma descrição verbal
Trecho do prefácio do livro “Escuta Só”, de Alex Ross:
“Escrever sobre música não é especialmente difícil. Quem cunhou o epigrama “Escrever sobre música é como dançar sobre arquitetura” — a declaração foi atribuída em diferentes momentos a Martin Mull, Steve Martin e Elvis Costello — estava turvando as águas. A crítica musical é certamente uma ciência curiosa e dúbia, e seu jargão varia do inexpressivo (“A Quinta de Beethoven começa com três sóis e um mi bemol”) ao floreado (“A Quinta de Beethoven começa com o destino batendo à porta”). Mas não é mais dúbia do que qualquer outro tipo de crítica. Toda forma de arte luta contra a armadilha de uma descrição verbal. Escrever sobre dança é como cantar sobre arquitetura, escrever sobre literatura é como fazer edifícios sobre balé. Há uma fronteira envolta em névoa que a língua não pode atravessar. Um crítico de arte pode dizer de Laranja e amarelo de Mark Rothko que a tela consiste de uma área de tinta amarela que flutua acima de uma área de tinta cor de laranja, mas de que serve isso para alguém que nunca viu um Rothko? O crítico literário pode copiar algumas linhas da “Esthétique du mal”, de Wallace Stevens —
And out of what sees and hears and out
Of what one feels, who could have thought to make
So many selves, so many sensuous worlds…
— mas quando tenta explicar o significado desses versos, quando tenta expressar sua música silenciosa, outra dança irrealizável se inicia. Então por que se arraigou a ideia de que há algo de peculiarmente inexpressivo na música? A explicação pode não estar na música, mas em nós mesmos. (…) A “Grande Enciclopédia Soviética”, em um de seus momentos mais sensatos, definiu a música como “uma variante especifica de som feito por pessoas”. No fim das contas, a parte difícil de escrever sobre música não é descrever um som, mas um ser humano. É um trabalho delicado, pretensioso no caso dos vivos e especulativo no caso dos mortos”…
“Escuta Só”, de Alex Ross, foi lançado pela Companhia das Letras no Brasil
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