Cinema: “Apartamento 7A” se mostra mais uma vítima da faca de dois gumes que é, afinal, a nostalgia

texto de Davi Caro

Poucos fãs de cinema se recusariam a reconhecer a importância e o impacto registrados por “O Bebê de Rosemary” (1968), não apenas para a sétima arte como um todo, mas principalmente para o horror como gênero de apelo nas grandes telas. A adaptação do livro de Ira Levin pelas mãos de Roman Polanski foi além de simplesmente revelar o talento de Mia Farrow no papel da icônica personagem-título: muitos defendem a ideia de que o longa representou uma ruptura com a percepção comercial de filmes de terror junto ao consciente coletivo de sua época – as histórias do conde Drácula de Christopher Lee e Bela Lugosi, ou do monstro de Frankenstein e sua noiva, para citar alguns exemplos, ficaram no passado; em seu lugar, narrativas que desafiavam o status quo e rompiam com os valores bem estabelecidos da sociedade (como a maternidade e a religião) passaram a amedrontar as novas gerações de espectadores, perplexas com o drama da jovem que se vê cercada de uma conspiração macabra que tem como objetivo trazer ao mundo o filho de Satã.

“Apartamento 7A” (“Apartment 7A”, 2024, disponível em streaming via Paramount+) expande o universo introduzido por Levin em sua obra tomando como ponto de partida a personagem Theresa “Terry” Gionoffrio, cuja história pregressa (e trágico destino) são brevemente aludidos no livro conforme a jornada de Rosemary e Guy Woodhouse se inicia. Ambientada na Nova York de 1965 e dirigida por Natalie Erika James (em seu segundo longa) com co-produção de John Krasinski (da franquia “Um Lugar Silencioso”) e Michael Bay (da saga “Transformers”, entre muuuitos outros), a prequel se vale de um elenco enxuto, porém robusto, que inclui a jovem atriz Julia Garner (de “Ozark”) no papel principal, com Kevin McNally e Diane Wiest como o sinistro casal Roman e Minnie Castevet (nos lugares previamente ocupados por Sidney Blackmer e Ruth Gordon, respectivamente, em 1968) e Jim Sturgess (do musical “Across the Universe”, de 2007) como o diretor de teatro Alan Marchand.

Após um acidente que a deixa seriamente debilitada e impossibilitada de participar de espetáculos, a jovem dançarina Terry vê as portas fechando a seu redor, contando apenas com o apoio da amiga e colega Annie (Marli Siu). Uma humilhante audição com Marchand, agravada pelo uso de remédios que servem como uma muleta para a moça, acaba a levando a um encontro com o idoso, gentil e (aparentemente) bem-intencionado casal Castevet. Roman e Minnie tomam conhecimento da difícil situação enfrentada por Terry, e oferecem sua ajuda disponibilizando um apartamento de sua propriedade no luxuoso edifício Bramford (para o qual o mítico Dakota serviu como locação externa, assim como no longa de 1968), para que a bailarina possa habitar enquanto se recupera. É o estopim para aquilo que os fãs do filme original já sabem que vai acontecer: a gentileza do simpático casal dá lugar a comportamentos cada vez mais perturbadores, e um reencontro com (o também residente no Bramford) Alan, que eventualmente começa a abrir portas para Terry retomar sua carreira com resultados inesperados – como que por mágica – se transforma em um pesadelo a longo prazo quando Gionoffrio descobre estar grávida. É uma questão de tempo até uma sinistra trama passar a se revelar, conforme os Castevets se tornam mais e mais interessados, ao ponto da obsessão, no bem-estar e na preservação da criança que a jovem artista carrega em seu ventre. E a vida de Terry se torna uma corrida contra o tempo, em busca de respostas para enigmas que, como não poderia deixar de ser, soam familiares demais para o espectador.

