Dois discos para você baixar… agora
Toda semana, três ou quatro pessoas (às vezes mais, às vezes menos) me escrevem dizendo que tem uma banda, que gravaram algumas canções e que gostariam de me mandar um CD para eu escutar e – quem sabe – resenhar. Sinto-me sempre elogiado quando alguém leva em consideração o que penso sobre uma música, disco ou mesmo uma banda que está surgindo, mas lá no âmago eu sempre me enrolo numa situação dessas, por que ouvir fitas demo e/ou CDs de novas bandas é um trabalho na maioria das vezes tortuoso, pode acreditar.
Quando me peguei pensando nisso, lembrei-me do Álvaro Pereira Júnior, que em uma coluna de 1999 na Folhateen dizia: “É preciso ter estômago de avestruz para escutar fitas demo. Muitas revistas estrangeiras têm jornalistas que cuidam especificamente de analisá-las. (…) Recebo poucas fitas demo e CDs de estreantes. Ainda bem. Estou velho, rabugento e seletivo, não tenho mais como perder tempo dando ouvidos a amadores” (o texto todo está aqui). Na época, achei que se ele estava de saco cheio disso, que fosse procurar outro ramo para trabalhar, pois se você escreve sobre música precisa estar atento a todas as novidades, e as grandes bandas (TODAS) surgem de uma fita demo, um single ou um CD de estréia. Hoje, mais velho (”rabugento e seletivo”, como o Álvaro se justifica na coluna), entendo a posição dele.
Entendo por que, cada vez mais, ando sem tempo para quase nada. A velocidade do tempo moderno, as facilidades da tecnologia (que ao invés de nos poupar tempo, nos trouxe mais coisas para “perdermos tempo” e nos mostrou uma infinidade de coisas que não sabíamos que existiam) e os afazeres diários se juntaram e se transformaram em uma bola de neve que aumenta sintomaticamente todos os dias. São centenas de discos para ouvir, livros para ler, filmes para assistir, e ainda preciso arranjar tempo para trabalhar, me alimentar e me relacionar. Isso tudo sem contar que grande parte do material que recebo não é destinado a mim (coisas de hard rock e derivados de Red Hot Chili Peppers e Evanescence – será que esses músicos lêem o que eu escrevo faz mais de dez anos?)
Então, depois de três parágrafos reclamões, o leitor pergunta: Por qual você continua aceitando receber fitas demo e/ou CDs de bandas novas se é tão tortuoso assim? A resposta é simples: pelo imenso e inigualável prazer de “descobrir” uma banda nova que me deixe sem fôlego a ponto de eu querer escrever dela, indicar para os amigos, insistir para as pessoas baixarem o disco, irem ao show, se encantarem como eu me encantei enquanto ouvia. É preciso entender que eu escrevo por necessidade da minha alma, por um desejo que surgiu em mim do nada, sem eu saber por quê. Escrevo por prazer. Não dá para perder tempo sendo burocrático ou falando sobre coisas inúteis (a não ser que seja em forma de ironia, a raiva travestida de estilo e inspiração). Tempo é algo sagrado.
Toda essa reflexão surgiu por causa do Lestics, projeto paralelo de dois integrantes do grupo independente paulistano Gianoukas Papoulas (Olavo e Umberto), que lançou dois belíssimos discos gravados em home studio em 2007, “9 Sonhos” em março e “les tics” em outubro, ambos liberados para download gratuito no site oficial do duo (www.lestics.com.br). Olavo fica responsável pelo excelente registro vocal enquanto Umberto se divide entre guitarra, violão, baixo, teclados, gaitas, programações, percussão e voz. Juntos eles fazem um passeio emocionante por melodias calcadas em folk, rock e country criando pequenas odes sombrias repletas de beleza urbana que deixam o ouvinte sem fôlego após a primeira audição.
