Cinema: “Sangue Negro”
“Sangue Negro”, de Paul Thomas Anderson – Cotação 5/5
Quando você estiver preparando-se para adentrar a sala de cinema para assistir a “Sangue Negro”, quinto longa do cineasta Paul Thomas Anderson, faça uma limpeza em sua memória e esqueça todo e qualquer filme que você tenha visto nos últimos meses. Na verdade, o ideal é que você entre na sala encarando “Sangue Negro” como o primeiro filme de sua vida, e todos os demais a partir de então soaram menores, incompletos, mero entretenimento para os olhos enquanto seus dentes mastigam pipoca aguardando o final provável em que o mocinho se dá bem.
Peço esse exame de consciência, pois acredito que poucos dos leitores que visitam este espaço puderam assistir a filmes clássicos dentro de uma sala de cinema. Uma coisa é você ver “Laranja Mecânica” na sala de sua casa, e mesmo que você tenha um senhor home theater, nunca conseguirá chegar perto – um milésimo que seja – da experiência que foi, para o público, ter assistido ao filme em uma sala escura, na época de seu lançamento. Outros filmes clássicos concorrem a tal avaliação, mas quantos filmes definitivos tivemos nos últimos 20 anos?
Arrisco-me a citar um: “Magnólia”. Outro: “Sangue Negro”. Oito anos separam o primeiro do segundo, e o que aconteceu com o mundo neste tempo? Muita coisa, mas vou citar apenas três, as três relacionadas aos Estados Unidos da América: houve um violento atentado ás Torres Gêmeas, mais uma guerra manchando de sangue as páginas de História e uma reeleição forjada. Três fatos correlacionados que permitem imaginar que, mesmo sendo muito otimista, o mundo não melhorou absolutamente nada nestes oito anos. Pode-se até dizer o contrário.
“Magnólia” era uma obra que exaltava o perdão, mas o perdão só surgia na tela após o espectador estar fustigado até a alma pela culpa dos personagens que observava. Isso era oito anos atrás. Agora, não há perdão. Não há perdão em “Sangue Negro”. Nem uma chuva de sapos poderia salvar o personagem Daniel Plainview, porém, a grande “piada” proposta por Upton Sinclair – autor do livro “Oil” (que serve de base para o roteiro) – e comprada por Paul Thomas Anderson é: Daniel Plainview não precisa do perdão. A parcela católica do mundo afundada no exercício da culpa nunca irá conseguir entender isso, mas não tem jeito, nem todo mundo precisa do perdão divino.
Daniel Plainview (Daniel Day Lewis excepcional) é um mineirador em busca de fortuna e poder. A seqüência inicial de “Sangue Negro” – de fotografia belíssima e praticamente nenhum som fora o da introdução gótica e épica que abre o filme de forma acachapante – exibe um homem de personalidade forte, que não se deixa abater por ninguém e por nenhuma adversidade. Ela procura por pedras preciosas e elas saem de cena quando o petróleo começa a brotar do solo pátrio. Plainview passa a ser um explorador voraz e um negociante impiedoso que oferece seus serviços como se estivesse oferecendo ajuda e faz tudo o que precisa ser feito para ter aquilo que queria em suas mãos.
Melhor frisar a última frase do parágrafo anterior: Plainview faz tudo o que precisa ser feito para ter aquilo que quer em suas mãos. Tudo. “Sangue Negro” foge do padrão pré-fabricado dos roteiros hollywoodianos: não há grandes reviravoltas na história, mas sim um crescendo mortífero que joga o espectador nos braços de Daniel Plainview, e ele só o solta na arrepiante, grandiosa, épica e sensacional cena final, não a toa, a grande cena de todo o filme. Até lá você terá que suportar e entender (se for possível) o que move nosso homem: o prazer pela competição, o ódio contra tudo e todos (todos!) e o desejo de isolamento total e completo.
Não há charme, nem sedução. Não há paz, nem perdão. Haverá petróleo. Haverá sangue. Negro e vermelho. Haverá dinheiro. Daniel Plainview personifica o predador e com ele – parodiando outra obra de arte no cinema em 2007 – os fracos não têm vez. Como pode se esperar de uma pessoa tão destrutiva, o grande foco de destruição é ele mesmo, e o trecho final reitera essa premissa. Tanto que após todo o desenlace da trama, a sensação de vazio é algo tão forte que poderia engolir o mundo. Duas vezes. Sem charme, nem sedução. Não há nenhuma atração em “Sangue Negro” além do inevitável prazer cinematográfico, porém, a dualidade insiste em questionar: porque sofremos tanto? Provavelmente – uma resposta vazia, como o filme – sofremos para aprender, mas tudo isso é ralo demais, escapa pelos dedos com oxigênio, como sangue e petróleo.
