Sobre o amor, a música e outras bobagens
Dias atrás o cansaço bateu tão forte que a inevitável vontade de jogar tudo para o alto fez aquela visita corriqueira. Os amigos apareceram, deixaram comentários especiais, tão especiais que me sinto até envergonhado de agradecer. Estamos todos no mesmo barco, afundando, e por mais que essa vontade feladaputa de mandar tudo a merda seja tentadora, ainda não é hora.
Mesmo assim, devo e preciso agradecer ao Murilo, ao Carlos, ao Márcio, ao Júnior, à Cris, ao André, à Erika, ao Daniel, ao Giancarlo, ao Ivan e ao Samuel por dividirem impressões com seus comentários e fazer este espaço tão impessoal parecer uma mesa de bar, e vocês todos grandes amigos. Coisas do século 21. E tem gente que ainda tem medo da internet. Eu só posso agradecer pelos amigos que tenho.
Na sexta realizamos a terceira edição da Festa Scream & Yell, na Casa Dissenso, e em algum momento ali pelo meio do show, enquanto eu filmava a apresentação de Romulo Fróes que estava sendo transmitida via web, alguma ficha caiu. O cansaço dos dias anteriores foi deixado de lado por uma alegria imensa, que tem uma explicação muito simples, mas que se perde na correria do mundo moderno: o amor por algo.
No meu caso, eu amo a música de uma maneira tão intensa que seria tolo tentar traduzir em palavras. Eu não toco nenhum instrumento, mas a música exerce um poder sobre mim que influenciou alguns dos principais passos da minha vida. Eu não estaria aqui se não fosse a música. E não estaria só não conversando com você agora, mas o Scream & Yell não existiria, e eu não conheceria todos os meus amigos. Minha vida seria outra.
Se essa outra vida seria melhor ou pior, quem vai saber. Não tenho base nenhuma para falar dela, apenas algumas suposições que indicam que escolhi o caminho certo. No fim das contas, amo a pessoa que sou hoje, e a música tem boa parte na construção da personalidade desse cara que conversa com você agora. Já escrevi dezenas de vezes: minha alma está realizada faz tempo, o que não quer dizer que vou desistir do mundo.
E foi ali, sei lá, entre “Do Ponto do Cão”, “Qualquer Coisa em Você Mulher”, “Ela Me Quer Bem” e “Para Fazer Sucesso” (entre tantas outras canções brilhantes) que percebi que faço tudo que faço porque amo a música. Porque ali, com uma câmera na mão aos pés de uma grande banda, me emociono. O som que sai dos altos falantes invade o meu coração e me faz ser uma pessoa melhor. Em “O Chão Que Ela Pisa”, Salman Rushdie descreveu com soberba isso que estou sentindo.
“É um mistério tão alquímico quanto a matemática, ou o vinho, ou o amor. Talvez os pássaros tenham nos ensinado. Talvez não. Talvez sejamos, simplesmente, criaturas em busca de exaltação. Coisa que não temos muito. Nossas vidas não são o que merecemos. De muitas dolorosas maneiras elas são, temos de admitir, deficientes. A música as transforma em outra coisa. A música nos mostra um mundo que merece os nossos anseios, ela nos mostra como deveriam ser os nossos eus, se fôssemos dignos do mundo”.
No entanto, o momento de sublimação acontece quando um mero espectador do mundo como eu consegue dividir esse amor pela música com outras pessoas. Então lá estou, sentado com uma câmera na mão quando percebo que no mesmo lugar existem dezenas de outros amigos aproveitando esse momento mágico de felicidade sonora. E tenho participação nisso. É um sentimento que poderia ser descrito como o nirvana para os budistas, um estado de calma, paz, pureza de pensamentos, elevação espiritual.
E tudo isso por causa da música, por causa de um show.
No palco, o trio afiado que acompanha Romulo Fróes soube usar com excelência a qualidade de som magnífica da Casa Dissenso. Era possível ouvir os mínimos detalhes do som do grupo. Do baixo afiado de Marcelo Cabral à levada de bateria singular de Pedro Ito até os devaneios enlouquecedores da guitarra de Guilherme Held, tudo flutuava no ar com uma qualidade raramente vista na noite paulistana, em que os detalhes das canções são sufocados pelo tilintar de garrafas vazias de cerveja arremessadas ao lixo.
