Cervejando em Buenos Aires
O start da revolução cervejeira artesanal começou nos Estados Unidos no final dos anos 70, começo dos 80, e nos anos 90 grande parte dos 51 estados norte-americanos tinha aderido ao “movimento”. O novo século chegou e países como Itália, Dinamarca, Holanda, Canadá, Chile e Brasil, entre muitos outros, embarcaram na onda da revolução cervejeira, que também bateu na porta das respeitadas escolas clássicas (Alemanha, Inglaterra e Bélgica), e muitas delas cederam levemente (a República Tcheca ainda faz charminho).
País do vinho Malbec, a Argentina tinha acenado levemente alguns anos atrás que estava a fim de embarcar na onda, mas as coisas caminharam lentamente no país de Diego Maradona até que nos últimos dois anos houve uma proliferação de cervejarias artesanais e brewhouses que se triplicaram na capital. Se nos anos 00 era possível contar os lugares que vendiam cerveja artesanal na capital argentina nos dedos das mãos, agora já é melhor chamar mais uns dois amigos para ajudar na contagem (e no levantamento de copo).
No geral, a escola de cerveja artesanal argentina ainda soa em um estágio inicial apostando em IPAs, Irish Reds e Golden Ales básicas, mas um nome já se destaca no cenário local: Ricardo “Semilla” é responsável pelas experimentais cervejas Los Bichos Mandan (geralmente nascidas de blends improváveis de outras cervejas artesanais locais com maturação em barris de uísque, vinho ou conhaque de segundo uso com acréscimo de levedura selvagem e lúpulo) e pelo grande hit da atual temporada cervejeira argentina, a linha artesanal Juguetes Perdidos.
Abaixo um passeio por 10 points cervejeiros (e um extra) na capital argentina em maio de 2017, boa parte deles divididos entre San Telmo e Pallermo (há uma honrosa exceção em Caballito). É sempre bom lembrar que pubs que não são brewhouses (ou seja, não produzem a própria cerveja) dependem do que o mercado artesanal tem a oferecer, o que quer dizer que você pode ir a alguns desses bares e a lousa estar completamente diferente (e alguma cerveja citada não estar disponível), o que torna o passeio sempre uma surpresa (a alguma ainda melhor pode estar engatada). Boa sorte na sua caminhada. A minha foi essa.
PRIMEIRA PARADA – Bodega Cervecera (El Salvador 5100, Palermo Soho)
Dica da amiga Cilmara, do blog Lupulinas. Aberta em 2011 inicialmente na Calle Thames, a Bodega Cervecera mudou para este lugar aconchegante cujo diferencial nesta noite foi não estar abarrotado. Ou seja, um lugar calmo para se beber uma cerveja sem stress. Na lousa, 10 rótulos, todos de nano ou micro cervejarias argentinas honrando o lema artesanal “apoya a tu cerveceria local”. Apostei numa Kira Indie American IPA, bastante correta e amarga, mas sem grandes surpresas. O companheiro de boteco Tulio Bragança, do renomado site Aires Buenos (que honra o lema “Simplesmente tudo sobre Buenos Aires”), foi de Finn American Wheat, que chegou sem carbonatação nenhuma, um pecado em se tratando de cerveja artesanal. Um dos méritos das cervejas mainstream é entregar padrão, baixo, mas ainda assim padrão. Uma Budweiser, Stella ou Heineken terá o mesmo gosto em São Paulo, Nova York ou Londres, e se você bebe uma delas “choca” é, muito provavelmente, porque o dono do estabelecimento desligou a geladeira para economizar energia e esse gela/aquece/gela ferra uma das duas únicas vantagens que a grande indústria pode oferecer: padrão para quem está na zona de conforto (a outra é preço). Dai pagar um pouco mais caro numa artesanal e ela vir sem carbonatação dificulta o jogo, mas eventualmente acontece. Ainda assim gostei da Bodega Cervecera, e lamentei não olhar as cervejas locais que eles tinham em garrafa (num post antigo deles num blog vi garrafas de Grosa, uma das minhas cervejas argentinas favoritas).