É impossível imaginar um próximo passo para Paul Thomas Anderson. “Sangue Negro” é um cinema tão perfeito em seus detalhes que suscita a clássica pergunta: o que fazer após atingir a perfeição? Essa resposta fica em segundo plano no momento já que “There Will Be Blood” (titulo original do filme) chega aos cinemas brasileiros na próxima sexta-feira, e o agora é mais urgente que o futuro. Você tem alguns dias para limpar o cache de sua memória e dedicar-se completamente ao filme, à trilha estupenda do Radiohead Jonny Greenwood, à atuação espetacular de Daniel Day Lewis e ao ótimo Paul Dano (que interpreta um jovem pastor em uma nova Igreja). Sobretudo, você tem tempo para imaginar – antes de ver o filme – que “Sangue Negro” está em outro patamar de cinema, alguns degraus acima da média comum que preenche as salas de exibição: o das obras-primas. Isso talvez faça o filme descer mais fácil… mas não impede o gosto amargo nos lábios de nossa alma.
fevereiro 11, 2008 No Comments
Wado e o “Terceiro Mundo Festivo”
Meu primeiro contato com “Terceiro Mundo Festivo”, quarto álbum do cantor e compositor Wado, se deu no final de agosto de 2006. Ainda acompanhado pelo grupo Realismo Fantástico, Wado se apresentou ao vivo no Studio SP, em São Paulo, tocando algumas canções novas e, principalmente, entortando as velhas com alfinetas de eletrônica que marcavam seu retorno aos samplers e beats via mpc. Em um bate papo na época ele avisava: “‘Terceiro Mundo Festivo’ trata do uso da eletrônica pelo terceiro mundo, de como as adversidades formularam uns métodos e sonoridades específicas”.
Após um longo período de gestação, mudanças de capitais – Wado saiu de São Paulo, foi para o Rio, montou o Fino Coletivo com um galera estilosa, deixou o grupo após o lançamento do bom CD homônimo e voltou para Maceió, onde reside novamente – e experimentações sonoras, “Terceiro Mundo Festivo” finalmente chega em formato MP3 com download gratuito no site do artista. “O disco é independente e poderá ser downloadeado sem restrições. Fora isso prensei (uma tiragem) em SMD, mídia que tem o preço final pro consumidor a R$ 5?, contou em papo com Lucas Santtana, que lançou um álbum também livre para download.
O download livre é algo que Wado vem defendendo já faz um bom tempo. Seus três álbuns anteriores (”Manifesto da Arte Periférica”, “Cinema Auditivo” e “A Farsa do Samba Nublado”) já estão liberados faz mais de dois anos. “Terceiro Mundo Festivo” se junta à esta discografia particular acrescentando ainda mais flagrantes do modo totalmente peculiar do compositor enxergar a música composta longe demais das capitais, manifesto das periferias de um imenso Brasil sem nome, lenço e nem documento, mas que respira música que, antigamente, nascia de batidinhas em caixinhas de fósforo, e agora surge em estúdios caseiros, com microfones baratos e pouco conhecimento técnico, mas com muita urgência, energia e gana.
Para adentrar ao território deste “Terceiro Mundo Festivo” é preciso se desamarrar de expectativas. “A Farsa do Samba Nublado”, álbum anterior, arranhava a perfeição amparado em sambas tortos, violão encharcado de wah-wah e muita melancolia. Quase não há violões presentes em “Terceiro Mundo Festivo” (o instrumento está lá no fundo, distante, escondido na mixagem). A estética sonora que Wado começara a apresentar desde aquele no show no Studio SP, em agosto de 2006, e que foi se adaptando e fortalecendo durante um ano e meio, é centrada em uma nova formação de banda com baixo, bateria, programações e teclados, mais um cello aqui, uma flauta transversal ali, para dar um charme.
O disco abre com “Pendurado”, faixa que fala sobre liberdade, destino e morte: “Olha ali sou eu, pendurado no fio desencapado do poste de alta tensão”, canta Wado sobre uma base de bateria seca, vocalizações femininas (Cris Braun, Jan Aline e Mirian Abs) e clima ensolarado. A liberdade volta a ser citada no delicioso samba eletrônico “Fortalece Aí”, que se ampara em Martinho da Vila e Rui Monteiro enquanto o refrão pede de forma urgente: “Fortalece Aí, meu coração, daquela força, meu coração”. Um cello pontua o final da canção de forma comovente.
