Entrevista: De Belém, Ana Clara fala sobre seu novo EP, “Canções de Flutuação”, e seu pop indie de guitarras

entrevista de Leonardo Vinhas

Ana Clara cavou um espaço pequeno, mas precioso, no cenário cultural do Pará. Seu pop de inspiração indie é eminentemente guitarreiro, e se sustenta a partir de contrastes sonoros e líricos – tais como peso/leveza ou introspecção/confissão – e de melodias bem desenhadas, reforçadas pela força peculiar de sua voz.

Canções de Flutuação” (2024), EP lançado em agosto, mantém essas características, que já vinham presentes desde seu álbum de estreia, lançado em 2015. São cinco canções igualmente divididas entre arranjos solares e sombrios, que conversam entre si apesar de suas diferenças. Assim, o dream pop “Lunar” e a combinação de solidão e nostalgia de “Dias Aquáticos” convivem muito bem com a brisa litorânea com ecos de 10,000 Maniacs de “Vento Lento” e com a feliz releitura da preciosa “Canoinha Bailarina”. Ao fim, “Plano de Vôo” consegue unir esses dois lados em igual medida.

Em todas as faixas, ar e água se fazem presentes, sejam de forma explícita, nas letras, ou refletidos nas formas musicais escolhidas para cada canção. A paleta de cores da arte do disco e das fotos de divulgação, com tons de azul e violeta, também se traduz em canções. Tão bem sucedida é Ana Clara nessa tradução de elementos visuais em música que fica difícil ao ouvinte não se imaginar em um fim de tarde diante de algum ponto na Baía do Guajará, mesmo que ele nunca tenha estado em Belém.

Na conversa a seguir, realizada por videoconferência no início de setembro, Ana Clara fala sobre como se dá esse processo sinestésico de unir cores, sentimentos e acordes de forma intencional, e aproveita para falar sobre como e por quê seguir adiante em uma carreira que sabidamente navega às margens do mercado e de modismos, mesmo sendo pop em essência.

A linguagem que você usa no seu trabalho – esse pop de guitarras, de matriz indie – há muito não é uma linguagem valorizada no cenário brasileiro, nem mesmo no independente. O próprio termo “indie” já não faz referência a esse tipo de som aqui no Brasil. E você vem mostrando essa escolha consistente de sustentar essa sonoridade em um cenário que é pouco permeável a esse caminho. De onde vem essa resolução?
Obrigada pela observação, porque isso é um elogio para mim (risos). É o lance de manter uma consistência mesmo, ter um direcionamento de trabalho. Não vejo nada de errado com outras formas musicais, é só uma escolha pessoal de como eu me relaciono [com a música]. Produzir tem uma coisa muito idealista para mim, é mais do que uma escolha calculada. É uma forma de expressão, e as músicas vão ganhando forma dentro desse direcionamento. Não é algo que eu consiga ter um método de calcular como vai soar. E não que eu veja algo de errado em um direcionamento conceitual, “ah, vou fazer um disco nessa sonoridade x”, só não é a minha forma de trabalhar. Fui desenvolvendo esse trabalho com banda e ele tem uma personalidade que se mantém na forma como as músicas são lidas. Cada escolha de repertório é meio o que eu quero dizer e como. Sei que é difícil que isso se encaixe no “mercado”, mas para mim isso não é o principal. Se eu agisse diferente, não estaria sendo fiel ao meu desejo em produzir.

