Papai Noel mandou um recado
Seguinte, não lembro ao certo quantas vezes insisti para que alguém comprasse algo, seja um CD ou um livro. Acho que já escrevi várias vezes “vá ver este filme”, mas nunca “compre este livro”. E, pelo que me lembro, insisti em um texto para que o leitor comprasse o “Songs For The Deaf”, do Queens of The Stone Age (muito embora eu tenha ido fuçar o jornal Alternative Voices, em que eu tinha uma coluna, visto a resenha, e não encontrado a frase “compre, compre, compre”).
Se grana fosse solução e não um problema, eu juro que entraria numa pilha de mandar um livro de natal para s leitores que me escrevessem, mas como isso ainda não pode acontecer (um dia ganharei o meu primeiro milhão, espere) devido ao estado calamitoso da minha conta bancária, vamos fazer um trato: eu escolho o seu presente, aquele que você vai dar pra si mesmo, você compra, e quando a gente esbarrar em algum lugar (show, festa, discotecagem, jogo do Corinthians na segunda divisão), leva o livro que eu escrevo: “Do Mac, com carinho, para…”
Tô falando sério.
O lance é o seguinte. Recebi hoje, via Submarino, meu presente de natal pra mim mesmo: “1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer”, editora Sextante. O livro é um calhamaço de quase mil páginas (960 para ser preciso) e – na passada de olho que dei – vale muito a pena. Li textos sobre “Born In The USA”, do Bruce Springsteen (”Em seu espírito – amor, ar e honestidade – este álbum é pura alma e coração”), “Ocean Rain”, do Echo and The Bunnymen (”Enquanto o U2 e o Simple Minds tocavam em estádios, o Echo percorria as ilhas da costa oeste da Escócia; ‘Ocean Rain’é a prova do que, em última instância, essa escolha foi mais compensadora”) e “Beach Samba”, de Astrud Gilberto (”Quem pode resistir a um disco que começa com: ‘Stay… and we’ll make sex and music’”).
Ou seja, faltam 998 outros discos para eu ler (e muitos para escutar), mas não é sobre esses discos que eu quero falar. O que quero dizer é que você merece esse livro de natal. Mesmo. Comprei o meu no Submarino por R$ 37,30, frete gratuito (até onde sei, pra todo Brasil), e poucas vezes a relação custo/investimento foi tão proveitosa quanto neste caso. Seria muito melhor se eu tivesse com os links patrocinados ativos no site (para o ano que vem, para o ano que vem), assim até eu conseguia faturar alguns centavos com cada compra que saísse daqui (sacumé), mas a idéia mesmo é que você tenha esse livro em seu colo antes do final de ano, para começar o ano bem. Pois “1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer” é cultura pop de alta qualidade.
Deixa de comprar quatro Rolling Stone (você acha em sebo fácil depois), manera nas vódegas na balada (ao invés de beber três por noite, bebe uma pinga e pronto), aproveita a oportunidade para dar um tempo no cigarro, economiza e compre este livro para você mesmo. Sobretudo, devore cada pedaço dele como se fossem variações da sobremesa que você mais gosta. Tem coisas neste livro para as quais você ainda não está pronto (nem eu), mas que um dia você irá ouvir e, quem sabe, gostar. Coisas de jazz, blues, punk, metal, disco, soul, hip hop, música experimental, dance, world e, claro, o recheio, rock e pop. Coisas finas, garanto.
Decidi escrever tudo isso acima, com toda pieguice que esse texto permite, porque eu adoraria que alguém empurrasse esse livro sobre mim se eu não soubesse da existência dele. E, cá entre nós, se você “perde tempo” visitando este espaço rotineiramente (sei lá, uma vez por dia, por semana, por mês, por ano), este livro é a sua cara, como é a minha. Vai lá. Este é o presente que Papai Noel (velho batuta) quer te dar neste ano. Tem gente que queria um carro, uma casa, o box com as dez temporadas do Friends ou um ticket para assistir a um dos shows da volta do Led Zeppelin, mas estou feliz com este livro em meu colo. Espero que você também fique. Vai lá. Sid Vicious está te encarando.
Feliz Natal
dezembro 11, 2007 No Comments
Cinema: “A Vida dos Outros”
“A Vida dos Outros”, de Florian Henckel von Donnersmarck – Cotação 5/5
Georg Dreyman (Sebastian Koch) é considerado o maior dramaturgo da Alemanha Oriental, tido por muitos como modelo perfeito de cidadão para o país, já que não contesta o governo nem seu regime político. Aparte importante: a história se passa no começo da década de 80, quando um muro (ainda) separava as duas Alemanhas, e a RDA (República Democrática da Alemã), por meio de sua polícia política, a Stasi, vasculhava a vida de seus moradores procurando desertores e pessoas contrárias ao regime, que sumiam na noite para nunca mais voltarem ou eram completamente colocadas à margem na sociedade.