Duas canções já vinham se destacando nas apresentações ao vivo de Wado de dois anos pra cá: a pornográfica “Teta” e a politizada “Reforma Agrária do Ar”. A primeira – do irresistível refrão: “Está guardado pra você amor… aceite, aceite / Está guardado pra você amor… o leite” – permanece sinuosa e dançante, com um q de funk carioca. Já “Reforma Agrária do Ar”, que versa sobre a concessão das rádios públicas, abre com uma voz atolada em efeitos, recupera o vocoder, tem clima de reggaeton no refrão empolgante e crava: “Grita pra acontecer, urge de urgência, assim irá prevalecer a reforma agrária do ar / É contra o artista mudo / é contra o ouvinte surdo / é contra o latifúndio das ondas do rádio”.
O samba torto – com inflexões afoxé e reggaeton – ainda inspira o romantismo de “Leva” (diz o refrão: “Eu canto e peço a todo santo: me leva onde você espera”), da ótima “Recado” (que abre provocando: “Ela adora me fazer chorar / Que palavras eu devo usar? / Uma que encaixe em seu quadril”) e a empolgante “Faz Me Rir”, uma das canções do álbum que mais remetem a coisas que Wado já fez anteriormente (e que soa como um híbrido da urgência de “Manifesto da Arte Periférica” com pitadas da melancolia de “A Farsa do Samba Nublado”).
Duas canções saltam aos ouvidos e batem forte no lado esquerdo do peito. “Melhor” traz um violoncelo jogando confetes sobre um mantra eletrônico de baixo, bateria e teclado. Na letra, o personagem tenta formar um novo eu que agrade ao seu par. “Eu quis mudar pra você ver / Que nem sempre é tão difícil a gente perceber / Se estou melhor, quem vai saber? / Se o que eu fiz foi para agradar você”. O refrão é algo que gruda na primeira audição e vai te acompanhar por dias a fio: “Olha meu novo sapato / Estou de fato tentando me adequar / ao seu cabelo, ao seu modelo”. Uma pérola pop.
Já “Fita Bruta” é uma daquelas canções que já nascem clássicas. Versa sobre os mecanismos da indústria (como se fosse uma “Cadê Teu Suin?”, do Los Hermanos, vista por outro ângulo) e aprofunda a crítica – de forma genérica – ao próprio autor, que se censura na hora da criação. Não à toa, usa palavrões e explicita formas de sedução necessárias para se sobreviver no showbusiness: “Ficamos na fita bruta que algum filho da puta decupou / Não entramos na comédia e é preciso fazer média com o maldito diretor / (…) Não entramos na novela, nem precisa acender vela que o roteiro já fechou / Me disseram que é uma bosta, mas que todo mundo gosta do mocinho sofredor / E esta é a maior censura, essa que não tem cura, que nasce dentro do autor”.
Quem vem acompanhando a carreira deste catarinense (de nascimento, alagoano de coração) não irá ficar surpreso com a qualidade de “Terceiro Mundo Festivo”. O disco soa como uma continuação de “Manifesto da Arte Periférica” – sem negar olhares para “Cinema Auditivo” e “A Farsa do Samba Nublado”, este último, principalmente, nas letras – e abre muitas possibilidades para a música brasileira, desde sua sonoridade bem resolvida (o disco foi todo gravado em Maceió) até sua forma de distribuição gratuita. Neste momento de transição pelo qual a indústria da música está passando, Wado resume de forma perfeita a situação: “Perdemos os talheres e voltamos a comer com as mãos. Temos de nos educar, pois assim fica feio. Acho que todo trabalho deve ser remunerado, e acredito que aos poucos isso vai se restabelecer” (aspas do papo do compositor com Lucas Santtana).
“Terceiro Mundo Festivo” – assim como os três álbuns anteriores do compositor – está liberado para download no endereço oficial de Wado e surge com o primeiro grande lançamento da música nacional em 2008. A Internet apagou as fronteiras existentes em mapas entre as grandes capitais mundiais, está derrubando a toda poderosa indústria da música (a tendência é que mais e mais discos cheguem ao público sem passar por grandes conglomerados de entretenimento) e, apesar dos poucos recursos, as novas tecnologias estão permitindo o lançamento de álbuns de qualidade fora dos grandes centros. Periferia, você sabe, é periferia em qualquer lugar. “Terceiro Mundo Festivo” respira o sol de Maceió, namora os blocos africanos de Salvador, seduz São Paulo e Rio de Janeiro e faz festa no coração de todas as capitanias hereditárias para além (e avante) do meridiano de Tordesilhas. É um disco de inspiração terceiro-mundista e vocação cosmopolita, como são os de M.I.A., Timbaland, De Leve, Ali e Vieux Farka Toure, entre muitos outros. A inteligência a favor da arte derrubando fronteiras. Desde já, um dos grandes discos nacionais de 2008.
fevereiro 11, 2008 No Comments