Dylan com café, dia 47: No Direction Home
Bob Dylan com café, dia 47: Em um dos capítulos do livro “Crônicas – Vol. 1”, publicado em outubro de 2004, Dylan relembra os tempos difíceis pré-“Oh Mercy” (1989), enfim um grande álbum que encerrava uma década praticamente perdida “por causa do excesso de distrações”, segundo ele. “Onde quer que eu vá, sou um trovador dos anos 60, uma relíquia do folk rock, um artesão da palavra de tempos passados, um chefe de Estado fictício de um lugar que ninguém conhece. Estou no inferno do esquecimento cultural”, diz. O primeiro dos três turning points no novo século a tirar Bob Dylan deste esquecimento cultural e coloca-lo no lugar em que ele sempre mereceu estar foi um documentário impecável dirigido por Martin Scorsese. Lançado em agosto de 2005, “No Direction Home” compilava em 208 minutos imagens raras (como a primeira exibição do momento em que alguém o chama de “Judas” num show em Manchester, 1966) e dezenas de takes de backstage e shows nas turnês de 1965/1966 além de entrevistas com personagens importantes do período como os músicos Pete Seeger, Maria Muldaur e Al Kooper, a ex-namorada Suze Rotolo (fotografada ao lado de Dylan na capa de “Freewheelin”), o promotor de música folk Harold Leventhal, o cineasta DA Pennebaker (diretor do obrigatório documentário “Don’t Look Back”) e o poeta beat Allen Ginsberg, além do próprio Bob Dylan (impressionantemente desnudado e à vontade a ponto de dizer, sobre o fim do relacionamento com Joan Baez, que “não dá para amar e ser esperto ao mesmo tempo”), entre outros.
O documentário foi acompanhado de uma “trilha sonora” deliciosamente torta em mais um volume imperdível de raridades cobrindo os 7 anos (de 1959 a 1966) que mudaram a música pop: “The Bootleg Series 7 – No Direction Home: The Soundtrack” compila 28 canções, apenas duas delas lançadas anteriormente, com o garimpo começando no CD 1 com a primeira gravação domestica de Bob, “When I Got Troubles”, datada de 1959, e seguindo com outra raridade: “Rambler, Gambler” (1960), canção tradicional gravada por Dylan numa rádio em Minneapolis. O hino “This Land Is Your Land”, de Woody Guthrie, surge numa versão de Bob ao vivo em 1961. Seguem-se takes do famoso álbum pirata “Minnesota Hotel Tapes” (1961), registros do programa de TV “Folk Songs and More Folk Songs” (1963) além de números no Newport Folk Festival (“Chimes of Freedom” em 1964 e “Maggie’s Farm” em 1965 mostrando a mudança do acústico para o elétrico que criou um caos na cena folk da época).
No CD 2, takes alternativos que engrandecem ainda mais os álbuns “Bringing It All Back Home” (1965), “Highway 61 Revisited” (1965) e “Blonde on Blonde” (1966) com versões de “It’s All Over Now, Baby Blue” (mais lenta, mais melódica, mais intensa), “She Belongs To Me” (também mais lenta, e aqui sem bateria, mas com baixo e guitarra), “Tombstone Blues” (frenética, pré-punk), “Desolation Row” (“Com Al Kooper tocando guitarra como o jovem Lou Reed”, observa o crítico John Harris), “Highway 61 Revisited” (numa baita versão de boteco, com slide e piano elétrico sensacionais), “Leopard-Skin Pill-Box Hat” (no modo blues lento e chapado) e “Stuck Inside of Mobile with the Memphis Blues Again” (também em marcha lenta chapada) além de “Visions of Johanna” (com os Hawks e Al Kooper). O livreto (com dezenas de fotos raras e registros alternativos das capas do período) tem texto assinado por Andrew Loog Oldham, o homem que cuidou dos Stones em seus anos de formação (1963/1967), e que aqui observa: “Na Inglaterra e na França, mais conhecidas como Europa, havia Dylan muito antes que houvesse Beatles e Rolling Stones. 43 anos depois, Dylan ainda move os peões”. Muitos fãs jovens conheceram Bob Dylan através deste documentário de Scorsese, que ganhou uma reedição comemorativa em 2016 com acréscimo de diversas cenas raras. Logo logo, esses novos fãs perceberam, na prática, que Dylan não pertence ao passado. “Modern Times”, seu segundo turning point no novo século (o terceiro será o Nobel de Literatura), vem ai, e é assunto para outro café.
0 comentário
Faça um comentário