Dylan com café, dia 32: Oh Mercy
Bob Dylan com café, dia 32: Os anos 80 foram cruéis com muita gente, e Dylan deve estar numa posição de destaque na fila de desastres. A década estava enfim acabando, era 1989, e seu último disco digno havia saído seis anos antes, em 1983 (“Infidels”). Sua carreira tinha seguido até então no piloto automático, sem grandes novidades, mas muitos senões. “Eu estivera numa turnê de 18 meses com Tom Petty e os Heartbreakers. Tom estava no auge do lance dele, e eu no fundo do meu”, escreveu Bob no livro “Crônicas” sobre a virada de 1986 para 1987. Ele sabia que algo estava errado. Seu resumo do período é crítico: “Sempre prolifica, mas nunca exata, minha trilha musical se transformara numa selva de trepadeiras por causa do excesso de distrações. (…) Eu me sentia acabado, um traste vazio completamente consumido. Onde quer que eu vá, sou um trovador dos anos 60, uma relíquia do folk rock, um artesão da palavra de tempos passados, um chefe de Estado fictício de um lugar que ninguém conhece. Estou no inferno do esquecimento cultural”. Era isso e algo precisava ser feito. Mas o que?
Bem, a inspiração. A narrativa de como “Oh Mercy”, o grande disco que Bob lançaria em setembro de 1989, surgiu é extremamente lírica, e merece a leitura completa do capítulo 4 do livro “Crônicas”. Resumindo, Bob rasgou a mão até os ossos num acidente, e precisou ficar de molho. Seu plano inicial era… aposentadoria, mas os anjos malditos da inspiração começaram a fazer brotar canções, que ele escrevia e jogava numa gaveta. Certo dia, Bono (U2) apareceu para jantar com uma caixa de Guinness. O papo se estendeu madrugada adentro e Bono perguntou a Bob se ele não tinha nada novo, inédito, alguma canção que estivesse trabalhando. Bob mostrou o material que estava na gaveta e Bono ligou para Daniel Lanois dali mesmo, e colocou os dois em contato. “Ele falou que discos de sucesso não lhe interessavam”, lembra Bob. “Miles Davis nunca fez nenhum”, justificou Lanois. “Para mim estava ótimo”, concordou Dylan.
A gravação posterior em New Orleans (“Existem muitos lugares de que gosto, mas New Orleans é o que mais gosto. É uma cidade que mantém a magia”, descreveria Bob) passou por momentos tensos até Lanois e Dylan se conectarem, mas o resultado foi grandioso: a distópica “Political World” (“um rockabilly do inferno”, descreve Brian Hinton), “Everything Is Broken” (que ganhou clipe dirigido por Jesse Dylan), “Most of the Time” (que Lanois definiu como “o som dos pântanos da Louisiana”), a transcendental “Shooting Star” e o relato da tentação em “Man In The Long Black Coat” estão, facilmente, entre as melhores coisas que ele gravou nesta década. E as outras não ficam atrás (Deus, até as canções dispensadas – que apareceriam em The Bootleg Series Vol. 8 – são de alto nível, como é o caso de “Dignity” – piratas variados como “Mercy on Us“, “Oh, Merci, I’m Lucky” e “Ring Them Bells” trazem as sessões completas de New Orleans) .
Apesar de Dylan dizer que o disco recebeu boas críticas, mas “críticas não vendem discos”, “Oh Mercy” (cuja arte da capa é uma foto de um grafite localizado na 53rd com a 9ª avenida, em Hell’s Kitchen, Nova York) bateu no número 30 da Billboard ficando atrás apenas de “Infidels” (que alcançou a 20ª posição) e “Saved” (que chegou ao número 24). Ainda assim, a importância maior de “Oh Mercy” é reconectar Dylan com sua arte no momento em que ele duvidava do futuro. Foi um passo decisivo para coloca-lo no mapa novamente, e permiti-lo seguir em frente para encontrar o sucesso nos anos 2000 (futuramente, dois discos de Dylan irão chegar ao topo das paradas, outro baterá na 3ª posição, um quarto álbum chegará ao 5º lugar e outro alcançara o Top 10. Mas tudo isso é assunto para outros cafés)…
março 27, 2018 No Comments