SEGUNDA PARADA – On Tap (Costa Rica 5527, Palermo Hollywood)
Excelente recomendação do Túlio, esse pub é o grande exemplo do crescimento da procura por cerveja artesanal na capital argentina. Aberto em julho de 2015, o On Tap deu tão certo com suas 20 torneiras de cerveja artesanal argentina que abriu uma filial na mesma calçada e mais cinco (!) bares em outros bairros da cidade. Como só números não significam muita coisa (afinal Justin Bieber vende milhões de discos e sua música é algo tipo Malt 90 – Malt Nojenta, se você viveu os anos 80), conta pontos eles terem duas Juguetes Perdidos entre suas 40 torneiras nos dois endereços da Calle Costa Rica: uma Baltic Porter (que deixei passar) e uma sensacional Grand Cru, uma das melhores cervejas de toda viagem. A média, no entanto, é de Pale Ale, IPA, Red, Golden Ale e Stout (Tulio experimentou uma Hazelnut bem interessante), mas ainda havia uma Wee Heavy engatada (da BierHaus) e uma Wesley Double IPA, que experimentei e curti (ainda que melada demais e amarga de menos). O On Tap original é um local fechado, com mesas e tal (e estava abarrotado). Já o vizinho coloca balcões na calçada, o que é bem legal. O saldo foi extremamente positivo nesse que já está entre os meus três bares favoritos da cidade.
TERCEIRA PARADA – Gull (Cabrera 5502, Palermo Hollywood)
Para fechar a primeira noite, Túlio nos levou ao Gull, que tem um ambiente mais pop, gourmet e arrumadinho (patricinho) com um segundo andar bastante aprazível para dias de verão, mas que não me animou tanto quanto a variedade de rótulos on tap, todos próprios e básicos (Irish Red, Golden, IPA, Honey, Porter e Scottish). O que salvou a noite foi a geladeira da casa, de onde retirei duas La Loggia, uma Imperial Stout e uma Imperial IPA, ambas seladas com cera e sem rótulo, apenas com uma etiqueta que lista os prêmios (merecidos) recebidos pelas duas. Aqui já deu notar outro salto das cervejas locais: em 2014, num tour (de vinhos) que fiz pela Argentina, trouxe três La Loggia na mala, e nenhuma delas (inclusive essa mesma RIS) impressionou muito, todas boas e corretas, mas sem grandes destaques. Essas duas da geladeira do Gull estavam bem melhores e mais provocantes, um ou dois níveis acima das mesmas cervejas que bebi em 2014.
QUARTA PARADA – Cervelar (Viamonte 336, Microcentro)
Na primeira vez que vim a Buenos Aires buscando cervejas argentinas, por volta de 2008 e 2009, a Cervelar era o principal point indicado por blogs e locais. Ainda hoje se você buscar locais cervejeiros na capital argentina pelo Ratebeer, a Cervelar aparecerá em primeiro lugar, mas a sensação é de que este bar na Viamonte (geralmente o indicado) parou no tempo. Nas prateleiras, uma boa seleção básica do que a Argentina tem de cerveja artesanal engarrafada (Antares, OtroMundo, Barba Roja, Beagle, Berlina); em tap, quatro estilos tradicionais, mas absolutamente nenhuma novidade. A sensação é de que este bar é mantido por ter sido um dos primeiros da marca, que hoje soma mais oito pubs na cidade. Dai fica o critério ao que você busca: se você está procurando por cervejas artesanais argentinas em garrafa, esse point da Viamonte pode ser interessante para neófitos; se você quer cerveja on tap, deixe a Cervelar da Viamonte de lado e parta para a Cervelar de San Telmo (Defensa 998), que ganhou um banho de loja, tapas gourmet e 14 torneiras (incluindo uma Double IPA).
