Dylan com café, dia 42: Rolling Thunder Revue
Bob Dylan com café, dia 42: em 1969, o jornalista Greil Marcus escreveu um longo texto na Rolling Stone lamentando que Bob Dylan, nos anos 60, tenha lançado “apenas” 9 discos em 8 anos. Corte para os anos 2000, que vão ver apenas três discos inéditos de Dylan na primeira década. Porém, se o material novo não será tão farto (ou melhor, estará adaptado às necessidades do mundo moderno), o baú de raridades trará surpresas maravilhosas aos fãs do homem. Após encantar o público com a reedição imperdível do show no Royal Albert Hall, em Manchester, 1966 (o show do “Judas!”), no volume 4 das Bootleg Series em 1998, a Columbia voltou a produzir ouro no formato de compact disc a laser em 2002 quando compilou em dois CDs (e um DVD extra bônus) alguns dos momentos mais brilhantes da mais brilhante turnê de Bob Dylan, a The Rolling Thunder Revue 1975 – ou como compara o biógrafo Brian Hilton, uma turnê que se equivale a mítica turnê de 1966, mas se lá havia uma batalha entre banda e público toda noite, aqui os shows são pura celebração de amor.
Lançado em novembro de 2002, “The Bootleg Series Vol. 5: Bob Dylan Live 1975, The Rolling Thunder Revue” é uma volta a um tempo que não existe mais. Bob vislumbrou a ideia da turnê quando estava em férias na Córsega e a inspiração surgiu das trupes italianas de “commedia dell-arte”, uma forma de teatro popular que aparece no século XV, na Itália, e se desenvolveu posteriormente na França, e cujo intuito era opor-se (muitas vezes por necessidade) a comédia erudita com apresentações realizadas em ruas e praças, companhias itinerantes de estrutura e esquema familiar e atores que seguiam apenas um roteiro simplificado e tinham total liberdade para improvisar e interagir com o público. Ao chegarem a cada cidade, pediam permissão para se apresentar nas suas carroças ou em pequenos palcos improvisados. Com exatamente esse mesmo mote, quando voltou à Nova York, Bob Dylan juntou um grupo de músicos do Greenwich Village, convidou alguns amigos e caiu na estrada (com dois álbuns matadores fresquinhos de base de repertório: “Blood on The Tracks” e o ainda não lançado – mas já gravado e tocado na tour – “Desire”) no mesmo modelo italiano: as casas de shows, pequenas e intimas, eram reservadas sob pseudônimo, e a banda aparecia disfarçadamente e começava seu “teatro”: Bob Neuwirth fazia seu set, T-Bone Burnett dava um pitaco, Dennis Hopper declamava um poema, Mick Ronson (que havia deixado a banda de David Bowie para acompanhar Dylan) tocava “Life On Mars” e Bob Dylan então surgia para um set acústico. Meia hora depois, Roger McGuinn assumia o lugar de Dylan, tocava algumas coisas do Byrds e passava a função para Joan Baez, que tocava durante cerca de 40 minutos. Dylan então voltava para encerrar a noite em formato banda com mais uma hora de show! No total, mais de 3 horas de espetáculo noite após noite.
Na teoria apaixonada dos hippies, lindo. No papel, porém, as contas não estavam fechando, o que tornou esses primeiros 30 shows (de outubro a dezembro de 1975) únicos. Bob queria que essa turnê durasse para sempre, mas ela não resistiu nem até o natal de 1975, e quando a trupe retornou a estrada em 1976, num modelo de shows em estádios e grandes ginásios, a magia já tinha se perdido (e sido registrada no canto de cisne da turnê, o álbum “Hard Rain”). A inocência, as máscaras pintadas fellinianas, os duetos imperdíveis, a voz de Dylan em seu auge (“Ele nunca cantou dessa forma, nem antes, nem depois”, escreveu o jornalista Peter Doggett), a emoção genuína da The Rolling Thunder Revue 1975 surge compilada nas 22 canções (retiradas de quatros shows) destes dois CDs (uma pena não ser um lançamento quádruplo ou quíntuplo, afinal o CD duplo não faz justiça ao espetáculo de três horas), todas da primeira perna da tour, quando sonhar ainda era possível. Assim como o show de 66 em Manchester, esse é outro momento mágico da música moderna digitalizado para a posteridade. Deleite-se.
Ps. Muitas imagens dessa turnê aparecem no filme “Renaldo & Clara” (1978), escrito por Dylan e Sam Shepard, e dirigido por Bob. São quase quatro horas de projeção com cenas de shows, entrevistas documentais e vinhetas dramáticas de ficção que refletem as letras e a vida de Dylan à época.
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