Comprando vinis com Robert Crumb
O celular avisa que chegou uma mensagem: “Deixa falar. O Crumb odeia tirar foto e jornalistas. Então aja que nem gente normal que gosta de música e só. risos”. Passam de 9h30 da manhã de uma terça-feira de sol e vento frio em São Paulo. Minha máquina digital está na mochila junto com meu exemplar de “Blues” (o qual escrevi sobre no Scream & Yell em 2005 – leia aqui), mas tietagem é a última coisa que me vem à cabeça quando penso em Robert Crumb. Em qualquer pessoa.
Seu amigo e também quadrinhista Gilbert Shelton é o primeiro a descer para o saguão do hotel. Folheia um exemplar da Folha de São Paulo enquanto conversa com um pessoal da HQ Mix que veio entregar um prêmio para Crumb, por “Gênesis”. Depois nos diz que o que ele gosta mesmo é de jazz (“O Crumb odeia”), cita Gilberto Gil quando perguntado sobre música brasileira e lembra que seu amigo, certa vez, ficou 11 horas em uma loja olhando vinis calmamente. O dia prometia.
Crumb desce logo depois acompanhado de Aline, sua esposa, de cabelos e meia arrastão vermelhos e muita, mas muita simpatia. Eu e um amigo (Guss, que conhece mais de Crumb que eu, e por isso foi escalado para essa missão) somos apresentados como “os caras que vão te levar para olhar as lojas de vinis de 78 rotações”. Crumb sorri para nós, mas logo é fisgado pelo pessoal da HQ Mix, que quer entregar-lhe o prêmio e conversar um pouco. “Vou guardar este troféu junto com os outros”, comenta o cartunista. Aline não se contém: “Você jogou todos os outros fora!”. Crumb olha de lado: “Sh-sh-sh-s-s-s”.
Num canto da sala, Aline conta que o marido ralou muito em “Gênesis”, adaptação para os quadrinhos do primeiro livro da Bíblia. Consta que foram quatro anos de trabalho. “Foi muito cansativo. Ele ficava dias e dias desenhando. Alugamos um chalé no alto de uma montanha, ele trabalhando como um condenado, e a coisa não terminava”. Em seguida, fotos com o troféu. Mesmo não curtindo o momento, Crumb trata a todos da melhor maneira possível, sem demonstrar impaciência.
Sônia, que traduziu diversos textos do autor para o português, conta que o Prêmio Astronauta é como se fosse o Oscar dos Quadrinhos no Brasil. Troféu em punho, Crumb sarreia: “Eu quero dedicar esse prêmio para a minha mãe, para a minha mulher, para o meu editor, para os rapazes que vão me levar para comprar discos de 78 rotações”. A conversa se estica. Sônia ganha um autógrafo desenho (veja aqui) e quase chora de emoção.
Já são quase 10h40 e ainda estamos todos no saguão, porém a última foto se aproxima. Na porta do hotel, Aline nos olha e gesticula com a mão: “Tirem ele daqui, tirem ele daqui”. Assim começa o nosso dia Crumb: eu, Guss e Robert atravessando a Rua Pedroso de Morais em direção a loja Eric Discos. Andamos duas quadras e ele explica o que quer: “Música brasileira dos anos 20 e 30”. O músico e dono do selo YB Mauricio Tagliari fez uma lista para ele, que destaca Pixinguinha como o tesouro maior.
A Eric Discos é um paraíso para quem gosta de vinis. Perto do caixa, no alto, um exemplar do álbum “Secos e Molhados Ao Vivo” custa apenas R$ 240. Porém, os vinis de 78 rotações estão nos caixotes mais próximos ao chão, todos sem capa. Os 78 rotações (que Crumb coleciona) surgiram em 1915 e foram retirados de circulação na década de 60, substituídos pelo vinil de 33 rotações, que reinou até o aparecimento dos CDs e do MP3 (mas que ensaia um retorno saudosista).
Ou seja, estamos falando de discos de, no mínimo, 50 anos, mas Robert quer coisas ainda mais antigas, ou em suas palavras, música brasileira tradicional. As pilhas de 78 rotações são enormes, os discos estão velhos e sujos, mas Crumb parece se divertir. Ele pega um vinil, lê o selo e explica para nós que pela borda do disco ele consegue identificar a época em que foi feito. “Esse é dos anos 20, italiano”, diz em certo momento. “Muito raro”, completa depois de jogar a bolacha preta de selo azul na pilha dos dispensados.