“9 Sonhos”, como explicita o nome, são nove canções que passeiam pelo universo da memória em um tempo indistinto, mas que permite ligação com a infância e a adolescência. Abre com a deliciosa “Elefantes”, que narra uma pequena fábula cujo personagem aperta a campainha de uma casa e sai correndo (quem nunca fez isso na infância?), mas os moradores da casa são uma família de elefantes, “que vem voando arrasando tudo pelo caminho”. O surrealismo toma conta das letras como em “Mutantis Mutandi” que finaliza dizendo que “a vida é o nada, é a morte, é o parto”. Já a genial “Alguma Coisa Me Diz” filosofa em forma de folk rock: “Eu saio da cama, eu lavo o meu rosto, eu troco de roupa, e desço pra rua / eu entro no táxi, e digo bom dia, apago o cigarro e abro o jornal / mas alguma coisa me diz que nada disso é normal”.
A primeira lembrança que o som do duo resgata são os gaúchos da Graforreia Xilarmônica, mas também é possível identificar influências dos paulistas do Fellini (que além de gravarem seus primeiros discos também em home studio, tinham uma poética muito próxima da que o Lestics exibe) em algumas passagens. Embalada por uma gaitinha, a romântica “O Mundo Acaba” fala de uma garota que tem mais de mil bocas, dois mais braços, dez mil pernas e milhões de seios lindos, e explica no refrão: “Ela vem e me abraça e ai que o mundo acaba”. “Dois Olhos” é climática, psicodélica. “O Rio” é folk alegre. “Tropeço” tem outra letra ótima: “Eu quero parar e começo / Eu quero correr e tropeço”. “Canto de Sereia” é suave enquanto “Escuridão e Silêncio” narra um assassinato em um sinal vermelho. São nove sonhos… repletos de realidade.
No segundo álbum recém lançado, “les tics”, os textos continuam surreais, mas são bem mais diretos como mostra a faixa de abertura, “Tipo” que narra: “Levando em conta a história da família, os quatro anos isolados numa ilha, e a falta de presentes no natal, até que ele é um tipo bem normal”. “Gênio”, a próxima, é uma das melhores do álbum. Abre dizendo que Shakespeare e os gregos já disseram tudo antes para cravar no refrão cruel: “Você tem a alma atormentada de um gênio / pena que te falte uma pitada de talento”. Com o orgão à frente, “Última Palavra” narra um fim de relacionamento cujo forte verso exprime: “Longe demais é o lugar que a gente vai pelo prazer de se arrepender”. Após o tempestade surge a calmaria de “Luz de Outono”, que prevê sabiamente: “Pode ser que algum dia que eu queime os meus livros / Jogue fora os meus discos e quebre a TV / Mas mesmo enjoado de tudo na vida / Eu sei que não vou me cansar de você”.
“Náusea” é sombria (e tem um outro ótimo verso: “O instinto mantém minhas veias abertas”); “Inevitável” é divertida e fala sobre a necessidade de composição de uma canção “pobre de idéias”; “Metamorfose” é uma declaração de amor (no jeito Lestics de fazer declarações de amor: “Ainda me surpreendem as suas metamorfoses / as mudanças de aparência / suas coleções de vozes”); a poética de “Caos” destaca outra grande faixa do álbum (“Não é possível que você não acorde / com o barulho infernal de cada estrela que explode”); a curtinha “Ego” fecha o pacote de MP3 em clima de folk blues. Juntas, as noves faixas de “9 Sonhos” e “les tics” somam 50 minutos de música inspirada, canções prontas para serem devoradas por ouvintes exigentes. Os dois discos estão disponíveis gratuitamente no site www.lestics.com.br, basta um clique sobre o nome do álbum e “salvar” para o seu computador. Minha alma, agora, está satisfeita. Vou voltar para a rotina do dia (que inclui terminar de assistir a trilogia “O Poderoso Chefão”, de Francis Ford Copolla, e ouvir com mais calma “White Chalk”, novo de Polly Jean Harvey), mas se você me conhece, sabe: ainda vamos voltar a conversar sobre o Lestics.
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