Dreyman não planeja nada contra o governo da RDA, mas o ministro da cultura, Bruno Hempf, tem lá suas dúvidas, e pede a Stasi um pacote completo de escuta telefônica na casa do teatrólogo, motivado primeiramente por desconfiança, e posteriormente por interesses pessoais (sexuais). Anton Grubitz (Ulrich Tukur), um chefão da Stasi, encarrega o amigo Gerd Wiesler (Ulrich Mühe), seu subordinado, para o serviço. Wiesler é um dedicado funcionário do governo que leciona para futuros profissionais da polícia enquanto se gaba de conhecer as artes da tortura emocional em sessões de interrogatório.
Temos, então, quase todas as principais peças no tabuleiro para movimentarmos o roteiro impecável de “A Vida dos Outros” (escrito e dirigido por Florian Henckel von Donnersmarck). A única peça que falta é Christa-Maria Sieland (Martina Gedeck), atriz e namorada do dramaturgo. Christa exala encanto e todas as outras peças, em momentos diferentes do filme, circulam ao seu redor, revelando – talvez – a única fragilidade ideológica da obra: as mulheres (com base neste personagem feminino) são mais vulneráveis, inseguras e maleáveis do que os homens, o que não deixa de ser uma meia verdade (machista, mas meia verdade), e permite indagações que, se não chegam a manchar o brilho poético da obra, abrem uma fresta que pode revelar uma premissa insustentável.
Porém, “A Vida dos Outros” exala muito mais luz e emoção por outras frestas desta casa vigiada 24 horas por dia por agentes da RDA. O capitão Wiesler dedica-se nas análises das escutas e, quando percebe, está completamente envolvido pela vida de Dreyman e Christa. Por outro lado, o ministro pressiona seus subordinados para que eles encontrem algo que possa incriminar o dramaturgo. Há, no personagem do capitão Wiesler, um senso de dever ao governo que se confronta com seu próprio senso de justiça, o mesmo que faz com que ele – friamente – arranque confissões em interrogatórios. É na visão delicada deste embate entre dever e justiça que “A Vida dos Outros” se transforma em poesia cinematográfica.
Seu ápice climático acontece, não à toa, no ano de 1984, e cria um paralelo com a famosa obra de George Orwell – que também discute vigilância estatal e o retorno a um regime parecido com o estalinismo. As citações são várias. Em uma delas, um escritor – simpatizante dos dissidentes – recebe uma máquina de escrever que contém as letras do alfabeto romano para que ele possa redigir um texto para ser publicado do outro lado do muro, pois na RDA era expressamente proibido o uso de uma máquina dessas, e quem as usasse seria tratado como traídor do regime político. Em “1984”, o livro, o estado controlava o pensamento dos cidadãos, entre muitos outros meios, pela manipulação da língua.
O aprofundamento teórico, no entanto, é apenas um verniz que faz brilhar ainda mais uma história tocante, que é contada sem atropelo, exageros ou maniqueísmos. Por mais que a política esteja no pano de fundo de sua história, o filme se impõe como um tratado cuidadoso sobre a natureza do ser-humano e das próprias relações humanas. Em certo momento, o ministro diz ao dramaturgo, em tom de (falso) elogio: “Você acredita que as pessoas mudam… isso é bonito em peças de teatro… mas elas não mudam”. Von Donnersmarck, o diretor, discute essa certeza de seu personagem com muito lirismo.
Com um orçamento ridículo para os padrões hollywoodianos (US$ 2 milhões), “A Vida dos Outros” se vale de um roteiro impecável, atuações convincentes e uma direção tão delicada que nem se faz perceber durante os 137 minutos empolgantes da fita. Além de levar o Oscar de Filme Estrangeiro, o filme conquistou o Independent Spirit Awards e o Globo de Ouro na mesma categoria, levou três estatuetas no European Film Awards (Melhor Filme, Melhor Ator e Melhor Roteiro) e é o recordista de indicações (11 no total) na história da premiação anual da Alemanha.
Muita gente não leva o Oscar a sério, e com certa razão, já que a premiação comete erros históricos e omissões imperdoáveis. Porém, é importante lembrar que nem só de escorregadas vive a Academia de cinema mais famosa do mundo. E no quesito acertos, “A Vida dos Outros”, vencedor na categoria Melhor Filme em Língua Estrangeira do Oscar 2007, é um belíssimo exemplo para ilustrar o caso.
Mais: se houvesse justiça cinematográfica no mundo, “A Vida dos Outros” poderia ser apontado o Melhor Filme de 2006 numa final entre língua inglesa e não inglesa (algo como o Campeonato Interclubes de futebol – hehe). Não que Scorsese não merecesse um Oscar pela carreira (ele merecia, ele merece), mas enquanto “Os Infiltrados” é uma poderosa crônica sobre o submundo (e perda de valores), “A Vida dos Outros” é uma poesia sobre o início da verdadeira revolução: ela começa em nós mesmos. Ambos são filmes impecáveis e sensacionais, mas politicamente, perdoe a pieguice, fico com o segundo.
Ps. Ulrich Müher, falecido neste ano, merecia uma indicação como Melhor Ator, no mínimo.
dezembro 11, 2007 No Comments