Cada Carlos Gardel que aparece (e são muitos) é saudado com um “bleargh”, e a maioria da pilha não interessa. A palavra mais usada é “Try”, que ele usa para explicar que não tem a mínima idéia do que seja aquele disco que ele acabou de separar para levar, mas vai tentar ouvir. Na pilha de discos que vão para a França com ele estão títulos de Heleninha Costa, Garoto, Quinteto Todamerica e Trio de Ouro com Dalva de Oliveira, além de alguns discos de samba com o selo em japonês.
Uma parte de mim (o jornalista) pede para que eu encoste-se em algum canto da loja e faça uma foto de Crumb olhando atentamente os discos. A imagem é poética, bonita, mas a outra parte reluta, menos por medo de ser descoberta na hora do clic, mais por respeito de um momento tão particular de uma pessoa comum. Tento apenas uma vez, e desisto. Me sinto culpado, como se estivesse roubando a alma do fotografado (meu deus, como paparazzis conseguem dormir?).
Penso em mim (a pessoa normal), rato de lojas de CDs, que passa boa parte do tempo das viagens enfurnado em lojinhas (em Berlim, Roma, Atenas, Londres, Barcelona, Bruxelas ou Glasgow). Já tenho uma lista mental de CDs que gostaria de encontrar, e na maioria das vezes não os encontro, mas saio sempre de uma dessas lojas com algo bacana que eu não sabia que existia. E fico feliz. Assim como Crumb, eu não ia querer gente me fotografando e/ou querendo conversar sobre a minha profissão na hora em que eu estivesse procurando por um disco. Entendo perfeitamente esse lado dele, e respeito.
Na Eric Discos ele não encontra nada entusiasmante, mesmo assim compra 17 discos que vão custar a fortuna de… R$ 7 (“Two euros”, explicamos pra ele, que sorri feliz, embora já deva estar acostumado com a pechincha). Da Eric Discos partimos em direção a lojas no centro de São Paulo acompanhados de Rogério de Campos, manda chuva da Conrad Editora. Não fui a Flip, mas pelos comentários de amigos posso garantir que os 40 minutos de conversa no taxi foram muito melhores que a palestra de Paraty. Fácil.
Crumb relembrou momentos da infância, detonou Frank Miller, Neil Gaiman e Alan Moore (“Eles já disseram que gostam de mim, mas não gosto do trabalho que eles fazem. Não são interessantes para mim”), explicou porque não vai a Comic-Con (“Não há nada lá que me interessa”), falou de “Gênesis”, comparou São Paulo com Nova York várias vezes e ficou completamente apaixonado pelas pichações que viu pelo caminho: “Isso é único no mundo”, comentou. No papo muita coisa sobre música, drogas e quadrinhos.
Na segunda loja, menos farta que a primeira, ele pegou mais dois discos. Ainda passamos em uma terceira, fraca, e partimos para o almoço em um restaurante da Vila Madalena. Na mesa, enquanto esperávamos o restante da comitiva, Guss pediu indicações de bluesmens pré-guerra para ir atrás. Famoso conhecedor do tema, Crumb foi didático. Listou uns dez nomes destacando Charlie Patton.
Após o almoço, uma esticada até o Beco do Batman, na Vila Madalena, que deixou o casal impressionado (Aline de câmera em punho). Foi lá que consegui essa última foto que ilustra o post, ele olhando atentamente um grafite enquanto outro parece devorá-lo. Crumb parecia estar curtindo tanto o passeio, que não tive coragem de tirar meu “Blues” da mochila e pedir um autógrafo.
E autógrafo pra que? Para exibir aos amigos como se fosse um troféu? Grande bobagem. Nessas quase seis horas que saímos juntos caçando velhos vinis por São Paulo ele não foi Crumb, uma lenda dos quadrinhos, mas Robert, um apaixonado por música antiga. Alguns minutos após deixá-los em um taxi, felizes, meu celular mostrava uma nova mensagem recebida: “Eles adoraram vocês”. Para mim, basta.
Leia também:
– Gênesis, de Crumb, vence HQ Mix de Edição especial estrangeira (aqui)
agosto 11, 2010 5 Comments