Dylan com café, dia 40: Royal Albert Hall
Bob Dylan com café, dia 40: A boa recepção e o sucesso do lançamento das “The Bootleg Series – Volumes 1/3” em 1991 abriu os olhos da Columbia Records para algo que pirateiros sabiam desde os anos 60: além de artisticamente revolucionário, o extenso material raro de Dylan era altamente vendável. Criou-se então uma divisão na gravadora para, arqueologicamente, pesquisar o acervo, e o primeiro lançamento que viria a tona seria a oficialização de um dos álbuns piratas mais famosos de todos os tempos, que começou a circular em vinil já no começo dos anos 70 com os nomes mais variados: “In 1966 There Was” (1970), “Royal Albert Hall Concert 1966” (1970), “Royal Albert Hall” (1971), entre dezenas de outros. A Columbia iria lança-lo pela primeira vez completo, e chegou a remasteriza-lo e a anunciar o projeto em 1995, mas decidiu engaveta-lo.
Como tudo que cerca a música de Dylan, a remasterização caiu nas mãos dos pirateiros, e novamente a festa se fez. A Columbia então retomou o projeto e, finalmente, em outubro de 1998 chegava às lojas num invólucro de luxo “The Bootleg Series – Volume 4: Live 1966 The Royal Albert Hall Concert”. Com um som muito melhorado e um livreto com fotos incríveis de época, um dos álbuns piratas mais desejados por fãs de Dylan em todo o mundo (Jimmy Page incluso) enfim via a luz do laser e a agulha do vinil de maneira oficial além de corrigir um equivoco: durante muito tempo pensou-se que o áudio desse show fosse o da apresentação no Royal Albert Hall em Londres, diante de toda realeza britânica, dos Beatles e dos Rolling Stones, mas, na verdade, era o áudio do show que ocorreu em Manchester, no Free Trade Hall, vulgo Royal Albert Hall, 10 dias antes. Vivendo no limite, constantemente chapado e parindo obras primas a cada minuto, Dylan passava por uma rotina traumática em seus shows da turnê de 1966.
A primeira parte da apresentação o trazia num set acústico, folk, solo. Já na segunda, Dylan subia ao palco eletrificado acompanhado pelos barulhentos Hawks, e era constantemente vaiado. O clima era tão tenso que havia boatos de gente armada no público pronta para alveja-lo durante o set elétrico. Extremamente simbólico, “The Bootleg Series – Volume 4: Live 1966 The Royal Albert Hall Concert” capta tudo isso em detalhes. Do silêncio respeitoso com que o público ouve na primeira parte versões absolutamente sublimes de “Visions of Johanna”, “Desolation Row”, “It’s All Over Now, Baby Blue” e “Just Like a Woman” ao início de caos assim que os Hawks disparam uma canção nunca gravada em estúdio por Dylan, “Tell Me, Momma”, que, segundo Jon Spencer, “isso é punk rock, cara”. Em “I Don’t Believe You”, Bob Dylan provoca: “A coisa costumava ser daquele jeito, mas agora é assim”. O público ri, nervosamente. A tensão só aumenta. Seguem-se, entre gritos da plateia, “Just Like Tom Thumb’s Blues” (“É possível sentir o gosto do suor e o cheiro do medo”, observa o biógrafo Brian Hinton), “Leopard-Skin Pill-Box Hat”, “One Too Many Mornings” (“Que soa como o mais violento clássico local entre United e City”, compara Hinton) e uma raivosa “Ballad of a Thin Man” (“Há um monte de Mr. Jones na plateia, um deles provavelmente com uma faca. Ou com algo ainda mais perigoso”, suspeita o biógrafo).
O gesto final desta apresentação caótica e histórica não poderia ter sido mais simbólico: a banda está afinando os instrumentos, preparando-se para alçar voo no último número da noite sob o barulho de uma plateia inquieta, que berra coisas desconexas até que, enfim, uma voz se sobressai na multidão: “Judas!”, alguém claramente grita. Aplausos efusivos irrompem no teatro. “Não acredito em você”, diz Dylan ao microfone. “Você é um mentiroso”, completa. Ele então se vira para a banda e ordena: “Play fucking loud!!!”. E “Like a Rolling Stone” surge como o Apocalipse em oito minutos vorazes. O show termina entre vaias e aplausos. Não há pedidos de bis. Não haverá bis. De maneira surrealista, “Deus Salve a Rainha” ecoa no ambiente. Este show termina e, após ele, Dylan faria apenas mais cinco apresentações (as duas últimas no Royal Albert Hall londrino) e interromperia a turnê de maneira abrupta, devido a um acidente de moto. Traumatizado, ele só voltaria a fazer uma turnê 8 anos depois, em 1974. Primeiro registro oficial em áudio desse ano doido (o histórico registro em vídeo – acima – foi feito por D.A Pennebaker, que havia filmado a turnê europeia de Dylan em 65 para o documentário “Don’t Look Back”, lançado em 1967, e acompanhado Dylan na turnê de 66 com as filmagens permanecendo inéditas até 2004, quando foram encontradas numa pilha de filmes danificados pela água recuperados do cofre de Dylan e inclusas no documentário “No Direction Home”, de Martin Scorsese), este show, posteriormente, ganhou relançamento no box completista “The 1966 Live Recordings”, lançado em 2016, com 36 CDs compilando 23 shows desta turnê que sacudiu a música moderna. Um clássico. Vá atrás!
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