À frente do grupo, Romulo Fróes dedicou-se a embaralhar as músicas de seu álbum duplo, “No Chão Sem o Chão”, e entregá-las ao público alguns quilômetros à frente das versões registradas em disco. O som amadureceu no palco, e a banda soa à vontade, brindando os presentes com “Nada Disso É Pra Você” (canção de Romulo e Clima gravada no segundo disco de Mariana Aydar) e dois belos números inéditos, que contam com a participação de Rodrigo Campos: “Onde Foi Que Nunca Vem” e “O Filho de Deus”.
Lili, que estava fazendo as fotos que ilustram esse post, em certo momento me disse ao pé do ouvido. “Esse é o melhor show que eu vi do Romulo”, corroborando minha própria opinião. A apresentação termina com “A Anti-Musa”, um fragmento de espaço/tempo que marca o encontro improvável de Nelson Cavaquinho com Sonic Youth. O noise tomou conta do ambiente, em quase dez minutos de delírios musicais.
Grandes shows podem ocorrer em qualquer cantinho do planeta, porém, muitas vezes, não estamos na vibe para assisti-los. Sabe aquele ditado que diz que o apaixonado percebe com mais facilidade as belezas do mundo? Isso. Um show não depende só de quem está no palco, mas sim de toda uma constelação de acontecimentos que leva cada pessoa a estar naquele lugar no mesmo momento. E o sentimento que nasce desse encontro pode gerar mil e uma interpretações.
A minha sobre a noite de sexta-feira é a seguinte: o melhor lugar do mundo para se estar entre 22h de sexta e 3h do sábado era a Casa Dissenso, na Rua dos Pinheiros, 747. Eu não queria estar à beira da Torre Eiffel, em Paris, na Piazza San Marco, em Veneza, no melhor restaurante do mundo, em qualquer outro show que fosse. Se eu tivesse que voltar no tempo, agora, quereria estar ali, no mesmo lugar, sentindo aquilo novamente.
E isso tem muito a ver com a presença de dezenas de amigos (e o Eric, a Muriel, a Lita, o João e o Elson, da Casa Dissenso, já se incluem nessa categoria), que não só foram para ver o show, como também para apoiar o trabalho que eu e o Tiago Agostini estamos fazendo. A vibe do lugar era tão boa, mas tão boa, que até deu vontade de fazer como Marcel Duchamp, e condensar “50 Miligramas do Ar da Casa Dissenso” num vidrinho, para guardar.
Uma das coisas que tiro dessa noite especialíssima é que nesse processo todo que estamos vivendo no cenário brasileiro, amar a música é essencial. Ultimamente a música tem sido deixada em segundo, terceiro plano enquanto a política e os desejos pessoais tomam a frente. Não tem como dar certo, pois é um sentimento oco, falso, sem alma. Pensa-se o formato, organiza-se o movimento, mas o mais importante é deixado de lado, como se a música fosse um mero adereço.
“Gosto de não ter de ouvir música porque tenho que ouvir música, mas ouvir música porque sem ela não consigo conceber a própria vida”, escreveu certa vez Ana Maria Bahiana, uma apaixonada. O show foda do Romulo Fróes na Casa Dissenso me trouxe de volta essa sensação que a Ana descreve, e encerrou de maneira brilhante o primeiro semestre de atividades do Scream & Yell. Agora é se concentrar na viagem e ir matutando um monte de novidades legais que vão pintar em junho.
O site não para nesse período de viagem. Além do diário de férias (que você poderá acompanhar aqui pelo blog) teremos as entrevistas, os textos de cinema, música, cobertura de shows e tudo aquilo que movimento o site normalmente. Scream & Yell 10 anos amando a música. E viagem na bota. Obrigado de coração pela paciência, pela leitura e pelos pensamentos positivos. É hora de seguir em frente.
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