King Lear na versão de Jean-Luc Godard
Titulo: King Lear (1987)
Para encerrar sua trilogia de personagens míticos – após “Carmen” (de 1983, que abordava o terrorismo inspirado em Bizet) e “Je Vous Salue Marie” (de 1985, que questionava a fé cristã com foco na Bíblia), Jean-Luc Godard escolheu Shakespeare. Iniciada em 1985, a produção se arrastou até o fim de 1987. Não à toa, os primeiros diálogos da obra são do produtor cobrando o diretor: “As pessoas não acreditam que o filme jamais será feito”. No corte surge Norman Mailer, que deveria assinar o roteiro e participar da trama, mas desistiu quando Godard insinuou que seu personagem iria praticar incesto com a própria filha (Kate Mailer). O filme dentro do filme dentro do filme segue com William Shakespeare Jr. V (Peter Sellars), que explica: após o desastre nuclear de Chernobyl, todo tipo de arte existente foi destruído e sua função é recriar as obras do ente famoso. William então se envolve com os personagens da peça que está reescrevendo, Cordelia (Molly Ringwald logo após “Clube dos Cinco” e “A Garota de Rosa Shocking”) e seu pai, o mafioso Don Learo (Burgess Meredith). Ainda vão surgir em cena Julie Delpy (com meros 16 anos) e o próprio Godard como o Professor Pluggy (um “gênio” maluco) numa trama que questiona a arte de forma niilista sem muita fé no subproduto (feito nas costas) que irá resultar “do filme”. Quem deverá juntar as peças insanas desta loucura pós-apocalíptica na sala de edição e salvar o cinema? Sim, ele mesmo, Mr. Alien (Woody) – citando “Meetin’ WA” ao inverso. Há consenso que “King Lear” é um dos filmes mais fracos de Godard (o texto de Robert Koehler no Los Angeles Times, em 1988, é ótimo), mas há críticos, como Richard Brody, da New Yorker (autor do livro “Everything is Cinema: The Working Life of Jean-Luc Godard”, 2008), que o acham “o melhor filme de todos os tempos” (ele colocou “King Lear” no número 1 em sua votação na Sight & Sound, 2012). Na dúvida, assista (e tente imaginar se estilhaços desta experiência irão afetar os próximos filmes de Woody).
maio 7, 2015 No Comments
Discutindo gravadoras, selos e mercado
Perguntas de Natalia Albertoni em agosto de 2014
A maior parte da produção nacional é feita por selos independentes (criados até pelos próprios artistas)? Desde quando? Por quê?
É um processo que começou no meio dos anos 90, com o barateamento tecnológico, que permitiu que músicos construíssem estúdios sem gastar uma fortuna. A proliferação de selos independentes, no entanto, se deve ao descaso das grandes gravadoras com Música, com M maiúsculo. É importante lembrar que as grandes gravadoras foram importantíssimas não só por investimento dos primeiros registros musicais como na proliferação da cultura. Porém, no Brasil, depois da segunda metade dos anos 90, os investimentos no novo começaram a minguar, e muitas gravadoras começaram a apostar apenas na recriação de modelos até esgota-los (aconteceu com o emo, com o pagode e diversos outros estilos). Ou seja, alguém tinha um vislumbre de sucesso, e a gravadora brasileira ia lá e criava um exercito de bandas clones. Deixou-se de apostar no novo, no risco de algo bom conquistar o público. Com isso, os artistas precisaram encontrar outra saída e os selos independentes se mostraram úteis.
Sempre existiram selos no Brasil, certo? Principalmente nos anos 1980… por que existe esta ideia de que selo é uma forma de produção gringa?
Porque a ideia era copiada das matrizes das grandes gravadoras, que criavam sub selos dentro da própria organização tentando dar uma cara para os produtos daquele departamento. Por exemplo, o selo Chaos, da Sony Music, responsável pelo lançamento dos primeiros discos de Gabriel O Pensador, Chico Science & Nação Zumbi e Skank, nada mais era do que o mesmo selo da Universal norte-americana, que havia lançado bandas como Soul Asylum e Ned’s Atomic Dustbin. No Brasil, nos anos 80, nós tivemos o Plug, selo dentro da RCA que lançou um monte de nomes da cena gaúcha: Engenheiros do Hawaii, Nenhum de Nós, Defalla. Lógico que nós já tínhamos selos independentes no país na mesma época. A Baratos Afins, por exemplo, era um selo / loja de discos que havia lançado muita gente boa (Fellini, Golpe de Estado, Voluntários da Pátria) seguindo o velho lema dos selos independentes mundiais: estamos lançando coisas de qualidade que soam estranhas aos ouvidos do pessoal das grandes gravadoras. A mudança acontece quando, no começo dos anos 2000, tudo passa a soar estranho aos ouvidos das grandes gravadoras, e artistas que antes teriam casa num grande selo passam a apostar na independência.