QUINTA PARADA – Bélgica (Avenida Pedro Goyena 901, Caballito)
Num belo casarão de esquina em Caballito está localizada uma das joias cervejeiras de Buenos Aires na atualidade, o Bélgica, pub aberto em novembro de 2016 e que conta com 12 torneiras e atendimento “a lá Bélgica”: aqui se bebe cada estilo de cerveja em seu copo próprio, buscando alcançar o melhor resultado (os copos especiais de dose para experimentar alguma cerveja desconhecida são um charme). Indicado a mim pelo próprio Semilla, não estranha encontrar na lousa quatro Juguetes Perdidos entre as 14 opções disponíveis: uma Belgian IPA (que já é um passo à frente das American IPA locais), uma Jamaica Dubbel, uma Saison Maracuya e até uma Scotch Peated Smoked Whisky Barrel (que eu só descobri que estava engatada depois de sair e perdi de experimentar). Outra que chamou a atenção foi a Finn Wheat IPA Blend 2, o que demonstra certo apreço da casa em sair do lugar comum das cervejas artesanais, algo que os diferencia num oceano de mais do mesmo. É um espaço grande com um belo balcão central, mesas e um segundo piso, tudo cheio numa sexta-feira de tempo bastante agradável para se provar cerveja artesanal. Recomendo conhecer.
SEXTA PARADA – Antares Brew Pub (Bolivar 491, San Telmo)
Fundada em dezembro de 1998 por três amigos de faculdade (dois caras e uma garota), a Antares é hoje a maior micro-cervejaria da Argentina, e paga certo preço por ser uma das desbravadoras do universo cervejeiro local. Tal qual a Colorado no Brasil, a Antares funciona como porta de entrada para curiosos adentrarem o mercado cervejeiro artesanal, oferecendo rótulos tradicionais que já soam ultrapassados por nanos e micro cervejeiros (tal qual as escolas clássicas europeias ficaram ultrapassadas pela revolução cervejeira norte-americana). Então se você gosta muito de Colorado, por exemplo, você irá gostar de Antares. Já se você acha que a Colorado já não é mais o que era há 10 anos atrás (você evoluiu, ela permaneceu a mesma) e está mais para mainstream do que para cerveja artesanal, a Antares segue o mesmo caminho. Dito isto, este pub num belo casarão de San Telmo (aliás, são mais de 30 pubs espalhados por todo o país) vive permanentemente tomado. O legal aqui é provar a régua com todas as cervejas da lousa em copos pequenos (são oito tradicionais mais duas cervejas sazonais). Gosto da Kölsch e da Barley Wine – nesse esquema de cervejas mainstream produzidas por “empresas artesanais”.
SÉTIMA PARADA – Sexton Beer Company (Bolivar 622, San Telmo)
Um dos que mais curti a vibe, o Sexton Beer Company foi aberto em fevereiro de 2014, e aposta numa carta apenas com cervejas preparadas no próprio bar, que eles vendem on tap e também em garrafa. O local é pequeno (três mesas e um bom balcão), mas bastante agradável, com alma de pub rock and roll: no som, Iggy Pop esgoelando durante meia hora (clap clap clap) celebrou meus dois pints. Provei a Munyon Citra IPA e a Merican IPA, e as duas estavam muito boas, modelo American IPA “antigo” (amargor “sujo” e levemente resinoso – mesmo na Citra), mas totalmente dentro do estilo. Depois me arrependi de não provar a Dulce de Leche Amber. Quero voltar.
OITAVA PARADA – Breoghan Brew Bar (Bolivar 860, San Telmo)
Alguns passos na mesma rua do Sexton Beer Company está o Breoghan Brew Bar, com uma proposta totalmente inversa: pub totalmente lotado daqueles que você precisa conversar com o vizinho no balcão quase gritando para competir com o pop rock anos 80 que sai das caixas e o falatório no salão, ou seja, um bar mais jovem, de galera, para quem não quer apenas beber e comer, mas também conversar e paquerar. Há várias mesas, um balcão no miolo do bar e outro no canto próximo das torneiras, que somam 15 taps, sete deles da própria casa. Decidi arriscar em uma Buena Birra Cascade e fui beber no anexo do bar, mais calmo e vazio. Desceu bem, outra American IPA das “antigas”, mas o local me soou mais um daqueles para ver, beber, e ser visto.