Você falou sobre desenvolver o seu trabalho com banda: o seu trabalho é assinado com seu nome, mas você sempre destaca a participação dos músicos, E em todos os seus discos há um som de banda muito marcante, mesmo não sendo a mesma banda. Como se dá essa coletividade em meio a um trabalho assumidamente solo?
A formação desse disco está comigo desde 2019, e o primeiro registro dela foi justamente a versão de “Questão de Tempo” para o tributo à Tom Bloch. A única pessoa que está comigo desde o início [da carreira solo] é o baixista, Manuel Malvar. O resto da galera foi mudando ao longo do tempo. Mas encaro, sim, como um processo coletivo no sentido da musicalidade. Não sou multi-instrumentista. Desenvolvo [as canções] junto com as pessoas que estão comigo, então existe a leitura coletiva desse repertório. Quando montei a banda pela primeira vez, lá por 2012, eu convidei pessoas que, no meu entendimento, criavam a atmosfera que eu imaginava para o meu trabalho. Na primeira formação, tinha uma guitarra mais pesada, mais suja, e uma outra mais pop e limpa, que criava essa misturinha (ri). Tem um baixista que é oriundo do punk, os dois bateristas com quem toquei vêm de bandas de rock também, e o primeiro era o Ulisses Moreira, que é também produtor e técnico de áudio. Agora tem a Deni Melo, que também vem do cenário de rock. As coisas se complementam. E eu convido essas pessoas a contribuírem com a sua leitura, com a sua personalidade artística, mas tem o meu direcionamento na composição desse grupo, na escolha do repertório… Por exemplo, nesse repertório do EP, tem duas músicas que a gente começou a ensaiar antes da pandemia, e que ficaram guardadas para o momento que desse para retomá-las. Outras vieram no caminho, e cada uma eu iniciei de uma maneira diferente. Em “Dias Aquáticos”, por exemplo, eu chamei a baterista para começarmos juntas.

“Dias Aquáticos” e “Lunar” são músicas que têm uma densidade lírica e musical que meio que se contrapõem à leveza das outras três. O EP é bem arejado, mas tem também esses momentos densos, que sempre estiveram presentes em outros momentos do seu trabalho. Mas como tem esse outro lado que está tão mais leve agora, eu queria entender como você vê essas manifestações na sua música. É absolutamente natural que todos esses lados existam dentro da gente, mas não é tão natural que a gente consiga expressá-los e fazê-los conviver dentro da mesma obra. Como você conseguiu que elas estivessem juntas na mesma obra sem parecer que brigassem entre si? (risos)
Tá lá na raiz, né? Aquilo que eu comentei contigo sobre quando eu fui montar a primeira formação da banda. Ali já de partida tinha essa questão do contraste, e eu percebo muito isso em mim também. Sou uma pessoa que é externamente solar, talvez até muito (risos). Tem um exercício de delicadeza que me é muito natural, mas tem também uma densidade que é da minha introspecção, e acho que essa é a via pela qual eu mais me expresso. A origem do meu trabalho já trazia esse olhar de trabalhar esse contraste. No álbum de 2015, o lado A e o lado B para mim funcionam assim, com um mais solar e o outro mais denso. E falando mais do “Canções de Flutuação”, esse EP vem depois de um período de muita densidade, não só para mim, mas para todo mundo: anos de pandemia supercarregados, pesados. O EP fez parte de um processo de um reaprendizado também, havia a necessidade desse contraponto, de buscar traduzir essa dualidade de alguma maneira. “Vento Lento” e “Canoinha Bailarina” são das músicas mais leves, e são escolhas de repertório de outros compositores: “Vento Lento” é de uma banda clássica daqui de Belém chamada Solano Star, e eu a cantei numa reunião da banda que rolou uns anos atrás, eu a quis regravar e dar outra leitura. “Canoinha Bailarina” é de um grande mestre daqui, Ronaldo Silva, que é um puta compositor, que vem da música mais tradicional. Ele é um dos idealizadores, por exemplo, do Arraial do Pavulagem. É um dos maiores compositores da região, um dos maiores artistas desse estado e que merece reconhecimento nacional. Eu tinha muita vontade de gravar alguma coisa dele, e essa canção tem justamente essa atmosfera mais leve, que tem esse contato com uma cultura local, uma relação com a natureza que é muito presente na linguagem dele, era algo nessa linha que eu queria. Essa viagem de canoa é uma parceria do Ronaldo com o Allan Carvalho e o Cincinato Junior, e eu fiz uma leitura mais pop, diferente da versão que o Ronaldo gravou e de outras que foram feitas. Só para tentar sintetizar a resposta pra tua pergunta, eu acho que o meu trabalho é uma tentativa de comunicar como esses aspectos coexistem em mim, que é possível ser leve em uma medida e cantar uma música de amor que também seja cortante. Me interessa muito essa ambiguidade das coisas.