Como você vê essa mudança de rumo no mercado fonográfico? Das grandes gravadoras para os selos… Muda algo para o consumidor?
Mudou muito porque as grandes gravadoras ainda detém o controle da distribuição e ainda detém verba de veiculação (o que faz do dial das rádios um extenso comercial). Então onde o povo irá encontrar os selos menores? Em lojas especializadas, mas nestas lojas só vai quem já sabe o que está indo procurar. A dona de casa, o cara que trabalha na obra, o bancário, as pessoas comuns, que tem uma vida comum cuja música é apenas uma trilha incidental que entra aqui e ali em alguns momentos do dia, fica dependente de canais de divulgação e distribuição que estão viciados, que não recebem o novo, apenas mais do mesmo. E isso faz com que o público entre em um marasmo, em uma zona de conforto bastante prejudicial aos novos artistas. A internet abriu um pouco esse leque, mas as coisas ainda estão engatinhando.
O selo funciona quase como uma curadoria, certo? Qual a vantagem de seguir um e quais são interessantes ficar de olho para acompanhar novidades?
Exatamente. Uma curadoria que, via de regra, segue uma linha estética. Então quando você compra um disco da Sub Pop (norte-americana) ou da Rough Trade (inglesa) ou da Monstro Discos (Brasil), você já tem uma vaga ideia do que pode estar ali, porque são selos que trabalham com nichos específicos e estão com as antenas ligadas para o mundo tentando buscar o novo, algo que continue levando a bandeira do selo estrada a frente. O investimento em um selo pequeno é menor do que é uma grande gravadora, então eles podem apostar mais e tanto acertar mais. Um acerto muitas vezes “recupera” o investimento de 10 “erros”, isso economicamente falando porque discos lançados não são erros, certo. “Velvet Underground & Nico” não vendeu absolutamente nada quando foi lançado, e é um dos discos mais importantes da história do rock. A questão é que, no mundo capitalista que vivemos, uma gravação, um lançamento de disco, uma divulgação, isso tudo custa dinheiro, e as gravadoras necessitam do lucro para continuar lançando discos.
Aliás, o selo ainda é bom filtro para identificar o que há de bom (principalmente levando em consideração o mundão da internet) em um determinado estilo musical? Ou hoje o selo virou um recurso para lançar disco?
Os selos continuam sendo o melhor filtro, sem dúvida. Se há um lugar no mundo onde a música nova pode ser surpreendente é num selo independente.
O que selos nacionais tem a aprender com gente de selo gringo como Nonesuch, Domino, OWSLA?
Curadoria, trabalho a longo prazo e não esquecer que o que importa é a música. No Brasil tudo é pra ontem, então quando um artista é lançado, não se pensa em trabalhar a carreira em longo prazo, a resposta tem que ser imediata. Se fosse assim, nomes como Bob Dylan e Bruce Springsteen teriam sido dispensados sumariamente das gravadoras brasileiras após o primeiro disco. Nonesuch, Domino e OWSLA tentam entender os artistas que contratam e traduzi-los da melhor forma para o público, sem serem agressivos. O que importa é a música, e esses selos se notabilizaram por venderem boa música. Gosto muito do trabalho da Merge, da Secretly Canadian e da YB.
Aumentou mesmo a produção por selo?
Por necessidade de mercado, sim.
É a única via para fazer música no país?
Não. As gravadoras ainda existem e, mesmo hibernando, ainda são uma via possível.
A multiplicação de selos é atestado da desnecessidade de gravadoras? Qualquer artista grava e lança fazendo um selo?
Sim e não. Qualquer artista pode gravar e lançar, mas como vai distribuir? Como vai colocar a música na rádio, na novela, como vai fazer com que seu disco chegue a um público maior? As gravadoras ainda detém esse mercado de distribuição.
O que não muda nessa lógica é a necessidade de ter empresários, certo? Eles ainda são importantes, principalmente para o mainstream…
Eles são importantes no que tange dar liberdade para o artista criar música, e fazer apenas isso. E isso é importante principalmente para os independentes, que precisam encontrar brechas na estrutura do mercado para conseguirem surgir. Um músico pode fazer isso, mas se ele tem um bom empresário, que o conhece e está de acordo com seus ideais e seus desejos, ele pode continuar criando enquanto o empresário fica detectando as oportunidades de mercado.
maio 7, 2015 No Comments