NONA PARADA – Barba Roja San Telmo (Defensa 550, San Telmo)
Eu estava evitando ir ao Barba Roja, mas queria fechar um post com 10 bares, e não resisti a inclui-lo (no fim acabei indo a 11 bares de qualquer jeito). E eu estava relutante porque nunca bebi uma Barba Roja que “valesse realmente a pena” – e acho que já bebi umas seis ou sete diferentes. Mas como diz o ditado, já que não tem tu, vai tu mesmo. Até curto a arte da cerveja, tão infantil quanto a tampinha destacável e fácil de abrir das garrafas, mas definitivamente eu não vivo no universo Barba Roja: no pub, enorme, escuro e lotado, uma boa seleção de pop rock argentino em alto volume. Na lousa, oito Barbas Rojas diferentes e escolhi a IPA (até para manter a linha da noite após passar na Sexton e na Breoghan), que estava tão ruim, mas tão ruim, mas tão ruim, que a vontade era deixar o pint pela metade. Posicionado no balcão de frente a atendente, que foi bastante gentil, educadamente bebi a cerveja toda. A gente não acerta todas numa mesma noite, certo.
DÉCIMA PARADA – BierLife (Humberto 1º 670, San Telmo)
Desanimado no balcão do Barba Roja, recorri a amigos no Whatsapp, e o cervejeiro e parceiro de confraria Marcio Kovacs (que já havia me auxiliado num roteiro cervejeiro em Nova York) me salvou novamente: “Você está em San Telmo? Vá no BierLife!”. Dica anotada, maps ligado e uma pernadinha leve para encontrar o melhor local cervejeiro da viagem, o point número 1 para mim em Buenos Aires, com 44 torneiras (duas Juguetes Perdidos <3) num casarão que remete muito a um Biergarten alemão: a casa começa em dois salões, abre prum terceiro salão menor que emenda com um quarto salão imenso. E estava totalmente lotada! Esse é o tipo de lugar que faz falta em São Paulo, um galpão cervejeiro imenso com vários ambientes (tudo aqui em São Paulo é pequeno e lotado). A lousa não decepcionou. Encarei a Juguetes Perdidos Belgian IPA (mandei até um elogio bêbado ao cervejeiro) e uma BierLife Wheat Wine que me surpreendeu. A lousa ainda destacava uma Del Parque Pumpkin, uma La Delicia Sidra Espumante Seca, uma BierLife Raisins Wine e uma Juguetes Perdidos Jamaica Dubbel, mas o nível alcoólico já estava alto, a madrugada outonal agradável e a cont fechada: 10 bares, e justamente o último tinha sido o melhor formando um Top 3 com o On Tap de Pallermo Hollywood e o Bélgica Caballito.
EXTRA: NOLA (Gorriti 4389, Pallermo)
Já havia encerrado a lista na madrugada de sexta e as malas já estavam fechadas preparadas para o voo das 22h, mas o sábado prometia um almoço com o casal André e Giovana. O local (escolhido pelo Tulio) foi o Carniceria, responsável por um dos melhores cortes de carne de toda viagem (deixando para trás até o famoso ojo de bife do 1884, do Francis Mallman) – aliás, vale conhecer também o Chori, de um dos donos do Carniceria, algo como um choripan gourmet, mas muito bom (outra boa dica do Tulio). Depois de duas garrafas de vinho e papos muito bons, o casal comentou sobre o NOLA, um bar de comidas cajun comandado por uma nativa de New Orleans com cerveja artesanal própria próximo dali. Não resistimos e saímos batendo perna na agradabilíssima tarde outonal de Buenos Aires. No NOLA bebi mais uma boa IPA bastante fresca e caramelada, e fiquei salivando pelas comidas, mas já não havia espaço depois do almoço. Fica para a próxima, mas eu volto.
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