O quanto essa dualidade também é um espelho da cidade onde você vive? Porque eu conheci pouco de Belém, mas ela me pareceu uma cidade muito dualista, em muitos sentidos: tem uma urbanidade agressiva e depauperada, mas ao mesmo tempo uma exuberância da natureza muito forte, uma arquitetura tradicional antiga muito bonita e uma outra contemporânea que não dialoga com essa primeira. Você acha que Belém se filtra um pouco na sua identidade musical, levando isso em consideração?
Nossa, eu nunca tinha pensado nesses termos! Mas creio que sim, que faz parte dessa densidade a relação com o capitalismo no estágio em que se encontra e que é brutal como se percebe nessa urbanidade (ri). Mas a gente também tem respiros aqui. Sejam respiros naturais, como tu mencionaste, seja esse respiro humano, de um lugar onde tem esse calor, essa emotividade. Então sim, eu acho que [essa dualidade] está na raiz, na personalidade mesmo, antes de ser de trabalho artístico. A contradição habita ali desde o início.

O lado intérprete está presente na sua carreira desde o início, e eu queria saber se nessa escolha de repertório entra também um pouco o seu lado jornalista, o seu lado produtora cultural, que pode te inspirar a trazer uma música menos conhecida ou buscar algo que você acha que merece ser reapresentado para outras pessoas.
Essas coisas estão entranhadas, mas coexistem. Esse cuidado de ir atrás de coisas que eu acho preciosas. Por exemplo, eu não conhecia nenhum registro de “Vento Lento”, a Solano Star existiu entre o final dos anos 1980 e início dos 1990, acabou, e muita gente mais jovem talvez não a tenha conhecido. Então rola isso, mas creio que não é uma coisa proposital ou deliberada, é algo que coexiste com o interesse artístico, que faz parte da minha formação. Eu gosto desses achados, e também acho muito bonito isso da gente conseguir se expressar por algo que outra pessoa escreveu, essa identificação por meio de canções de outros autores. Eu sempre compus, acho que eu até mesmo escrevi antes de cantar, e aí na época que eu decidi formar a banda e gravar, eu estava numa fase de não compor tanto, então também veio esse trabalho de escolher coisas que eu quero dizer, que me traduzem de uma maneira que eu gostaria de interpretar.

Uma última pergunta sobre o disco é sobre o projeto gráfico. Para um disco que não tem a pretensão imediata de sair em formato físico, ele tem uma apresentação visual muito cuidadosa – a qual você sempre teve nos trabalhos que lançou. Claro que isso tem um caráter mercadológico que faz parte do universo musical, mas tem tanto cuidado e tantas camadas na identidade visual desse trabalho que eu queria saber se isso não seria uma parte tão importante da sua expressão quanto a decisão por um arranjo ou a escolha do produtor.
É bem isso. Faz parte, eu funciono de um jeito sinestésico. Falando desse trabalho em particular: eu estava começando um bordado com essas cores, e pensando ao mesmo tempo no EP, e me dei conta que estava tudo interligado. Bom, esse bordado vai ser a capa, então. Esse é o meu raciocínio. Teve todo o lance das cores, as fotos, eu escolhi a roupa de acordo com o que eu achava que seria o universo de cores do trabalho… A gente foi para uma locação que era importante para mim, que também tinha a ver com o lance da água, que está presente em várias músicas – tem ar e água nas músicas, por isso que ele é “Canções de Flutuação” – então o processo todo me ajuda a entrar na liga, a compor um universo.

Tem uma pergunta que eu gosto de fazer a todo artista que se mantém à margem de mercados grandes, mas tem uma estrada e um corpo de obra. Você é jovem, mas já tem mais de dez anos de carreira, vários registros em disco. A pergunta é: mesmo diante da falta de retorno financeiro, de espaços para tocar, de condições para circular, da lógica cruel dos algoritmos, você continua. Por que?
Eu acho que eu não tenho escolha (risos). É algo que está além… Às vezes, dá aquela desanimada, mas quando eu percebo, inconscientemente já estou trabalhando em outra coisa. Eu não sei estar no mundo de outra forma, então é inevitável para mim, mesmo com todas as dificuldades. Tenho zero ingenuidade, desde o início tenho pra mim que isso é algo que vou fazer porque eu quero fazer, e vou fazer desse jeito porque é como eu acredito que eu vou me expressar melhor. E assim eu persisto. É óbvio que é uma alegria quando isso vai chegando para mais gente, mas essa restrição de público também não é um motivo para não fazer.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.



Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.