Dylan com café, dia 70: Howard Sounes
Bob Dylan com café, dia 70: A vida de Bob Dylan é um mistério que centenas de biografias ainda não conseguiram dar conta. Na verdade, quando mais se descobre sobre Bob Dylan, menos se sabe sobre Bob Dylan. Vários bons biógrafos deitaram-se sobre o tema e, como observou um crítico do New York Times, se “Bob Dylan: An Intimate Biography” (1971), de Anthony Scaduto, falhava no estudo do personagem e no exagero; “No Direction Home” (1986), se beneficiava da amizade de Robert Shelton com Dylan, mas não dos atributos críticos de Shelton; enquanto “Bob Dylan” (1991), de Bob Spitz, também pecava na formulação crítica; e “Bob Dylan: Behind the Shades” (1991), de Clinton Heylin, falhava tentando encontrar um real “Dylan” em meio às máscaras que o definem. Em 2001, quem decidiu se lançar sobre a vida de Robert Zimmerman foi o jornalista britânico Howard Sounes, que em 1998 colocara nas lojas “Vida e Loucuras de um Velho Safado”, bio de Charles Bukowski (lançada no Brasil pela Editora Conrad). Ao contrário de Robert Shelton e Bob Spitz, Howard Sounes carrega as tintas na crítica, algumas vezes com ranço, o que, inclusive, dificulta bastante confiar em outros livros do autor como “A Intimidade de Paul McCartney” (em que por vários trechos ele compara Macca com Dylan visando diminuir o ex-beatle) e o polêmico “Two lives of Lou Reed: Notes from the Velvet Underground” (2015). Este “Down The Highway – The Life of Bob Dylan”, de 2000 (lançado no Brasil em 2001 como “Dylan, a Biografia” pela Editora Conrad), porém, é um dos livros mais equilibrados do autor – pese provavelmente o fanatismo que faz com Sounes diminua todos os demais perante Bob. Na época, Sounes se vangloriava de corrigir equívocos de nascimentos dos filhos de Dylan, de descobrir um casamento e um filho não divulgados pela imprensa e de mapear seus imóveis ao redor do mundo, dados que acrescentam ainda mais lenha na confusão do mito. O ponto alto desta boa biografia, porém, é o tempo que o escritor se dedica às sessões de alguns álbuns (em conversas com diversos músicos que acompanharam Bob): “Shot of Love” (1981) e “Empire Burlesque” (1985) são dissecados com o mesmo carinho que “Blood on The Tracks” (1975) e a mítica trilogia “Bring It All Back Home” (1965), “Highway 61 Revisited” (1965) e “Blonde on Blonde” (1966). Em alguns momentos, o texto escorrega para a fofoca (e o The Sun sorri) e a especulação como quando Bonnie Beecher (namorada e Bob Dylan dos tempos do colégio em Minneapolis – época da qual saíram duas fitas famosas, “The Minneapolis Party Tape” e “The Minneapolis Hotel Tape”) tentou falar com Bob em um show nos anos 90, mas teria sido ignorada por Bob e pelos seguranças e sentiu-se humilhada (“O marido de Bonnie – e amigo de Bob – tentou faze-la sentir-se melhor dizendo que Bob havia passado direto por George Harrison da mesma maneira”; Sounes acrescenta: “Bob pode nem tê-la visto: sem seus óculos, que ele se recusa a usar no palco por pura vaidade, Bob é praticamente cego”). Tendo discernimento para avaliar as opiniões de Sounes e de muitos (ex-)amigos do homem, “Bob Dylan, a Biografia”, é um passatempo bastante agradável que ajuda o leitor a se situar na obra de Bob, e se perder sobre quem ele realmente é.
Trecho de “Dylan – A biografia”, de Howard Sounes
O ontem se foi, mas o passado continua vivo. O homem tinha uma nadar estranhamente lépido, como uma marionete manipulada por cordas invisíveis. Sua cabeça parecia se mover com um ritmo próprio. Ele usava roupas mal-ajambradas que o faziam parecer um peixe fora d’água em uma área elegante de Manhattan, tendo quase a aparência de um sem-teto. Contudo, vistas mais de perto, as roupas pareciam novas. Ao ser olhado mais próximo ainda, o rosto pálido, a barba por fazer, esse homem de meia-idade e corpo franzino parecia familiar. Sob o chapéu, o nítido nariz adunco, as feições delicadas emolduradas por um filete de barba. Ao coçar o nariz, notam-se as unhas compridas e sujas. Ao olhar para atravessar a rua, os olhos que se via eram de um azul quase tão intenso quanto o dos ovos do tordo norte-americano.
