Cinema: Quase tudo soa artificial em “Prisão nos Andes”, de Felipe Carmona

texto de Leandro Luz

Cinco milicos torturadores condenados pelos crimes cometidos durante a ditadura de Pinochet habitam uma faixa de terra designada a eles aos pés da cordilheira. Nesse amplo espaço, que mais parece um eco retiro, os encarcerados e os carcereiros vivem, dia após dia, uma vida confortável até que um evento atípico transforma a dinâmica monótona do ambiente. Quando um dos torturadores concede uma entrevista para a televisão chilena, pouco cioso das consequências do seu discurso fascista, que exala nostalgia por uma época de intolerância plena, interrompe-se o marasmo e instala-se a desconfiança. Atos violentos e misteriosos são cometidos, passarinhos são enforcados, uma pessoa aparece morta. Medo e delírio nos Andes.

Apesar de instigar curiosidade diante de sua premissa, logo percebe-se que “Prisão nos Andes” (Penal Cordillera, 2023) é uma obra que tem dificuldade para definir o seu tom, forçando a barra para se encaixar na lógica do thriller político, ainda que esteja sempre muito ligado ao drama – uma história baseada em fatos reais – e se arrisque vez ou outra pelo sarcasmo. O grande problema é que nenhuma dessas três abordagens é bem trabalhada pelo roteiro ou pela direção, ambas as funções assinadas pelo estreante em longas-metragens Felipe Carmona.

O humor nunca pega, a violência nunca se materializa de fato, e quando há uma tentativa mais direta de se causar determinada emoção, como em uma das cenas derradeiras do filme, que registra os milicos em close, se lambuzando no banquete oferecido a eles, as escolhas formais só reforçam uma caricatura que, contraditoriamente, o diretor parece constantemente querer evitar. A comparação do filme com “Bom trabalho” (1999), da Claire Denis, feita pelo próprio diretor em entrevistas, só revela como não é sempre que boas referências resultam em um grande filme.

Um dos aspectos mais valiosos de “Prisão nos Andes”, um tanto desperdiçado, é a ideia de que os militares condenados dominam psicologicamente os militares sentinelas. Durante os exercícios físicos matinais da tropa, quem dá as ordens é um dos condenados, munido de apito e autoritarismo (ecos de Sgt. Hartman), bufando frases motivacionais e anticomunistas. Para dar conta desta relação com algum nível de profundidade, o filme logo nos apresenta a Navarrete (Andrew Bargsted), responsável por traduzir de maneira mais concreta toda a sensação de isolamento e inquietude pela qual passam todos os personagens.

Navarrete é o mais próximo de uma ideia de protagonista que o filme consegue construir, pois é a porta de entrada para o espectador no universo proposto – tanto o chileno quanto o espectador do mundo. O personagem serve aos generais assim como os demais soldados também o fazem: eles são faxineiros, cabeleireiros, limpadores de piscina, mordomos e cozinheiros. Porém, Navarrete dá um passo além e se envolve muito mais do que os outros, não por pena ou simpatia, mas quase por indução, como se não houvesse mais nada a fazer além de se deixar seduzir pelos torturadores. A direção de fotografia compõe praticamente todas as cenas externas noturnas com um amarelo delirante, quase como se aquele local – a natureza, os animais, a magnitude da cordilheira – tivesse algo a ver com o delírio que assola a todos, enquanto que nas cenas internas privilegia o jogo de luz e sombras, registrando os personagens em contraluz, certamente a maneira mais comum de se traduzir em imagens um conflito moral. “Algum dia este país vai lhe agradecer”, diz o filho de um dos generais, fotografado em meio às sombras de um quarto mal iluminado. A frase busca retratar o momento atual do povo chileno, fragmentado e dividido entre aqueles que não toleram mais as desigualdades sociais e a impunidade, e os que perpetuam um “pinochetismo” perverso, ancorados em grupos de extrema-direita que perpetuam o autoritarismo e a barbárie.

A trilha sonora original composta por Mariá Portugal e o desenho de som criado por Daniel Turini (os brasileiros dominam o trabalho de som do filme chileno), contribuem muito para essa estilização. Patriotismos à parte, a abordagem sonora é a coisa mais interessante de “Prisão nos Andes”, sobretudo porque é ela que está comprometida em propor uma ideia menos quadrada dos eventos, mais livre em função de sua abordagem abstrata. Com frequência, a composição das imagens caem em ciladas, ou pelo excesso de engajamento com o real ou pela vontade de estilizar ao máximo determinada situação para fugir do compromisso histórico com os fatos políticos. Neste sentido, um dos momentos mais marcantes é aquele no qual o general “cossaco” relata ter encontrado, em sonho, seu ídolo Pinochet. Carmona opta por encarar esse relato de maneira radical, traduzindo o sonho na forma de um filme silencioso, preto e branco, com direito a intertítulos e tudo.

Um tipo de diálogo é recorrente entre os generais. Em rompantes ufanistas, se vangloriam dos grandes feitos desempenhados por esportistas chilenos, e instigam uns aos outros a lembrarem qual atleta ganhou determinada medalha em certa competição. A reincidência dessa brincadeira, somada ao prazer dos homens em revisitar o passado e as ditas “glórias” de seu país só poderia mesmo ser um artifício para reiterar o que já sabemos desde o início: em uma de suas últimas sequências, “Prisão nos Andes” utiliza o mesmo padrão de diálogo para que os torturadores verbalizem os crimes hediondos que cometeram; o recurso até poderia funcionar se não fosse tão ordinário e filmado de forma tão mecânica. Aliás, quase tudo soa artificial aqui, até mesmo quando ouvimos a seguinte frase: “O dia em que deixarmos de cuidar deste país, isso aqui vai ficar cheio de negros, de traficantes, de bichas, de terroristas. Guardem as minhas palavras.” Apesar de inflamada, revoltante, falta peso a este e a todos os outros momentos do filme. Nem mesmo a opção por subir os créditos finais citando T. S. Eliot (“The Waste Land”) foi capaz de salvá-lo da superficialidade.

– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.



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