Familiaridade, no fim das contas, pode se tornar uma faca de dois gumes quando explorada em excesso. Por um lado, o trabalho de atuação de Julia Garner surpreende no melhor sentido: longe de calcado na expressividade algumas vezes exagerada de Mia Farrow, sua Terry se mostra mais independente enquanto protagonista, por vezes dando sinais de sua determinação em ser bem sucedida enquanto bailarina, assim como a forma resoluta com a qual sua personagem se encaminha para seu desesperador, e inevitável, clímax. Já Diane Wiest é indefectível em sua caracterização como Minnie, fiel ao histrionismo e a petulância tão bem personificadas por Ruth Gordon, mesmo que sua interpretação possa muitas vezes remeter a uma reflexão maligna do personagem que viveu em “Edward Mãos-de-Tesoura” (1990). Kevin McNally, embora mais contido do que Sidney Blackmer, tem uma participação mais enxuta, ainda que faça valer seus momentos em cena. O cinismo do personagem vivido por Jim Sturgess, contrastando com o restante do elenco, soa caricato em alguns momentos, o que pode desconectar o telespectador, já praticamente ciente das previsíveis revelações da trama no que diz respeito à figura de Alan Marchand.

A cinematografia de “Apartamento 7A”, embora se limite ao alinhamento com a estética sessentista por motivos óbvios, é um acerto e tanto – assim como a escolha de canções pop de época, algo surpreendentemente não tão utilizado no filme original. A trilha sonora, de Adam Price e Peter Gregson, é discreta nos momentos certos e sabe utilizar o silêncio a seu favor, ainda que com leves toques de modernidade que ajudam a cativar os fãs menos propensos aos clássicos. E a inevitável inclusão da bruxuleante faixa “Lullaby From Rosemary’s Baby”, composta por Christopher Komeda, não soa forçada em sua inserção no desfecho, algo que deve servir como um elemento instigante para aqueles dispostos a buscar o filme que antecedeu este – e a história que se sucede.

No entanto, esta também pode ser a grande falha da direção de Natalie Erika James: a verdade é que “Apartamento 7A”, apesar de seus pontos fortes, dificilmente funcionaria como uma obra isolada, cumprindo mais o papel de adendo a uma história fechada e com poucas chances de angariar uma base de fãs além daqueles mais motivados pela nostalgia. Os easter eggs distribuídos ao longo da produção, embora sejam recompensadores aos mais devotos (e aos mais atentos) também podem ser interpretados como acenos preguiçosos. O mesmo serve para determinados detalhes da trama principal, principalmente em referência a uma agressiva dançarina que rivaliza com Terry (vivida por Rosy McEwen) e que termina como dano colateral da conspiração que permeia a jovem grávida e seus arredores.

É importante reconhecer os esforços de ambientar o filme de modo que faça jus à obra de Polanski, ainda que o uso de coadjuvantes que também aparecem na primeira adaptação possa passar completamente despercebidos. É notável a forma com a qual sutis tentativas de expansão do storytelling de Ira Levin – como o trecho em que a personagem de Garner procura a Igreja em busca de ajuda com seu terrível dilema, algo que Rosemary nunca fez – empalidece diante da inserção de uma cena no meio dos créditos, como que garantindo a conexão entre os dois longas. Parece exagerada e talvez desnecessária, tendo em vista a conexão que a esmagadora maioria do público tem com este universo e estes personagens.

Ao fim, “Apartamento 7A” é uma dura vítima da dualidade que habita a nostalgia, este sentimento tão inerente a todos ainda que, ao mesmo tempo, tão limitante. Que a primeira produção de maior projeção de uma diretora como Erika James, tão promissora, seja apenas a porta de entrada para resultados muito melhores. Os acertos, que merecem aplausos, não redimem os equívocos que guiam uma produção que, em muitos pontos, padece de uma triste pobreza (para não dizer “preguiça”) criativa. Vale a tentativa, e o entretenimento de alguns (poucos) bons sustos – mas não espere coragem em meio ao conforto que só a sombra de um grande clássico é capaz de trazer.

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.



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