—”É o Bob Dylan!”
As pessoas freqüentemente o reconheciam, berrando animadamente saudações, quase não acreditando que estavam vendo uma lenda na rua. Bob odiava quando elas o agarravam, mas ele era, no fundo, um educado cidadão do interior e não se importava em dar um alô. Quando falava — talvez somente para dizer algo como “Aí, cara, como é que é?” – sua voz era tão característica, com as palavras saindo aos trancos do diafragma e então parecendo deslizar através do nariz quase cômico, enfatizando a palavra errada na frase e encurtando outras palavras, que só podia ser Bob Dylan. Bob foi até a esquina da 57″‘ Street com a Lexington Avenue e entrou em um pequeno bar, o Irish Pavilion. Tommy Makem, o dono, era um velho amigo do início dos anos 1960 – quando Bob era aprendiz em seu ofício -, um irlandês de fala mansa que tinha tocado canções folk tradicionais com os Clancy Brothers nos bares de Greenwich Village, em Nova York. Makem não via Bobby – como o conhecia – há muitos anos. “Não havia ninguém com ele, nenhum motorista, nenhuma companhia, ninguém. Estava só”, relembra ele. Makem acomodou Bob em uma mesa reservada, onde ele não seria visto por outros fregueses. Depois foi buscar seu banjo e subiu ao palco para o show. Makem tocou as antigas baladas que Bob adorava, canções vigorosas como “Brennan on the moor” e a melancólica “Will you go, Lassie, go”. Houve um intervalo antes da segunda parte e ele foi até onde Bob estava comendo e bebendo alguma coisa. “Se estiver a fim de cantar uma música, me avise”, disse. Mas Bob preferiu ficar sentado em silêncio, sozinho. Ele estava se divertindo imensamente. O Irish Pavilion o fazia lembrar de seus primeiros dias em Nova York e das pessoas que lá conhecera, artistas como John Lee Hooker, “Cisco” Houston e “Big” Joe Williams. Para ele, esses homens eram monumentais: tinham inspirado e influenciado toda a sua carreira. Depois que a platéia se dispersou, Makem puxou uma cadeira e conversou com Bob enquanto os funcionários varriam em volta das mesas. Era do passado que Bob queria falar – velhos amigos dos velhos bares, pessoas que ele não via fazia trinta anos, e antigas lembranças, como a da noite em que ele correu até a casa do irlandês na 6th Avenue, entusiasmado com uma música que escrevera.
“Deus, deviam ser 2 e meia ou 3 horas da madrugada”, diz Makem. “Foi até lá para me mostrar a letra de uma longa balada sobre um assassinato que tinha escrito para a melodia de alguma música que ouvira Liam [Clancy] e eu cantarmos. Havia uns vinte versos nela, ele cantou a música toda. Eu pensei, Deus, que coisa interessante esse cara está fazendo”. Poucas semanas depois da inesperada visita de Bob ao Irish Pavilion, na primavera de 1992, Tommy Makem recebeu uma carta da gravadora de Bob, a Sony Music. Ele estava sendo convidado a se apresentar em um show comemorativo dos 30 anos da carreira de Bob (embora, na verdade, ele viesse gravando há 31). Bob não tinha dito nada quando eles se encontraram, mas isso era típico dele; nunca fora muito falante. Makem não tinha certeza, a princípio, de que tipo de show se tratava. Pelo jeito contido com que Bob perambulava sozinho pela cidade, vestido como um vagabundo, podia-se pensar que seus dias de grande astro tinham acabado, e que uma comemoração de sua carreira seria realizada em um teatro modesto em um lugar qualquer com alguns velhos amigos. “Foi extremamente glamoroso, um evento muito maior do que eu imaginara”, diz Makem. “Foi gigantesco.” O palco do Show de Comemoração do 30º Aniversário de Bob, como foi chamado, foi o Madison Square Garden, o enorme complexo esportivo em Manhattan. Quando foi anunciado que Bob se apresentaria juntamente com alguns dos nomes mais famosos da música, 18 mil lugares foram vendidos em uma hora. E olha que os promotores do evento estavam cobrando entre 50 e 150 dólares por pessoa, preços recordes. Quando chegou ao Riliga Royal Hotel, onde os músicos estavam hospedados, Makem descobriu que a lista de convidados incluía não apenas antigos cantores folk como também superastros como Eric Clapton e George Harrison, amigos de Bob.
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