Stanley Kubrick por Martin Scorsese
Em 1999, alguns meses após a morte de Stanley Kubrick, não foi surpresa, no momento da estreia de “De Olhos Bem Fechados”, o fato de o filme ser tão mal compreendido. Quando olhamos para o passado e nos interessamos pelas reações, na época, aos filmes de Kubrick (com exceção dos mais recentes), percebemos que, a princípio, todos foram mal compreendidos. Somente depois de cinco ou dez anos acabávamos nos dando conta de que “2001: Uma Odisseia no Espaço” ou “Barry Lyndon” ou “O Iluminado” não eram parecidos com nada do que os havia precedido ou seguido.
Se Kubrick tivesse vivido o bastante para assistir ao lançamento de seu último filme, sem dúvida alguma teria ficado decepcionado com as reações hostis que ele provocou. Mas, certamente, no final das contas, teria relativizado esse fato e passado a outra coisa. É a sina de todos os verdadeiros visionários que não tomam caminhos repisados. Artistas do calibre de Kubrick têm mentes brilhantes e dinâmicas para imaginar o mundo em movimento, para compreender não apenas de onde vem, mas para onde vai.
Consideremos “De Olhos Bem Fechados”. Muitas pessoas foram desestimuladas pelo lado irreal do filme: as ruas largas demais de Nova York, a cena pouco crível da orgia, o desenrolar propositalmente lento da ação. Tudo isso é verdade, e, se o filme tivesse a pretensão de ser realista, essas críticas seriam perfeitamente aceitáveis. Mas “De Olhos Bem Fechados” inspira-se numa novela de Arthur Schnitzler intitulada “Breve Romance de Sonho”, a história da ruptura de um casamento contada com a lógica de um sonho. E como em todo sonho, você não sabe realmente quando entrou nele. Tudo parece verdadeiro, como na vida, mas diferente, um pouco exagerado, um pouco defasado; as coisas parecem acontecer como se tivessem sido programadas, às vezes em um ritmo estranho, do qual é impossível escapar.
O público não estava nem um pouco preparado para um filme onírico que não se apresentava como tal, não dava os sinais habituais – névoa, pessoas aparecendo ou desaparecendo à vontade, ou levitando. Como “Viagem à Itália”, de Rosselini, um filme também completamente incompreendido em sua época, “De Olhos Bem Fechados” conta a dolorosa jornada de um homem e de uma mulher que, no fim, agarram-se um ao outro. Os dois filmes são de uma aterradora autoexposição. Ambos perguntam: até que ponto pode se confiar em outro ser humano? E acabam de modo hesitante, mas também esperançoso, honesto.
Assistir a um filme de Kubrick é como ver o cume de uma montanha a partir do vale. Nós nos perguntamos como alguém pôde subir tão alto. Há em seus filmes trechos, imagens e espaços carregados de emoção que têm uma potência inexplicável, uma força magnética que nos aspira lenta e misteriosamente: o itinerário do menino percorrendo os intermináveis corredores do hotel em seu velocípede em “O Iluminado”; o silencio monumental do espaço sideral em “2001, Uma Odisseia no Espaço”; o ritmo inumano da primeira metade de “Nascido Para Matar”, que vai num crescendo até sua resolução lógica e sangrenta; a espetacular sala de guerra de “Dr. Fantástico”, a um só tempo aterrorizante e cômica; o futuro brutalmente pop de “Laranja Mecânica”; a intimidade crua dos diálogos entre Tom Cruise e Nicole Kidman em “De Olhos Bem Fechados”.
Eu não poderia dizer se há um filme de Kubrick que eu prefira, mas o fato é que “Barry Lyndon” exerce sobre mim um fascínio particular. Acho que isso se deve à emoção que caracteriza esse filme. A emoção é veiculada pelo movimento da câmera, a lentidão do ritmo, a maneira como os personagens evoluem em relação ao seu entorno. Ninguém entendeu isso quando o filme foi lançado. Ainda hoje, alguns não o compreendem. Assistimos, um plano cativante atrás do outro, à metamorfose de um homem que passa da mais pura inocência ao refinamento mais glacial, e, para terminar, à amargura mais fúnebre – pois sua sobrevivência depende disso, simplesmente. É um filme terrível, pois toda aquela beleza iluminada por velas é apenas um véu dissimulando a crueldade mais abjeta. Mas uma crueldade verdadeira, daquelas cujos estragos podemos constatar todos os dias na boa sociedade.
Stanley Kubrick era um dos únicos mestres modernos que tínhamos, e esta última edição do livro definitivo de Michel Ciment, “Conversas com Kubrick”, é uma contribuição inestimável. Acompanhei e estudei regularmente a obra de Kubrick durante anos. Ele era único, na medida em que, a cada novo filme, redefinia esse meio de expressão e suas possibilidades. Mas era mais que um simples inovador técnico. Como todos os visionários, ele dizia a verdade. E, por mais que fiquemos à vontade com a verdade, ela sempre provoca um choque profundo quando somos obrigados a encara-la.
Martin Scorsese, junho de 2002. Prefácio de “Conversas com Kubrick“.
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